Tema Repetitivo 1.293: a pedra filosofal do Carf?

Por Carlos Augusto Daniel Neto

24/09/2025 12:00 am

Em 2025 foi julgado o Tema Repetitivo 1.293, que reconheceu a incidência da prescrição intercorrente do artigo 1º, §1º da Lei nº 9.873/99 aos processos administrativos de apuração de infrações aduaneiras, mesmo quando a norma infringida, reflexamente, colabore para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.

Após o julgamento, escrevemos sobre os desafios do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) a respeito da aplicação dessa tese (Prescrição intercorrente e respostas pretéritas), sendo o primeiro item a aplicação do artigo 100 do Ricarf, com suspensão do processo até o trânsito em julgado do repetitivo.

A oposição de embargos de declaração pela PFN, com a inusitada tese de 1+3 anos para contagem do prazo, prorrogou o litígio e ensejou diversas suspensões no Carf, até que no dia 10/9/2025, eles foram, corretamente, rejeitados à unanimidade pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, aproximando-se agora a derradeira consolidação da questão.

Outro ponto que prognosticamos divergência foi a determinação da natureza das infrações, para definir o alcance da tese.

Propusemos partir do caso-limite puramente aduaneiro das penas de perdimento convertidas em multa para, a partir daí, buscar, com suporte na jurisprudência do Carf e do STJ, identificar o tratamento a ser dado às demais. Para nossa surpresa, entretanto, soubemos que, em votos ou em informações prestadas em MS, se passou a defender a exótica tese de que – agora – a infração de interposição fraudulenta de terceiros (artigo 23, V do DL nº 1.455/77) teria natureza tributária, não se sujeitando ao tema 1293.

Parece que, no afã de escapar à tese firmada, o Tema 1.293 se tornou a pedra filosofal do Carf: tal qual o mítico objeto que tinha o condão de converter a natureza dos elementos ao seu toque (tornando chumbo, ouro), a tese vinculante teria assumido o efeito de transmutar em tributárias as infrações aduaneiras que potencialmente venha a tocar, abandonando as feições atribuídas pela lei, doutrina e jurisprudência.

Isso tem sido feito de forma sistemática, mormente em relação às multas relacionadas à interposição fraudulenta de terceiros, talvez em razão da relevância econômica dessas sanções no contencioso administrativo.

A natureza administrativo-aduaneira da interposição fraudulenta de terceiros
A infração em questão foi inserida pela MP nº 66/2001 como o inciso V no artigo 23 do DL nº 1.455/76 [1], que dispunha sobre as condutas relativas a mercadorias enquadradas como dano ao Erário e, portanto, estariam sujeitas à pena de perdimento, com fundamento no artigo 153, §11 da Constituição de 1967 (com a redação da EC 1/69) [2], que dispunha sobre as penas aplicáveis no país.

Essas infrações relativas às mercadorias, correspondentes a “dano ao Erário” têm natureza administrativo-penal, sendo-lhes atribuída a pena máxima de confisco, de resto em incompatibilidade jurídica com o regime das infrações tributárias (sujeito ao artigo 150, IV, da CF/88).

Essa contraposição é reconhecida pela própria legislação ordinária, ao afastar a incidência dos tributos aduaneiros sobre o objeto de perdimento, encerrando a pretensão tributária sobre elas (II – DL 37/66, artigo 1, §4º, III; IPI – Lei nº 4.502/64, artigo 2º, I; PIS/Cofins – Lei nº 10.865/04, artigo 2º, III; e AFRMM – Lei 10.893/04, artigo 4º, §1º). Mesmo diante da sua não localização ou consumo, cobra-se cumulativamente eventuais tributos (e suas multas tributárias) e a multa aduaneira (da conversão do perdimento), sem bis in idem ou consunção entre elas, por terem objetos distintos.

