Quem é o credor do IBS?

Por Hugo de Brito Machado Segundo

24/09/2025 12:00 am

A reforma tributária tem trazido perguntas e questões que nem aos seus idealizadores iniciais haviam ocorrido. Vão surgindo aos poucos, como ocorre com toda e qualquer interferência em um sistema complexo, assim entendido aquele formado por partes que interagem entre si e dessa interação emergem novas realidades e situações.

Quando a alteração se dá com a importação de fórmulas oriundas de outros ecossistemas, nos quais estão sujeitas a interações diferentes das que ocorrerão por aqui, as imprevistas consequências são ainda mais surpreendentes, como a história do sapo cururu australiano mostra com eloquência

Para quem não sabe, na Austrália, no início do século passado, uma praga de besouros assolava as plantações de cana de açúcar. Alguém que conhecia a biologia dos livros, mas não as sutilezas do ecossistema australiano, teve a brilhante ideia de importar sapos. Afinal, esses anfíbios têm insetos em seu cardápio. Comerão os besouros, foi o que se pensou.

O problema foi que os sapos tinham predadores naturais no Havaí, de onde foram trazidos. Mas seus predadores não existiam na Austrália. Os sapos então multiplicaram-se descontroladamente. E, em elevado número, começaram a comer vários insetos que antes estavam no cardápio de outros animais, pertencentes à fauna australiana nativa, que, sem comida, começaram a desaparecer.

Os animais maiores, que comiam estes que começaram a perecer por falta de alimento, foram forçados a comer os sapos, que agora apareciam em todo lugar. Mas os sapos eram venenosos, e os predadores, não preparados para o veneno, terminaram morrendo também. Foi um desastre em cadeia. E, para completar: não se resolveu a praga dos besouros que comiam as plantações, pois os sapos, gordos, não conseguiam comer os tais besouros, que voavam alto nos galhos das plantas; também não conseguiam comer as larvas do besouro, que, debaixo do solo, comiam as raízes das plantas.

Que na reforma houve já surpresas assim, não há dúvida. Prova disto é a cogitação, entre os meios especializados, de uma outra emenda constitucional, para alterar toda a estrutura do Judiciário. Fala-se em uma “justiça do IBS”. Ainda sem entrar no mérito do problema, e das propostas de solução, o fato de se estar à esta altura cogitando de emendar (de novo) a Constituição, depois de promulgada com muito barulho a EC 132/2023, é demonstração eloquente de que só agora algumas questões estão sendo percebidas. Estão vendo que o sapo não pula, ou talvez seja venenoso. Ou que os outros bichos daqui não podem com seu veneno. Mas isso só depois de ele já estar solto por nossos campos.

Jogo de empurra
Um dos problemas lançados pela reforma, problema que para um economista pode parecer “detalhe burocrático”, mas que é central quando se cogita de um Estado civilizado que se sujeita a normas pré-estabelecidas, é: Quem é o credor do IBS?

Esse “detalhe burocrático” define, por exemplo, o sujeito ativo da relação jurídica obrigacional, e o sujeito passivo da relação processual, em ações antiexacionais. Ou, em termos mais diretos: se algo errado ocorrer, quem deve ser demandado em juízo? Quem deverá cumprir os efeitos de uma ordem judicial? Os efeitos da coisa julgada, tema tão largamente discutido em matéria tributária? Caso o tributo seja pago de modo indevido, e se superem os inúmeros outros entraves colocados à restituição, quem haverá de devolvê-lo, expedindo o respectivo precatório?

Talvez assistamos no futuro a uma incoerência, ou um jogo de empurra, semelhante ao que historicamente se testemunha quando o debate gira sobre o outro lado da relação jurídica. Quando se pergunta “quem é o ‘verdadeiro’ devedor do tributo indireto?”, a resposta costuma ser camaleônica. Se o comerciante vendedor de mercadorias pede a devolução de quantias pagas indevidamente, por exemplo, diz-se que o verdadeiro credor não é ele, mas o consumidor final. Mas se for este, o consumidor final, o autor do pedido de restituição, o verdadeiro credor passa a ser o comerciante, dizendo-se que o consumidor não tem relação com o Fisco. Como dito, o verdadeiro devedor é quem não estiver reclamando.

Talvez a incoerência passe agora também ao polo ativo da relação obrigacional. Quando se demandar o Comitê Gestor, ou quando se exigir que ele cumpra uma ordem judicial, ou devolva um tributo pago indevidamente, dir-se-á que o verdadeiro credor é o estado e o município do destino da operação (quanto ao tributo) e os da origem (quanto à multa). Mas, se se demandam esses estados e municípios, talvez se diga que o verdadeiro credor seria o Comitê Gestor. Como desculpa para descumprir ordem judicial isso será uma beleza.

