Supremo e o IOF nos contratos de conta corrente
Breno Vasconcelos e Nina Pencak
O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) analisou, em outubro, o RE 590.186 (Tema 104), de relatoria do ministro Cristiano Zanin. No recurso, coube à Corte responder uma questão principal: se é constitucional a incidência do IOF sobre operações de mútuo praticadas por empresas que não são instituições financeiras.
O recorrente argumentou que a Constituição, ao estabelecer a competência da União para tributar operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários, pretendeu alcançar apenas os fatos praticados por instituições financeiras. Assim, o legislador ordinário não poderia, como fez, via Lei nº 9.779/99, ir além e exigir o pagamento do IOF de empresas que eventualmente emprestam dinheiro, mas que não praticam operações financeiras como atividade-fim.
Dois interessados, a Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e a Associação Brasileira de Advocacia Tributária (Abat) – esta representada pelos autores deste artigo -, ingressaram no processo como amici curiae, robustecendo o pleito principal. Apresentaram, ainda, pedido inédito: a inconstitucionalidade dos atos praticados pela Receita Federal que equiparam os contratos de conta corrente aos contratos de mútuo.
Explicamos: os contratos de conta corrente são um usual mecanismo de otimização utilizado por grupos econômicos, formados por diferentes empresas com unidade de direção e objetivo comum.
Nos contratos de conta corrente, as empresas do grupo unificam seus caixas em um caixa único, facultado o acesso de todas aos valores, seja para o pagamento de despesas, seja para expansão de suas operações. Todas contribuem com o caixa comum e todas podem consumi-lo, não existindo obrigação de devolução dos recursos por uma parte a outra. É uma forma de gestão do caixa do grupo, cabendo a uma das empresas a tarefa de anotar os recursos consumidos do caixa único, e de prestar contas às demais periodicamente.
Assemelha-se à situação do casal que possui conta bancária conjunta: todos os meses seus salários são depositados nessa conta e utilizados para pagamentos comuns. Não significa que existam operações de mútuos recíprocos, mas apenas que, para conferir maior eficiência à gestão de seu orçamento familiar, decidiram criar um “caixa único”, em que seus caixas individuais são reunidos e ficam disponíveis para o consumo de ambos.
São evidentes as diferenças entre conta corrente e mútuo: no mútuo, a parte mutuante efetivamente sofre uma diminuição em seu caixa, que é transferido ao caixa da mutuária, aumentando-o; os recursos transferidos ficam, assim, indisponíveis para a mutuante; e a mutuária fica obrigada a devolvê-los ao final do prazo acordado.
Apesar da distinção, a Receita Federal, com base em atos infralegais, tem lavrado autos de infração para cobrar o IOF sobre as movimentações realizadas a partir de contratos de conta corrente, ao argumento de que essas transações configuram empréstimos.
No RE 590.186, o voto do ministro Cristiano Zanin definiu, quanto ao tema principal, que é possível a equiparação por lei dos mútuos praticados por instituições financeiras e por outras empresas, e que ambas as situações são passíveis de tributação pelo IOF.
Vale destacar a definição apresentada pelo ministro ao conceito de mútuo: “negócio jurídico realizado com a finalidade de se obter, junto a terceiro e sob liame de confiança, a disponibilidade de recursos que deverão ser restituídos após determinado lapso temporal, sujeitando-se aos riscos inerentes”.
Quanto à diferença entre mútuo e conta corrente, o relator afirmou que, apesar de relevante, trata-se de matéria infraconstitucional e que demanda a análise de fatos e provas, não podendo ser analisada pelo STF.
No entanto, o ministro Zanin não se furtou a apresentar definição do que seria o conta corrente: “contratos (…) entre empresas de um mesmo grupo econômico, mediante a reunião de seus caixas individuais em um caixa único, ao qual todas têm acesso para o pagamento de gastos e realização de investimentos”.
Com base nesses fundamentos, conclui-se que o STF não se pronunciou sobre a constitucionalidade da incidência de IOF sobre os contratos de conta corrente, não produzindo precedente sobre a matéria, de modo que o tema continua sem resposta definitiva do Judiciário. Por outro lado, o relator, acompanhado pelos demais ministros, articulou conceitos diferentes para mútuo e para conta corrente.
Assim, tanto o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) quanto a Justiça Federal podem e devem exercer o seu livre convencimento sobre o assunto – inclusive se utilizando dos conceitos apresentados pelo ministro Zanin para diferenciar as situações. O Conselho e o Judiciário, por sua vez, não podem e não devem aplicar a tese firmada no Tema 104 de forma automática aos contratos de conta corrente.
Vale dizer, a decisão do STF no RE 590.186 intensificou o ônus probatório da Receita Federal (e, por consequência, do Carf e de todo o Judiciário), afastando a possibilidade de simplesmente considerar que o contrato de conta corrente abarca diversas situações de empréstimo.
Breno Vasconcelos e Nina Pencak
respectivamente, sócio na área tributária do Mannrich e Vasconcelos Advogado; e sócia na área tributária em Brasília do Mannrich e Vasconcelos Advogados