Tema 1.035 do STF: sobre os riscos da flexibilização dos critérios para cobrança de taxas

Por João Vitor Janson

30/09/2025 12:00 am

O Supremo Tribunal Federal concluiu, no último dia 18 de agosto, o julgamento do Tema nº 1.035 da repercussão geral (ARE 990.094/SP), fixando por unanimidade a tese de que: “É constitucional considerar o tipo de atividade exercida pelo contribuinte como um dos critérios para fixação do valor de taxa de fiscalização do estabelecimento”.

Este artigo examinará a decisão através de uma análise estruturada em três segmentos. Inicialmente, abordaremos a conceituação constitucional das taxas instituídas em razão do exercício do poder de polícia, estabelecendo os parâmetros normativos que orientam a cobrança desta espécie tributária. Em seguida, analisáramos as nuances do caso concreto e os fundamentos utilizados no julgamento. Por fim, serão apresentadas breves considerações sobre a discussão.

Da taxa em razão do poder de polícia
A taxa constitui espécie tributária vinculada cuja legitimidade encontra fundamento no artigo 145, inciso II, da Constituição, que autoriza sua instituição pela União, estados, Distrito Federal e municípios em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização de serviços públicos específicos e divisíveis. Esta previsão constitucional estabelece os parâmetros fundamentais para a validade da cobrança, exigindo estreita correlação entre o tributo e a atividade estatal que lhe serve de causa.

O poder de polícia, conforme definição do artigo 78 do Código Tributário Nacional, constitui atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato em razão de interesse público concernente à segurança, higiene, ordem, costumes, disciplina da produção e do mercado, exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, tranquilidade pública ou respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

A natureza vinculada da taxa impõe que sua cobrança esteja necessariamente atrelada a uma contraprestação estatal específica e mensurável. Diferentemente dos impostos, cuja exigência independe de qualquer atividade estatal dirigida ao contribuinte, as taxas pressupõem o efetivo exercício do poder de polícia ou a prestação de serviço público específico e divisível. Esta característica fundamental distingue as taxas das demais espécies tributárias e condiciona sua constitucionalidade ao cumprimento rigoroso dos requisitos estabelecidos pela Constituição.

O princípio da proporcionalidade constitui elemento central na estruturação constitucional das taxas. Conforme os ensinamentos de Humberto Ávila [1], a proporcionalidade representa um critério de controle da atuação estatal que exige a verificação da relação adequada entre meios empregados e fins perseguidos, impedindo excessos e desproporcionalidades na atividade normativa. O §2º do artigo 145 da Constituição estabelece vedação expressa para que as taxas tenham base de cálculo própria de impostos, impedindo que a capacidade contributiva do sujeito passivo seja considerada para fins de dimensionamento do tributo. Esta limitação visa preservar a natureza contraprestacional da taxa e impedir sua transformação em instrumento de arrecadação desvinculado da atividade estatal específica.

A jurisprudência do Supremo consolidou o entendimento de que o valor da taxa deve guardar relação de equivalência com o custo da atividade estatal desenvolvida. A Súmula 595 do STF estabelece que “é inconstitucional a taxa municipal de conservação de estradas de rodagem cuja base de cálculo seja idêntica à do imposto territorial rural”, demonstrando a preocupação da Corte em preservar a distinção entre as espécies tributárias.

A especificidade e divisibilidade constituem requisitos adicionais para a validade constitucional das taxas. Paulo de Barros Carvalho [2] leciona que a atividade estatal deve ser destacável da função geral do Estado, apresentando características próprias que a individualizem. Simultaneamente, deve ser passível de fruição separada por cada contribuinte, permitindo a identificação clara dos beneficiários diretos da atuação estatal. No contexto das taxas de fiscalização, estes requisitos traduzem-se na necessidade de que o poder de polícia seja exercido de forma individualizada em relação a cada estabelecimento, com atividade fiscalizatória específica e mensurável.

Nuances do caso e fundamentos da decisão
A origem da discussão adveio do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em que Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) opôs embargos à execução fiscal movida pelo município de São Paulo. A ECT questionou a cobrança municipal relativa à Taxa de Licença para Localização, Funcionamento e Instalação (TLFI), instituída pela Lei Municipal nº 9.670/83, contestando especificamente a utilização do tipo de atividade econômica como critério para fixação do valor da exação.

Diante da decisão desfavorável, o município de São Paulo levou a discussão ao Supremo Tribunal Federal, dando origem ao Tema nº 1.035 da repercussão geral. O município fundamentou sua irresignação na Lei Municipal nº 13.477/02, que instituiu a Taxa de Fiscalização de Estabelecimentos (TFE) em substituição à legislação anterior, sustentando a constitucionalidade da utilização do tipo de atividade econômica como critério legítimo para diferenciação de valores tributários.

