Projeto e-Trânsito: inovação jurídica e eficiência na locomoção aduaneira

Por Liziane Angelotti Meira, Rachel Freixo Chaves

05/08/2025 12:00 am

A crescente demanda por segurança, eficiência e rastreabilidade nas operações de comércio exterior tem impulsionado iniciativas disruptivas no Brasil. Entre elas, destaca-se o projeto e-Trânsito, concebido pela Alfândega da Receita Federal em Vitória (ALF/VIT), em parceria com o Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), com entidades do setor privado, com o governo do Espírito Santo e também com operadores logísticos. Trata-se de uma inovação no monitoramento de cargas em trânsito aduaneiro, com potencial para redefinir paradigmas na logística portuária e na fiscalização alfandegária nacional.

Contexto jurídico e normativo do trânsito aduaneiro
O regime de trânsito aduaneiro é regulamentado pela Instrução Normativa SRF nº 248, de 2002, e visa a permitir a circulação de mercadorias sob controle alfandegado entre zonas secundárias ou recintos alfandegados distintos. Conforme o artigo 315 e seguintes do Regulamento Aduaneiro (Decreto nº 6.759, de 2009), o regime permite o transporte de mercadorias com suspensão do pagamento de tributos, do ponto de origem ao destino, desde o desembaraço até sua efetiva conclusão.

Ainda que fundado em bases jurídicas sólidas, o modelo atual apresenta desafios operacionais, sobretudo no que se refere à complexidade procedimental e às limitações para fiscalização contínua ao longo do trajeto. Ademais, a ausência de acompanhamento contínuo ao longo do percurso fragiliza o controle e amplia a margem para ilícitos, impactando negativamente a confiança no sistema aduaneiro.

Concepção do projeto
O e-Trânsito nasce em resposta a esses problemas, o projeto propõe a implementação de um dispositivo eletrônico com tecnologia de georreferenciamento, sensores inteligentes e criptografia embarcada, capaz de monitorar em tempo real a localização e a integridade física de unidades de carga durante todo o seu trajeto aduaneiro. A iniciativa parte de um Acordo de Cooperação Técnica assinado em setembro de 2022 entre a Secretaria da Receita Federal do Brasil e o Ifes, e conta com apoio institucional e financeiro de diversas entidades do setor privado, do Governo do Estado do Espírito Santo e de órgãos da gestão aduaneira.

A integração entre academia, setor público e setor privado no âmbito do projeto constitui um modelo original de governança colaborativa em matéria aduaneira, posicionando-se como uma inovação intersetorial. A aliança entre ciência aplicada (representada pela academia), autoridade reguladora (Secretaria da Receita Federal do Brasil), ente fiscalizador (ALF/VIT), Governo do Estado do Espírito Santo e operadores logísticos (usuários do sistema) compõe um ecossistema de decisão e execução pública orientado por evidências. Esse arranjo institucional multifacetado é capaz de entregar um processo mais eficiente, eficaz e efetivo — os três pilares fundamentais de toda política pública orientada a resultados. Trata-se, portanto, de uma experiência exemplar de como a coordenação entre conhecimento técnico-científico, missão institucional e interesse público pode gerar soluções estruturais para gargalos históricos da administração aduaneira brasileira.

Inovações no Direito Aduaneiro e transformação digital
Além de seu caráter tecnológico, o e-Trânsito suscita reflexões relevantes sobre a reinterpretação normativa do regime especial de trânsito aduaneiro, conforme disposto nos artigos 315 e 316 do Regulamento Aduaneiro. Ao permitir o deslocamento de mercadorias com suspensão do pagamento de tributos entre pontos do território aduaneiro, sob estrito controle da administração, o regime exige garantias específicas de segurança e rastreabilidade. A substituição de lacres físicos por dispositivos eletrônicos de monitoramento em tempo real desafia o modelo tradicional de fiscalização e demanda a edição de regulamentação complementar que discipline a utilização dos dados telemáticos como instrumentos válidos de controle, prova e responsabilização tributária, em conformidade com os avanços tecnológicos aplicáveis à fiscalização aduaneira.

