STJ autoriza sequestro de bens em processo de sonegação fiscal
Por Adriana Aguiar — De São Paulo
Uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) acendeu um sinal de alerta sobre a possibilidade de sequestro de bens – mesmo de origem lícita e anteriores ao crime – em processos de sonegação fiscal. O entendimento foi adotado pela 5ª Turma no caso de um sócio de uma empresa, acusada de suprimir ou reduzir o pagamento de ICMS-ST (substituição tributária) em valor superior a R$ 12 milhões no Estado de Minas Gerais.
Os ministros levaram em consideração o Decreto-lei nº 3.240, de 1941. O artigo 1º prevê a possibilidade de sequestro de qualquer bem pertencente a acusados por crimes que gerem prejuízo para a Fazenda Pública. A medida é adotada para resguardar o patrimônio do réu (bens móveis ou imóveis) e garantir o pagamento de uma eventual condenação.
Para advogados, a norma teria sido revogada pelo Código de Processo Penal (CPP) e a medida não poderia ser aplicada sobre bens adquiridos de forma lícita. Pela decisão, porém, podem ser destinados até mesmo para pagar juros e multas do processo.
Segundo o voto do relator, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a jurisprudência do STJ “é assente no sentido de que o Decreto-Lei nº 3.240/41 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, continua sendo aplicável e não foi revogado pelo Código de Processo Penal”.
Ele cita dois precedentes. Um de novembro de 2020, da 5ª Turma, que determinou o sequestro de bens de um suposto membro de uma organização criminosa (AgRg nos EDcl no REsp 1.883.430/PR), e outro de agosto de 2015, da 6ª Turma (AgRg no RMS 24.083), que também estabeleceu a medida em um caso que tratou de crime contra a ordem tributária em conexão com outros crimes federais.
Para o ministro, a medida “pode recair sobre quaisquer bens dos requerentes e não apenas sobre aqueles que sejam produtos ou proveito do crime, mostrando-se, assim, desnecessária qualquer discussão sobre o fato de os bens estarem ou não alienados e de terem sido adquiridos antes da prática delitiva”.
Por fim, acrescenta na decisão que o valor devido é definido no momento da constituição do crédito tributário, no qual são incluídos juros e multa legalmente devidos pelo não recolhimento do tributo, “não havendo, portanto, como se admitir que o sequestro exclua juros e multa” (AgRg no RMS 67157).
O julgamento despertou a atenção de advogados. Especialista na área criminal, Alexandre Pacheco Martins, do Pacheco Martins Advogados, afirma que a decisão da 5ª Turma é preocupante, apesar de o STJ já ter abordado de forma mais genérica o tema em outros julgados, citados na decisão.
Em regra, segundo o advogado, tem sido comum sócios e administradores serem acusados de crime de sonegação fiscal pelo não recolhimento ou recolhimento a menor de tributos. “Praticamente todas as empresas têm discussões fiscais. E essa decisão abre margem para se atingir o patrimônio de pessoas que estão alheias ao fato em si”, diz Martins. Ele cita como o exemplo a esposa de um diretor financeiro, que poderia ter seu imóvel, que nada tem a ver com a empresa, sequestrado.
A consequência prática, afirma o advogado, é uma espécie de desconsideração automática da personalidade jurídica. “Ao invés de se buscar o bloqueio de bens das pessoas jurídicas eventualmente devedoras, permite-se a incursão direta no patrimônio dos empresários.”
Para Martins, não faz sentido aplicar essa norma de 1941, que teria sido revogada pelo atual Código de Processo Penal. O CPP estabelece apenas, acrescenta, o bloqueio de bem de origem comprovadamente ilícita.
O julgado ainda vai além, de acordo com ele, ao determinar que os bens podem ser bloqueados não só para reparar os eventuais prejuízos gerados para o Fisco, mas também para o pagamento de multas e custas do processo criminal. “Ou seja, para garantir uma futura e incerta condenação, colocando em segundo plano o princípio da presunção de inocência.”
Martins recomenda, para evitar essas situações, que se faça um monitoramento minucioso dos processos fiscais da empresa. Desde os procedimentos administrativos, acrescenta, para diminuir repercussões penais que possam atingir os bens.
O advogado criminalista Davi Tangerino, do Davi Tangerino & Salo de Carvalho, afirma que o que mais preocupa é o alcance de pagamento até mesmo de juros e multas com bens sequestrados. Para ele, essas multas por sonegação podem gerar a autos de infração um acréscimo de até 300% do valor devido. “Essa multa não pode ser considerada como dano ao erário, mas uma sanção”, diz.
A decisão, de acordo com ele, ainda causa estranhamento porque foi tomada em um processo que não demandava urgência, sem indícios de que esse bloqueio era necessário e com base nessa lei antiga. “Se não existe o perigo da demora, por que fazer uma exceção deste tamanho, sem levar em conta a presunção de inocência?”, questiona.
No entendimento do advogado Rogério Taffarello, sócio do Mattos Filho Advogados, a aplicação de um decreto, de 1941, de uma fase autoritária do governo brasileiro e que claramente viola a presunção de inocência, direito mais fundamental da legislação penal, realmente desperta atenção. Ele ressalta que o artigo 2º, por exemplo, prevê o sequestro de bens sem mesmo fazer audiência e ouvir a parte, ou seja sem contraditório e ampla defesa. “O decreto mais parece trabalhar com presunção de culpa do que de inocência”, diz.
Taffarello afirma que nos sequestros de bens precisam estar presentes as demonstrações de que o acusado está se desfazendo de bens e dinheiro, que poderiam frustrar o pagamento de uma eventual condenação. E, ainda nesses casos, o artigo 125 do Código de Processo Penal e o inciso II do artigo 91 do Código Penal ressaltam que só pode haver sequestro de bem oriundo da prática do crime.