Esse entendimento já é consolidado no âmbito do STF, a exemplo do AI 98200-AgR [3], onde se afirmou, encampando o acórdão recorrido, verbis:

“Com efeito, o pagamento dos tributos, na importação ilícita, se afasta a punibilidade criminal, não torna insubsistente o dano ao erário, que é infração administrativa. Não se pode limitar o conceito de dano ao erário à simples elisão do imposto, pois pressupõe uma ação cujo objeto é a violação de leis financeiras, protetivas do comércio com o exterior, nas quais se regula larga margem do poder de polícia econômico, que é atribuição relevante da administração tributária.”

Ademais, a própria Exposição de Motivos do artigo 59 da MP nº 66/2001 (que criou a referida infração), era clara a respeito da sua natureza jurídica: “43. Os arts. 59 e 60 visam aperfeiçoar a legislação aduaneira no que concerne à prevenção e ao combate à fraudes” [4].

Além da retumbante incompatibilidade do artigo 23, V, com o regime tributário, a “tese transmutacional” encampa uma série de contradições lógico-jurídicas intrasponíveis.

O Tema 1.293 consignou expressamente que “É a natureza jurídica da norma de conduta violada, portanto, o critério legal que deve ser observado para dizer se tal ou qual infração à lei deve ou não obediência aos ditames da Lei 9.873/99”. Em outras palavras, o regime jurídico da sanção deve acompanhar a natureza jurídica da infração tipificada.

Não sendo o perdimento uma sanção tributária, mas aduaneira (como expresso no artigo 96, I e II do DL 37/66), e capitulando-se a mesma infração mesmo na hipótese das mercadorias não localizadas ou consumidas, como justificar que a multa decorrente da conversão do perdimento se tornaria uma multa de caráter tributário? Essa transformação dependeria, fundamentalmente, de mais uma intervenção da nossa “pedra filosofal”.

Ausente a metafórica pedra filosofal, a tese dependeria de uma das seguintes condições para ser válida: 1) que o perdimento tivesse natureza tributária (o que contraria a própria Constituição e a jurisprudência do STF); ou 2) que o tipo infracional de uma natureza pudesse gerar uma sanção de natureza distinta (o que contraria a ratio decidendi do acórdão que firmou o Tema 1.293). As duas condições, à evidência, não fazem sentido, da mesma forma que a suposta transformação.

Reforça essa conclusão, também, o fato de as multas decorrentes do artigo 23 do DL 1.455/76 serem julgadas pelo rito do Decreto nº 70.235/72 apenas por força de uma disposição remissiva específica, no seu §3º, o que evidencia se tratar tais infrações, como esclarecido por Rosaldo Trevisan, de “uma parte da área aduaneira que não intersecciona com o tributário” [5].

A posição do Carf
A natureza aduaneira da interposição fraudulenta também é amplamente reconhecida pelo Carf, inclusive em súmulas vinculantes da sua jurisprudência.

A Súmula nº 184, que estabeleceu a observância do prazo decadencial das penalidades aduaneiras, do DL nº 37/1966, para as infrações dessa natureza (em desfavor do CTN), tem entre os seus acórdãos precedentes o nº 9303-009.237, que envolvia exatamente a infração do artigo 23, V, ratificando a sua natureza aduaneira.

O quão pitoresco seria sustentar que a infração é para fins decadenciais (e por força da Súmula nº 184), aduaneira, mas para fins de aplicação do Tema 1.293, tributária? Até a mais habilidoso alquimista teria dificuldade, mesmo com a pedra filosofal, pois a própria RFB reconhece que o prazo do artigo 138 do DL 37/66 somente seria aplicável às “multas relacionadas ao controle aduaneiro das importações” (SCI Cosit nº 4/2022).

Na mesma linha, a Súmula nº 160 estabelece que “a aplicação da multa substitutiva do perdimento a que se refere o § 3º do art. 23 do Decreto-lei nº 1.455, de 1976 independe da comprovação de prejuízo ao recolhimento de tributos ou contribuições”, encampando o entendimento de que essa infração não tem conexão com o inadimplemento de tributos ou obrigações acessórias, mas sim danos ao controle aduaneiro.

