Livro ou software: o alcance da imunidade tributária
Tathiane Piscitelli
Na edição de ontem este Valor noticiou decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) que reconheceu a imunidade tributária de empresa de software, sob o fundamento de que a finalidade do serviço prestado se alinhava com o texto do artigo 150, inciso VI, alínea “d” da Constituição, que afasta a tributação, via impostos, de livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão.
Segundo a reportagem, o caso trata da possibilidade de incidência do ISS sobre o acesso, via plataforma digital, a informações técnicas automotivas. A tecnologia envolve a computação em nuvem, razão pela qual o município de Florianópolis enquadrou a atividade como licença de uso de software, tributada, naquela jurisdição, à alíquota de 2%.
Como fundamento para afastar a tributação, o TJ-SC vale-se do precedente firmado pelo Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de aplicação da imunidade em referência a “ferramentas digitais que visam a transmissão de educação, cultura e informação”.
O caso concreto enfrentado em Santa Catarina é apenas um dos muitos exemplos em que a extensão da imunidade dos livros, jornais e periódicos é colocada à prova. Com a pandemia da covid-19, o ensino remoto invadiu muitas casas e, com ele, aplicativos e plataformas digitais voltados à aprendizagem infanto-juvenil. Um olhar meramente formal, que desconsidera o conteúdo desses serviços, resultaria na classificação de tais instrumentos como programas de computador, especialmente porque o contrato que suporta o acesso de professores e alunos é a licença de uso. A tributação pelo ISS seria, portanto, o caminho adequado.
O raciocínio, contudo, é equivocado, por desconsiderar o sentido inerente a tais licenças de uso. O objetivo desses programas é proporcionar aos alunos e alunas novas formas de aprendizagem – se, antes, os cálculos matemáticos eram feitos em cadernos e por meio de livros didáticos, agora há outros instrumentos capazes de complementar o ensino de modo mais interativo: competições lúdicas entre estudantes, exercícios virtuais, recompensas pelo atingimento de metas e níveis de aprendizado, entre outras.
Ainda que formalmente o acesso se dê via licença de uso de software, não há como negar que estamos diante de uma ferramenta de ensino que pode ser equiparada a um livro ou a uma apostila
— Tathiane Piscitelli
Ainda que formalmente o acesso se dê via licença de uso de software, não há como negar que estamos diante de uma ferramenta de ensino que pode ser equiparada a um livro ou a uma apostila. A definição de livro é um problema interpretativo complexo e há muitas hipóteses situadas na zona cinzenta desse conceito.
O caso do “Drinkable Book”, comercializado pela iniciativa “WATERisLIFE”, que visa possibilitar o acesso à água potável a populações em situação de vulnerabilidade econômica; o exemplo do Lululux, criado por Gustavo Piqueira, que traz um “conjunto narrativo de jantar” impresso em guardanapos, jogo americano e porta-copos; e, ainda, os “livros-brinquedo”: são todas situações em que há uma disputa argumentativa sobre o que poderia ser considerado livro e os limites mais objetivos da imunidade tributária.
Todavia, os casos de plataformas digitais em que há efetiva difusão de conhecimento não se encaixam nessa zona cinzenta. Nessas hipóteses há apenas a mudança no suporte que apresenta a informação. Nos livros e apostilas tradicionais, esse suporte é físico; contudo, com a evolução das novas tecnologias, é cada vez mais frequente o uso do ambiente digital para a promoção de atividades que antes eram realizadas em papel. Não reconhecer a imunidade nesses casos representaria, em um futuro muito próximo, mitigação bastante significativa da regra constitucional, já que o avanço tecnológico é realidade irrefutável.
Por fim, isso não afasta a necessidade de refletirmos sobre critérios que auxiliem na identificação do que seja livro ou periódico, especialmente à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Julgados passados, que conferiram imunidade aos álbuns de figurinha, às listas telefônicas e, mais recentemente, às cartas Pokemón, são úteis para nos auxiliar nessa construção de um ambiente com maior segurança jurídica e garantia de aplicação das regras constitucionais.
Fonte: Valor
Tathiane Piscitelli
Professora de direito tributário e finanças públicas da Escola de Direito de São Paulo da FGV, é doutora e mestre em direito pela Faculdade de Direito da USP