Spacca
Dessa forma, a transição depende de atuação normativa coordenada entre a Secretaria da Receita Federal do Brasil e os demais entes reguladores técnicos, como forma de assegurar a integridade do processo e a segurança jurídica dos intervenientes. A transição para dispositivos de rastreamento eletrônico implica não apenas avanços técnicos, mas um aprimoramento sensível em regras aduaneiras que historicamente se baseiam em documentos físicos, inspeção presencial, adequadas ao contexto tecnológico vigente à época. Com a adoção do e-Trânsito, a lógica de controle passa a ser centrada em dados e eventos, exigindo nova leitura dos princípios da fiscalização contínua, da presunção de veracidade documental e da materialidade da infração.

Nesse sentido, mostra-se necessária a incorporação de dispositivos normativos que atribuam valor probatório aos dados digitais transmitidos em tempo real, incluindo sua validade como fundamento para lançamento de crédito tributário, aplicação de sanções ou início de processos administrativos. O reconhecimento da equivalência funcional entre dados digitais e evidências físicas será condição essencial para que os dispositivos de rastreamento possam gerar efeitos jurídicos plenos e seguros no novo modelo fiscalizatório.

Desafios e oportunidades para o comércio exterior
A transformação promovida pelo e-Trânsito vai além da introdução de um novo aparato tecnológico. Ela se insere em um contexto mais amplo de mudança importante na Administração Aduaneira, com mais foco na promoção da conformidade, na valorização dos bons contribuintes e no fortalecimento do papel orientador da Receita Federal. Essa nova abordagem deve buscar reduzir a ênfase no viés punitivo e reforçar o caráter educativo e preventivo das ações fiscais, em linha com as diretrizes internacionais mais modernas de governança pública e justiça fiscal.

A ferramenta inovadora desenvolvida no âmbito do projeto, baseada em dados e geointeligência, permitirá uma atuação ainda mais direcionada e precisa contra contribuintes que descumprem dolosamente as normas tributárias e aduaneiras. Ao mesmo tempo, favorecerá aqueles que mantêm conduta regular, criando incentivos positivos à autorregularização e à previsibilidade dos procedimentos aduaneiros.

Além disso, espera-se que a adoção do e-Trânsito reduza significativamente os custos logísticos associados ao tempo de trânsito e à burocracia documental. Essa racionalização não apenas impactará positivamente a competitividade do comércio exterior brasileiro, mas também poderá resultar em menor custo sistêmico na cadeia de suprimentos, com efeitos favoráveis para a economia e para a competitividade e, em última instância, para a sociedade brasileira.

A implantação do e-Trânsito deve ainda ser interpretada no contexto da transformação digital em curso na Administração Tributária, marcada pelo uso crescente de tecnologias aplicadas à rastreabilidade e à conformidade fiscal. Inserido no marco da reforma tributária do consumo, o projeto responde à necessidade de um modelo mais moderno e transparente de arrecadação, no qual a circulação de mercadorias passa a ser acompanhada por dispositivos eletrônicos capazes de gerar dados seguros, em tempo real, com interoperabilidade entre sistemas e reforço da segurança jurídica.

Nesse mesmo sentido, o cenário internacional também impulsiona essa transição. A Organização Mundial das Aduanas (OMA) tem promovido o uso de dispositivos inteligentes, inteligência artificial e blockchain como instrumentos centrais para modernização das aduanas, especialmente diante da expansão do comércio eletrônico transfronteiriço. O e-Trânsito alinha-se a essas diretrizes e contribui para posicionar o Brasil nas cadeias logísticas digitais e na convergência regulatória com as melhores práticas internacionais.