Nesse sentido, vale a reprodução de trecho do voto de Rosaldo Trevisan, no acórdão nº 3401-004.381 (um dos precedentes da súmula), que bem reflete a sua ratio, verbis:

“E o ‘dano ao Erário’ referido na legislação tem pouca relação com “sonegação fiscal”, pois a infração não é de natureza tributária. É sintomático que o texto do artigo 23 do Decreto-Lei nº 1.455/1976 (essencialmente no caput e no § 1º) não está a dizer que só quando ocasionarem dano ao Erário as infrações ali referidas serão punidas com o perdimento. (…)

Aliás, as disposições do Decreto-Lei surgem exatamente para regulamentar dispositivo constitucional (art. 150, § 11 da Constituição de 1967) [6]: (…)” [7]

Endossando essa posição, Arnaldo Diefenthaller Dornelles aduz que “se o art. 23 do Decreto-Lei n. 1.455, de 1976, trata de uma penalidade aplicável em razão de uma infração aduaneira, e se há ali um bem a ser protegido (o Erário), não parece razoável que esse bem se refira somente ao tributo não pago, mas também ao controle aduaneiro sonegado” [8].

As referidas súmulas, por força das Portarias ME nº 410/20 e 12.975/21, são vinculantes para toda a administração pública federal, causando espécie a defesa alquímica do contrário do que elas dispõem.

Vale observar também que, durante a vigência do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, que trazia o desempate pró-contribuinte, o Carf (inclusive por sua 3ª CSRF), com fulcro na Portaria ME nº 260/20, manteve a aplicação do voto de qualidade em casos de interposição fraudulenta, por entender que não seria exigência de crédito tributário, mas de multa aduaneira. Há diversos acórdãos nesse sentido, mas, por todos, citamos o Acórdão CSRF 9303-011.040 (j. 8/12/2020), que trata exatamente da infração em comento.

Frise-se que esse entendimento não discrepa da visão da própria RFB, que, para esses lançamentos, utiliza-se normalmente do “Código de Receita 2185”, (“multa aplicada pelo setor aduaneiro – sem redução”), confirmando o caráter administrativo (não tributário) da penalidade, em oposição a outros códigos para multas decorrentes de obrigações acessórias, e.g. 3738, 6340 ou 6393.

Por fim, mencione-se a lição de Jorge Lima Abud, no Acórdão 3302-006.329: “a multa equivalente ao valor aduaneiro, aqui exigida, decorre de uma infração aduaneira cujo cometimento implica na aplicação da pena de perdimento, consequentemente substituída pela multa em comento. / Pena de perdimento não tem natureza de tributo por força da definição do artigo 3º do CTN”.

Como se vê, a jurisprudência do Carf é uníssona em reconhecer o caráter aduaneiro dessa infração e a sua conexão apenas eventual com pretensões tributárias.

A posição do Judiciário
Considerando que o contexto da discussão do Tema 1.293, nada mais adequado que investigarmos justamente a visão do STJ a respeito da matéria, o órgão competente para interpretar autenticamente o alcance de suas próprias teses.

O STJ tem, com clareza, reconhecido a natureza administrativa às multas aplicadas por vícios no procedimento de importação de mercadorias, a exemplo dos recentes REsps 1.942.072/RS e 1.999.532/RJ, e AgInt no REsp 2.089.822/SP, aplicando a eles o artigo 1º, §1º da Lei nº 9.873/99.

Especificamente a respeito da infração de interposição fraudulenta, há diversos acórdãos, das duas turmas da 1ª Seção, que reconhecem o seu caráter administrativo-aduaneiro, como o AgInt no REsp 1.435.983/RS (“ficou caracterizada a presença de dano à ordem administrativo-aduaneira”), REsp 1.019.136/SP (“conduta típica prevista na legislação aduaneira à época dos fatos”) e AgInt no REsp 1.871.567/RN (“não se discutindo no caso decadência de cobrança tributária, mas de cobrança de multa decorrente de sanção”).

