Incide Imposto de Renda nos acordos de leniência e nas colaborações premiadas?

Fernando Facury Scaff

Grande parte das questões jurídicas somente são resolvidas se observados diversos aspectos do problema, e não apenas se analisados por uma disciplina ou área isolada de estudos jurídicos. É o caso ora sob análise: Deve ser cobrado imposto de renda sobre as receitas identificadas em decorrência de acordos de leniência ou de colaboração premiada?

Estas linhas não analisam nenhum caso concreto; apenas especulam sobre as possíveis hipóteses que podem vir a ser encontradas, sem pretender esgotar o tema.

Pode-se dizer, com alguma atecnia, que os acordos de leniência se aproximam de uma versão empresarial das colaborações premiadas, instituto relacionado ao Direito Penal e aplicável a pessoas físicas. Ambas se relacionam às atividades de controle financeiro e orçamentário previstas no arts 70 e seguintes da CF, com fortes reflexos criminais. Na Lei 12.850/2013 encontram-se os acordos de colaboração premiada (artigo 3º e ss), e na Lei 12.846/2013, conhecida como Lei da compliance ou Lei Anticorrupção, estão previstos os acordos de leniência (artigo 16 e ss.).

A introdução dos acordos de leniência ocorreu na legislação brasileira no ano 2000, por meio da Medida Provisória 2.055, alterando a Lei 8.884/94, que tratava do sistema de regulação da concorrência econômica, e que deveria ser realizado através do braço administrativo daquele sistema, que era a Secretaria de Direito Econômico (SDE) todo esse sistema já foi fortemente alterado.

Acordos de leniência visam celebrar ajustes com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos ou fatos investigados, desde que colaborem efetivamente com as investigações. Busca-se a identificação dos demais envolvidos na infração, ou, de forma célere, a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação (Lei 12.846/2013, artigo 16).

Tais tipos de acordo são tão incisivos que, na colaboração premada, até mesmo a denúncia criminal poderá deixar de ser oferecida pelo Ministério Público (Lei 12.850/2013, artigo 4º, parágrafo 4º), o que pressupõe uma ampla relativização da reserva legal penal. A colaboração poderá ocorrer até mesmo após a sentença (artigo 4º, parágrafo 5º), reduzindo a pena já aplicada.

Existem lacunas na Lei 12.846/13, pois, quem será “a autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública”, prevista pelo artigo 16? No âmbito do Poder Executivo Federal sabe-se ser a CGU (artigo 17), mas os outros órgãos, como o TCU e o MP, devem necessariamente participar do acordo?

No âmbito da colaboração premiada é certo que os acordos precisam ser homologados pelo Judiciário (Lei 12.850/2013, artigo 4º, parágrafo 7º), o qual será responsável por “conceder os benefícios pactuados” (artigo 4º, parágrafo 7º-A).

É indiscutível que tais normas abrem ampla possibilidade para o exercício de discricionaridade judicial e administrativa uma vez obedecidos certos pressupostos contidos na lei, mas que possuem textura normativa aberta. Basta um exemplo contido na Lei 12.850/2013 (art. 4º. parágrafo 1º): como se identificar que “a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração”, se não for através do exercício discricionário? Embora desnecessário, lembra-se que existem diferenças entre discricionário e arbitrário.

Essa textura aberta da norma é que deve ser considerada fortemente na presente análise, pois ela concede ao juiz ampla margem de atuação acerca de diversos direitos fundamentais individuais, com destaque para a liberdade (locus privilegiado do direito penal), e para a propriedade (estudada por diversas áreas do direito, dentre elas o tributário).

Embora o TCU queira saber onde está esse dinheiro, constata-se que muitos bilhões já foram recuperados por meio desses acordos de delação premiada, além de terem sido comutados um sem-número de dias de cerceamento de liberdade.

Aqui se retorna à análise tributária. Será devido IR nessas hipóteses? Analisemos algumas situações com foco nas delações premiadas (pessoas físicas), que podem ser adaptadas para os acordos de leniência (pessoas jurídicas).

João escondeu do Fisco receitas no valor de R$ 100, que só vieram a ser descobertas em razão do acordo de delação premiada que previu, dentre outros aspectos, que os R$ 100 deveriam ser integralmente devolvidos ao Erário — e o dinheiro foi integralmente devolvido. Deve incidir IR sobre todo o montante que havia sido recebido e ocultado?