Impactos jurídicos da digitalização dos procedimentos de fiscalização
A digitalização dos procedimentos de fiscalização no âmbito do comércio exterior representa uma inflexão estrutural no modelo jurídico-administrativo da atuação estatal. Ao substituir práticas baseadas em documentos físicos e presença fiscal in loco por mecanismos remotos, baseados em sensores e dados em tempo real, o e-Trânsito inaugura um novo patamar de responsabilidade jurídica fundamentada em evidências digitais.

No ordenamento jurídico brasileiro, a legalidade e a eficácia dos atos administrativos dependem da sua conformidade com os princípios constitucionais da eficiência, moralidade, segurança jurídica e legalidade (artigo 37, caput, da CF/88). Nesse sentido, os dispositivos digitais de monitoramento remoto poderão ser considerados instrumentos legítimos de controle e produção de prova administrativa, desde que haja previsão normativa adequada que regulamente sua validade, autenticidade e cadeia de custódia da informação.

Além disso, a integração de sistemas digitais exige interoperabilidade entre plataformas governamentais e privadas, o que impõe a necessidade de proteção jurídica dos dados trafegados e delimitação clara das responsabilidades em caso de falhas operacionais ou omissões de monitoramento. A adoção de protocolos de certificação digital e a regulamentação do uso de alertas automatizados como base para medidas sancionatórias representam pontos centrais dessa nova fase do Direito Aduaneiro digital.

Considerações finais e perspectivas futuras
O e-Trânsito sinaliza uma nova era para o comércio exterior brasileiro, baseada em inteligência logística, automação e rastreabilidade digital. Seu sucesso depende da articulação interinstitucional e da adaptação normativa para incorporar as inovações de forma segura, transparente e escalável. Trata-se de uma iniciativa que transcende a mera modernização tecnológica, inserindo o Brasil no cenário global de aduanas inteligentes, em consonância com as recomendações da Organização Mundial das Aduanas (OMA) e práticas adotadas por países de alto desempenho logístico.

A consolidação do projeto como política pública permanente exigirá marcos regulatórios consistentes, atualização de normativas infralegais e investimentos contínuos em capacitação institucional. Também será fundamental a articulação com os demais países do Mercosul e com organismos internacionais, a fim de garantir a interoperabilidade dos sistemas e a convergência regulatória em nível regional.

Por fim, à luz da crescente complexidade das cadeias logísticas globais, a digitalização do trânsito aduaneiro brasileiro por meio do e-Trânsito poderá projetar o país, mais uma vez, como referência em inovação fiscal, reforçando sua inserção segura, eficiente e competitiva nos fluxos internacionais de comércio.

Referências

1. Receita Federal do Brasil. Tomada de Subsídio – Especificação Técnica Lacre Eletrônico. Participa + Brasil. Disponível aqui.

2. Decreto nº 6.759, de 5 de fevereiro de 2009. Regulamenta a administração das atividades aduaneiras, e a fiscalização, o controle e a tributação das operações de comércio exterior. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 fev. 2009.

3. INSTITUTO FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO. Aditivo de valor Projeto e-Trânsito. Vitória: IFES, 2025. Documento interno.

4. ALFÂNDEGA DE VITÓRIA. Programação da Consulta Pública e-Trânsito. Vitória: Receita Federal, 2025. Disponível aqui.

5. FOLHA VITÓRIA. Nova plataforma da Receita deve agilizar fluxo de cargas no ES. 2 jul. 2025. Disponível aqui.

Mini Curriculum

Liziane Angelotti Meira
é presidente da 2ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

Rachel Freixo Chaves
é conselheira na 3ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e subsecretária de Estado de Competitividade na Secretaria de Desenvolvimento Econômico (Sedes) do governo do Espírito Santo, professora universitária e advogada (licenciada), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), mestre e doutoranda em Ciências Contábeis e Administração pela Fucape Business School, formada em Gestão ESG pelo Insper, defensora ativa da diversidade e inclusão nos setores corporativo e público e mãe de uma menina.

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