Receita tributa ressarcimento por uso de veículo próprio
Por Luiza Calegari — De São Paulo
O ressarcimento por uso de veículo próprio para participação em atividades de conselho profissional – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – está sujeito à contribuição previdenciária, segundo a Receita Federal. O entendimento está na Solução de Consulta nº 146, editada pela Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), que vincula todos os auditores do país.
A cobrança, no entanto, só é válida para profissional “eleito para cargo de direção de conselho, de ordem ou de autarquia de fiscalização”, considerado pela Receita como contribuinte individual. O empregado dessas entidades, de acordo com a Receita, continua podendo receber o ressarcimento sem ter que pagar a contribuição.
O entendimento da Cosit parte do princípio de que essa seria uma verba remuneratória paga como contraprestação por um serviço, que é o critério de incidência da contribuição previdenciária. Segundo os contribuintes, no entanto, a verba tem caráter indenizatório, e não deveria compor a base de cálculo do tributo.
A disputa em torno dos conceitos vem se desenrolando há anos. Em 2014, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu, por meio de recurso repetitivo (Tema 479), que o terço de férias tem natureza indenizatória e, dessa forma, não está sujeito à contribuição previdenciária (REsp 1230957). Foi esse julgamento que estabeleceu a diferenciação entre verbas remuneratórias e indenizatórias.
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Desde então, só se multiplicaram as brigas judiciais e administrativas pela definição de verbas específicas. Há jurisprudência favorável e contrária aos contribuintes em diferentes instâncias.
No Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), por exemplo, uma decisão de 2020 isentou da contribuição os ressarcimentos por uso de veículos próprios por empregados de uma indústria química. A 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção de julgamento entendeu que essas verbas “apresentam natureza indenizatória em razão da depreciação e desgaste dos veículos e são pagas aos empregados em substituição ao fornecimento de veículos que poderia ser realizado pela empresa” (processo nº 10920.007427/2008-76).
Já para a 2ª Turma do STJ, por outro lado, seria uma verba paga com habitualidade e, portanto, deveria incidir contribuição previdenciária (AREsp 1729359). Esse também foi o entendimento da 1ª Turma. Os ministros decidiram pela tributação do chamado “auxílio-quilometragem” por considerar estar caracterizada a habitualidade do pagamento (AREsp 1045367).
Para a tributarista Fernanda Lains, do Bueno Tax Lawyers, por mais que o STJ tenha instituído o critério de incidência da contribuição previdenciária, diferenciando verbas remuneratórias das indenizatórias, a aplicação desses conceitos continua sendo muito subjetiva, o que sujeita a jurisprudência a muitas oscilações.
“Por mais que já tenham analisado a questão por meio de recurso repetitivo em 2014, novos julgamentos terão que acontecer sob essa sistemática para termos mais segurança jurídica. Mesmo com uma solução de consulta Cosit, que vincula a administração, esse é um tema que ainda pode ser levado ao Judiciário”, afirma a especialista.
Apesar de a solução de consulta dizer respeito apenas aos integrantes de conselhos, a Receita deixou margem para expandir esse entendimento a diretores eleitos de empresas, o que teria um impacto financeiro significativo, segundo a tributarista Luiza Lacerda, sócia do Demarest.
Ela aponta essa sinalização no trecho em que a solução de consulta determina que “verifica-se que a tributação não alcançaria o ressarcimento de despesas pelo uso de veículo de empregado da consulente (segurado da categoria empregado), o que não inclui o diretor eleito, eis que não há previsão legal isentiva de contribuição sobre essa verba para segurado da categoria contribuinte individual”.
Para a advogada, esse entendimento tem potencial de aumentar as disputas judiciais sobre o tema. “Também acaba sendo uma forma de a Receita ampliar a base de cálculos dos tributos, impondo esse tipo de autuação que, ao fim e ao cabo, espera-se que seja derrubada. Mas isso gera contencioso, gera custo para as empresas e é deletério para o sistema.”
Jéssica Lazzari, advogada do RMM Advogados, também destaca a diferenciação que a Receita faz entre diretores e empregados. Mas, segundo ela, no fim das contas essa discussão acaba por ignorar o debate sobre a natureza da verba, que é o mais importante.
“A Receita acabou deixando de lado aspectos que são fundamentais nessa análise, como a frequência dos pagamentos, a comprovação efetiva dos custos e até mesmo a finalidade do ressarcimento”, afirma a tributarista. “A resposta ficou bastante restrita ao enquadramento jurídico do beneficiário e à ausência de previsão legal específica, sem considerar elementos fáticos que poderiam, sim, alterar a conclusão sobre a natureza da verba.”
Procurada, a Receita não deu retorno até o fechamento da edição.