Feita uma cisão interpretativa e observada apenas a ótica existente entre o Fisco e os contribuintes, próprio das relações tributárias, João terá recebido o dinheiro e terá que pagar o IR, sem haver qualquer importância no fato de que ele o devolveu na íntegra. Seriam etapas estanques a serem analisadas, sem comunicação entre elas. Exatamente como vem sendo decidido pelo Carf, com base em argumentos sobre (1) tributação do ato ilícito, (2) princípio do non olet e (3) análise seccionada do ato tributário, que considera a posterior devolução dos recursos um aspecto posterior e irrelevante na análise.

Todavia, observemos os fatos sob um prisma holístico, que englobe todos os fatos envolvidos, sem seccionamentos entre as disciplinas jurídicas. É fato que João recebeu R$ 100 e os ocultou do Fisco Federal. Todavia, nesta hipótese sob análise, este valor só foi descoberto em razão da delação premiada realizada por João, que, inclusive, transferiu todo o dinheiro ao Tesouro, de comum acordo com as autoridades competentes. Será que João deverá pagar o IR sobre os R$ 100, que escondeu, depois revelou e os devolveu em sua íntegra à Fazenda Pública, por força de acordo previsto em lei?

Entendo que não, sob distintos argumentos jurídicos, e não apenas tributários. Deve-se considerar que João (1) teve um autêntico perdimento dos bens ocultados e que, (2) ainda mais importante, cumpriu o que foi acordado com as autoridades envolvidas, inclusive as judiciais que homologaram o acordo. Se as autoridades quisessem receber os R$ 100 e mais o Imposto sobre a Renda deveriam deixar isso claro na composição realizada, afinal, existe uma relação de custo/benefício em cada qual desses acordos. Cobrar posteriormente o imposto de renda, que passou in albis pela análise de todas as autoridades envolvidas, é (3) infringir a boa-fé que deve presidir tais acordos, e se caracteriza como uma pegadinha fiscal, quase que uma violação da confiança recíproca que deve presidir essas relações, infringindo o princípio da não-surpresa, além de (4) penalizar João duas vezes pelos mesmos fatos, ocasionando (5) o uso do tributo com efeito confiscatório, o que é vedado pela Constituição (art. 150, IV), e (6) caracteriza a incidência tributária como sanção de um ato ilícito, o que é igualmente proibido (art. 3º, CTN).

Logo, é incabível a tributação pelo IR nesta hipótese aventada.

Vejamos situações semelhantes. João ocultou R$ 100, mentirosamente revelou às autoridades que havia ocultado apenas a metade, a qual devolveu. Posteriormente as autoridades descobriram a maracutaia de João: ele haverá de pagar IR sobre essa metade ocultada e não revelada? Ainda assim penso que não, pelos mesmos argumentos – mas o dinheiro deve ser objeto de perdimento fiscal. Tal análise passa pelo art. 5º, incisos XLV e XLVI, CF, e não encontra aqui espaço para seu desenvolvimento.

Ou hipótese: João ocultou R$ 100, revelou às autoridades que havia ocultado R$ 100, e foi firmado um acordo para que ele devolvesse apenas R$ 70. Haverá IR sobre os R$ 30 que ficaram com João? Mesmo nesta hipótese penso que não deve haver tributação pelo IR, pelos mesmos argumentos acima expostos — embora, neste caso, penso ser necessário analisar com lupa a racionalidade da conduta dessas autoridades.

Claro que, modificados os fatos, a análise necessita ser revisitada.

Imagine-se que João tenha usado uma parte do dinheiro ocultado para comprar joias para sua namorada — seguramente dever-se-á analisar, além da tributação sobre a renda, a tributação sobre doações — abstraindo a análise de coautoria em algum ilícito criminal.

Enfim, em todas essas hipóteses grosseiramente apresentadas não me parece haver incidência de tributação sobre a renda. Todavia, analisados apenas por um lado da moeda, tais situações demonstram apenas a face de César, isto é, de quem deve receber o tributo.

Ocorre que os fatos não vêm carimbados para serem analisados apenas por uma disciplina jurídica, mas devem ser considerados em sua completude e integridade, isto é, pelo Direito como um todo. A segmentação de conhecimento muitas vezes é perniciosa e dificulta a visão e a solução dos problemas. Vê-se a árvore, mas não se avista a floresta. Fonte Conjur

Fernando Facury Scaff

Professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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