Da forma como estruturado o Comitê Gestor, e a divisão dos recursos por ele arrecadados, a solução mais correta parece ser a de considerar que ele, e apenas ele, é o credor do IBS. É o que ora se propõe. Estados e municípios auxiliam na fiscalização, em atuação por ele orquestrada, e recebem o produto da arrecadação (do mesmo modo que recebem parte da arrecadação de outros impostos federais), por critérios de partilha que levam em conta, precipuamente, o destino da operação.

Diz-se que IBS “submete-se ao princípio do destino”, mas isso não é rigorosamente verdadeiro. A rigor, o tributo submete-se a esse princípio quando a incidência se dá no destino, território no qual se dá a incidência da norma ali vigente, e a gênese da obrigação, tudo surgido no âmbito do ente público credor, competente para lançar e cobrar. Não é o que ocorre com o IBS. A incidência ocorre na origem, sendo o ente federativo em cujo território está o contribuinte aquele incumbido de fiscalizar, lançar, e até manter para si o valor das multas.

Depois de arrecadado o tributo e extinta a relação tributária, regras de Direito Financeiro cuidam da partilha do produto da arrecadação, e o fazem de modo a destinar aos entes de destino parcela significativa (mas não integral) do produto arrecadado. Há fundos, retenções, critérios que serão gradualmente alterados até quase o fim deste século, mas todos eles tratam do que será feito do dinheiro depois de arrecadado o tributo, não de quem é o seu credor. O dinheiro vai para o destino, mas a incidência não é no destino.

Quanto ao CG-IBS ser o “verdadeiro credor”, e não estados e municípios, outra mostra disso é que há, no PLP 108, até a previsão de um contencioso administrativo próprio para que estados e municípios questionem junto ao Comitê Gestor a correção dos recursos recebidos, contencioso cujo resultado pode ser judicializado (por eles) no único ponto em que a reforma tocou, em um primeiro momento, no assunto do processo judicial, ao alterar as competências originárias do STJ para o enfrentamento deste tema. Isso demonstra, claramente, que os estados e municípios vão pleitear junto ao Comitê Gestor a parcela de recursos que lhes cabe. Não se trata de “mero agente de arrecadação”, mas de órgão de natureza federal (tal como o Senado, que é federal mesmo composto de “representantes dos Estados”) que é credor do IBS e que repassa os recursos posteriormente aos entes subnacionais seguindo regras de Direito Financeiro, depois de exaurida a relação tributária da qual é o titular.

Insistir em alojar estados e municípios no seio da relação jurídica obrigacional tributária do IBS trará complicações insolúveis de ordem administrativa e principalmente processual. Inviabilizará inteiramente a tutela jurisdicional, pois ações declaratórias com possíveis repercussões no montante de IBS devido deverão, neste caso, agasalhar em seu polo passivo todos os entes federativos, sem exceção. Afinal, um dia o contribuinte poderá fazer uma venda para consumidor situado em município que não participou da demanda, e este dirá que a sua parcela do IBS não poderá ser calculada seguindo-se os termos determinados na sentença, cuja coisa julgada não se lhe aplica.

Daí por que também no âmbito judicial a parte legítima deve ser apenas o CG-IBS, inclusive para fins de expedição do precatório. Os ajustes, necessários a que se evitem distorções na partilha (por exemplo, arrecada-se valor destinado a um Estado, e depois se usa na restituição importância que seria destinada a outro Estado), podem ser feitos pelo CG-IBS, com uma conta corrente na qual pagamentos indevidos podem ser restituídos e os recursos a tanto necessários retidos ou destacados daqueles destinados aos mesmos entes federativos. Tal como se dá com o imposto de renda e o IPI, cujo credor é a União, mas que são repassados a estados e municípios. As diferenças são o percentual deste repasse (que no IBS é quase integral), a participação de representantes dos entes federativos no funcionamento do órgão federal (o CG-IBS), e a definição das alíquotas.

Que a proposta de solução para tais problemas, para além de atender a interesses corporativos de membros do Poder Judiciário e da advocacia pública, preocupe-se também com a finalidade última de tudo isto; vale dizer, estabeleça critérios, coerentes, que viabilizem a submissão à tutela jurisdicional de situações relativas ao novo imposto, e que atendam aos belos princípios positivados no §3º do artigo 145 da CF/88. Que a coerência seja lembrada, para que, com simplicidade, transparência, cooperação e justiça, nenhuma lesão ou ameaça a direito, inclusive dos cidadãos que sofrem a cobrança do IBS e se submetem à administração desse imposto, seja excluída da apreciação do Judiciário.

Mini Curriculum

é mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), ex-coordenador (2012/2016) do programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) da UFC, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena, na Áustria.

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