Ainda mais acurado à análise, representando a síntese das duas posições mencionadas acima, é o recentíssimo AgInt no REsp 2.122.282/SP [9], julgado por unanimidade na 2ª Turma, que reconheceu expressamente a aplicação do Tema 1.293 à infração de interposição fraudulenta, consignando expressamente, verbis:

“(…) a multa substitutiva à pena de perdimento de mercadorias, decorrente de infração de interposição fraudulenta na importação, cominada na forma do artigo 23, inciso V, § 3º, do Decreto-Lei nº 1.455/1976, não ostenta natureza tributária, mas, sim, administrativa, tendo como pressuposto o descumprimento do dever de prestar informações ao Fisco destinadas ao controle das atividades de comércio exterior, não se confundindo, pois, com a obrigação tributária vinculada à arrecadação de tributos.”

A consolidação do tema no STJ tem conduzido à pacificação do tema no âmbito dos TRFs, que têm recentemente reconhecido a aplicação do Tema 1.293 aos processos que envolvem acusações interposição fraudulenta, a exemplo dos AI 5012300-10.2025.4.03.0000 (j. 26/08/25) e ApCiv 5023810-24.2023.4.03.6100 (j. 30/7/25), julgados pelo TRF-3, bem como a ApCiv 5013473-/12.2021.4.04.7201 (j. 15/7/25), julgada pelo TRF-4.

No Judiciário, portanto, a questão parece estar consolidada, não apenas quanto à natureza da multa substitutiva da pena de perdimento, como também da sua sujeição ao Tema 1.293.

Conclusão
Na mitologia da Alquimia, dizem que a pedra filosofal, além da transmutação, também era a fonte do “Elixir da Longa Vida”, capaz de prolongar a vida ou até mesmo conceder a imortalidade. Da mesma forma, os nossos alquimistas jurídicos, além de atribuir ao Tema 1.293 o caráter transformador da natureza das coisas, parecem estar interessados apenas em dar vida eterna a essa controvérsia já superada pelo Carf e pelo Judiciário.

À Alquimia antiga costuma-se, benignamente, atribuir um caráter protocientífico que, pela análise de seus métodos, tinha feição verdadeiramente mística. Na nova alquimia que falamos, também há um apego quase religioso à situação já superada pelo Tema 1.293, que se pretende científico, mas se baseia em negar, por meio de argumentos ad hoc de ocasião, todos os pontos de partida dogmáticos sobre os quais o próprio debate foi conduzido até hoje.

Tanto lá quanto cá, uma coisa não mudou: a transmutação segue improvada e tampouco se conseguiu se dar vida eterna a alguém. Afinal, não existem pedras filosofais.

[1] Art 23. Consideram-se dano ao Erário as infrações relativas às mercadorias:

V – estrangeiras ou nacionais, na importação ou na exportação, na hipótese de ocultação do sujeito passivo, do real vendedor, comprador ou de responsável pela operação, mediante fraude ou simulação, inclusive a interposição fraudulenta de terceiros.

[2] Art. 153 (…) § 11 – (…). Esta [a lei] disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta.

[3] Rel. min. Néri da Silveira, 1ª Turma, j. 8/5/1984. Na mesma linha, v. AI 173689-AgR, rel. min. Marco Aurélio; RE 251008-AgR, rel. min. Cezar Peluso.

[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Exm/2002/211-MF-02.htm.

[5] Prescrição intercorrente e Aduana: “Back to the future” (parte 2)

[6] V. nota 2.

[7] No mesmo sentido, v. TREVISAN, Rosaldo. “Uma Contribuição à Visão Integral do Universo de Infrações e Penalidades Aduaneiras no Brasil, na Busca pela Sistematização”. In Temas Atuais de Direito Aduaneiro III. São Paulo: Aduaneiras, 2022.

[8] DORNELLES, Arnaldo Diefenthaller. Combate à Interposição Fraudulenta no Comércio Exterior – Acertos e Desacertos. Disponível em Combate à interposição fraudulenta no comércio exterior : acertos e desacertos, com acesso em 20/09/2025.

[9] Rel. min. Marco Aurélio Bellizze, 2ª Turma, j. 18/6/2025

Mini Curriculum

é sócio do escritório Daniel, Diniz e Branco Advocacia Tributária e Aduaneira, com estágios pós-doutorais de pesquisa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (MPI), doutor em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor permanente do mestrado profissional do Cedes, do IBDT e da Apet.

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