A suposta “fraude” no ressarcimento do ICMS-ST e a reforma tributária
Por Eduardo Salusse
14/08/2025 12:00 am
As manchetes da semana destacam uma suposta fraude envolvendo empresas varejistas, especialmente no setor farmacêutico e na revenda de eletrodomésticos, consistente na facilitação da devolução de créditos tributários de ICMS recolhidos no regime de substituição tributária.
Para melhor compreensão dos leitores, lembre-se de que o ICMS é um imposto que incide sobre operações de circulação de mercadorias e sobre a prestação de alguns serviços. Como regra, cada empresa recolhe o ICMS sobre suas próprias operações até que o produto ou serviço chegue ao consumidor final.
Todavia, por uma questão de controle fiscal, a lei pode atribuir a determinado contribuinte (chamado sujeito passivo por substituição) a obrigação de pagar o ICMS sobre sua própria operação (ICMS próprio) e, também, antecipar o pagamento do ICMS que será devido na operação subsequente da cadeia comercial (ICMS–Substituição Tributária ou simplesmente ICMS-ST). Essa previsão consta no artigo 150, parágrafo 7º, da Constituição Federal.
No caso concreto, seria como se o laboratório farmacêutico (fabricante) recolhesse o ICMS próprio da venda do medicamento para a farmácia (comerciante varejista) e, ainda, o ICMS devido pela farmácia quando da venda para o consumidor final (ICMS-ST). O fabricante atua como “substituto” do comerciante que, por sua vez, é “substituído” pelo fabricante na obrigação de pagar o ICMS.
Este último ICMS-ST, por ser exigido do fabricante (substituto) antes da operação futura de venda do medicamento pela farmácia (substituído), é calculado com base em valores presumidos, pois não se tem certeza do valor real de uma operação de venda futura.
Assim, quando a venda real ocorrer pelo comerciante substituído, o ICMS já terá sido pago pelo fabricante substituto. Ocorre que essa venda pode não acontecer ou acontecer por um valor maior ou menor daquele que serviu da base para o pagamento antecipado do ICMS-ST, pois, repita-se, foi calculado e pago antecipadamente com uma base de cálculo presumida.
Se a venda pelo comerciante substituído ocorrer por um valor maior do que aquele que serviu de base para o pagamento antecipado do ICMS-ST pelo fabricante substituto, o comerciante deve pagar o complemento.
De outro lado, se a venda pelo comerciante substituído não ocorrer ou ocorrer por um valor menor do que aquele que serviu de base para o pagamento antecipado do ICMS-ST pelo fabricante substituto, o comerciante tem direito ao ressarcimento do ICMS pago a maior.
Em suma, há direito ao ressarcimento se o fato gerador (venda) não ocorrer ou ocorrer de forma diversa (valor de venda menor do que o presumido), assegurando ao contribuinte o direito à restituição imediata e preferencial do que foi recolhido a mais.
O Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do RE 593.849/MG (Tema 201 da repercussão geral), consolidou que o contribuinte tem direito à restituição do ICMS-ST pago a maior, quando a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida. E aqui começa o problema e a “mea-culpa” dos Estados!
Para obter o ressarcimento, o Estado submete os contribuintes substituídos a um processo penoso, exigindo formalidades, fiscalizações e a disponibilidade de caixa do governo estadual. No Estado de São Paulo, o procedimento é regulado pelo Regulamento do ICMS (artigos 269 a 273) e pela Portaria CAT nº 42/2018. O contribuinte substituído deve identificar as operações elegíveis, calcular o valor exato do imposto retido em demasia ou relativo ao fato presumido não ocorrido, registrar essas operações na EFD (Escrituração Fiscal Digital), com uso dos registros C170, C176 e C197, gerar e validar um arquivo digital via o aplicativo pré validador, transmitir o arquivo ao Fisco e obter um visto eletrônico, escolher a modalidade de ressarcimento, aguardar a homologação e autorização para utilização.
Esse procedimento não é rápido, até porque não necessariamente há interesse econômico do Estado em agilizar o procedimento administrativo, visto que a autorização para ressarcir ou permitir a utilização acarreta queda de arrecadação. Além disso, o ICMS é devolvido de forma escritural, sem qualquer atualização monetária, o que pode corroer completamente os valores em um ambiente inflacionário e com taxas de juros superiores a 15% ao ano. Quanto mais demorar, maior o ganho financeiro do Estado em detrimento do contribuinte.
Nos casos noticiados, não há necessariamente um dano aos cofres públicos, pois aparentemente o ICMS-ST ressarcido pertence mesmo aos contribuintes, sendo um direito subjetivo inafastável. Se não ocorreu qualquer adulteração nos valores ressarcidos – escrevo “em tese” sem conhecer os detalhes do caso – o contribuinte é, na verdade, uma grande vítima financeira dos entraves estatais para ressarcir o que a ele pertence.
Essa vulnerabilidade dos contribuintes, que possuem milhões de reais pagos a maior a título de ICMS e não conseguem receber rapidamente o que lhes pertence, torna-os presas fáceis de consultores que prometem apoio para a solução do problema.
O sistema oferece mecanismos legais para o impor ao Estado a obrigação de ressarcir celeremente o ICMS aos contribuintes, sendo-lhes legítimo tomar as medidas legais cabíveis.
Todavia, a burocracia e a demora estatal são as tais “dificuldades que autorizam a venda de facilidades”. Nada disso ocorreria se o Estado cumprisse seu papel de forma eficiente, como determina o artigo 37 da Constituição Federal.
Essa ineficiência prejudica os contribuintes que enfrentam dificuldades financeiras e têm o direito de reaver um imposto indevido, mas acabam sufocados pela lentidão do sistema.
Cumprir todas as obrigações acessórias impostas pelo Estado é um desafio considerável. Os auditores fiscais são plenamente familiarizados com essa complexidade, incluindo documentos, burocracias e formulários intermináveis.
Nesse contexto, surgem consultores de diversas origens, oferecendo serviços para ajudar a estruturar os pedidos de ressarcimento e, de alguma forma, agilizar os seus deferimentos. Até aqui, nada de errado.
O que não se pode admitir é que “consultores” remunerados com comissões ou honorários sejam membros da administração fazendária, o que será regularmente apurado.
O novo sistema de tributação sobre o consumo deverá extirpar esse problema, na medida em que não mais existirá substituição tributária e os eventuais créditos serão ressarcidos de imediato pelo Comitê Gestor, atendendo ao primado da simplificação e da eficiência.
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