A tese fixada, por unanimidade, foi no sentido da constitucionalidade na utilização do tipo de atividade exercida pelo contribuinte como critério para fixação do valor da taxa de fiscalização. O relator, ministro Gilmar Mendes, fundamentou a decisão na premissa de que diferentes atividades econômicas demandam níveis diferenciados de complexidade na fiscalização exercida pelo poder público municipal.

A argumentação da Corte baseou-se no entendimento de que a natureza da atividade econômica influencia diretamente o grau de sofisticação, frequência e intensidade da fiscalização necessária para verificar o cumprimento das normas edilícias, sanitárias, ambientais e de posturas municipais. Segundo este raciocínio, estabelecimentos que desenvolvem atividades mais complexas ou potencialmente mais impactantes demandariam maior dispêndio de recursos públicos na atividade fiscalizatória.

O julgado deixou claro que não é necessária uma correspondência absoluta entre o valor cobrado e o custo exato do serviço público, pois exigir tal precisão inviabilizaria a arrecadação e a própria gestão tributária.

Para o ministro relator Gilmar Mendes, a Lei Municipal nº 13.477/02 foi considerada adequada por elencar “mais de cem atividades diferentes, justamente para que o valor da taxa seja o mais condizente possível com o custo da atuação estatal, em consonância com o princípio da proporcionalidade”. O relator concluiu que a taxa atende aos requisitos de validade por decorrer “do exercício regular, efetivo ou potencial, do poder de polícia, sendo específico e divisível”, com base de cálculo que não é própria de imposto, pois “os valores são fixos e previamente definidos com base na atividade do estabelecimento”.

Considerações sobre a decisão
Embora reconheça os fundamentos técnicos invocados pelo STF no Tema nº 1.035, discordamos do resultado do julgamento. Entendo que a Corte autorizou, em tese, uma solução normativa que exige cuidados muito mais rigorosos do que aqueles efetivamente previstos no acórdão.

Em primeiro lugar, há uma preocupação legítima quanto à igualdade tributária prevista no artigo 150, II, da Constituição. Ao admitir a atividade econômica como critério de diferenciação de valores, abre-se espaço para tratamentos distintos entre contribuintes que, na prática, recebem serviços fiscalizatórios semelhantes. Isso não torna automática a inconstitucionalidade, mas exige cautela normativa e critérios que justifiquem a distinção de forma transparente e racional.

Outra questão sensível refere-se ao perfil da taxa frente aos impostos, previsto no artigo 145, §2º da Constituição. A utilização da atividade econômica como parâmetro aproxima a taxa de elementos frequentemente associados à capacidade contributiva, o que impõe a necessidade de cuidados para que não se desfigure a natureza vinculada do tributo. Isto é, a adoção desse critério exige salvaguardas claras para preservar a distinção constitucional entre espécies tributárias.

Do ponto de vista empírico, a correlação entre tipo de atividade e custo da fiscalização nem sempre se apresenta de forma automática ou uniforme. Um pequeno restaurante pode requerer fiscalização mais rigorosa e custosa que uma grande empresa de consultoria, dependendo das condições específicas de cada estabelecimento. Por isso, o uso da atividade como critério ganha maior legitimidade se estiver lastreado em estudos técnicos e em metodologia que demonstrem a equivalência entre faixas/tabelas e custos efetivos da fiscalização.

No plano procedimental, é recomendável que a norma municipal estabeleça mecanismos de revisão, critérios objetivos de classificação e transparência quanto aos parâmetros adotados. Essas medidas reduzem o risco de arbitrariedade e oferecem instrumentos para controle – administrativo e judicial – da proporcionalidade entre arrecadação e custo do serviço público prestado.

Em síntese, discordo da decisão do STF vez que ela foi aplicada sem impor, de modo contundente, exigências técnicas e procedimentais capazes de garantir razoabilidade, transparência e controle efetivo sobre a diferenciação tributária para o custo da fiscalização. Mantém-se, portanto, a necessidade de esforços legislativos e administrativos — e, onde cabível, contestações judiciais — para assegurar que a adoção do critério atividade não se transforme em instrumento de arbitrariedade arrecadatória.

[1] Àvila, Humberto. Teoria dos Princípios: Da definição à Aplicação dos Princípios Jurídicos. 22. Ed. Vev. Atual e ampl – São Paulo: Malheiros/ Juspodivm, 2024.

[2] Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31 ed. Ver. Atual – São Paulo: Noeses, 2021.

Mini Curriculum

é advogado tributarista, associado pela Charneski Advogados e pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários do Rio Grande do Sul (Ibet-RS).

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