40 funcionários para calcular os impostos
O tamanho da equipe mantida por uma empresa como a Ambev para atender o Fisco é o melhor retrato das distorções do sistema tributário brasileiro
Masao Goto Filho
Bar em São Paulo: o setor de bebidas é um dos que sofrem taxação pesada no país
Por Maria Teresa de Souza
Na época da inflação descontrolada no país, os departamentos financeiros das grandes empresas se agigantaram e adquiriram importância estratégica. Afinal, era preciso proteger o dinheiro da rápida desvalorização. Com a estabilização da economia, essas superestruturas perderam o sentido e, por isso, foram sendo gradativamente desidratadas. Hoje, a área tributária das maiores companhias passa por um processo semelhante de inchaço e aumento de importância nas corporações. Isso se tornou uma questão de sobrevivência para elas num ambiente que não se destaca apenas pela voracidade do Fisco mas também por uma teia de impostos cada vez mais complexa e irracional. Na última década, a carga tributária passou de 28% para quase 40% do PIB. Nesse mesmo período, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), ocorreu uma média de 1,5 mudança nas regras tributárias por hora no Brasil. “Manter um grande time de profissionais para cuidar do desafio de estar em dia com o Fisco não é mais uma opção, e sim uma necessidade das empresas”, afirma o advogado Gilberto Luiz do Amaral, presidente do IBPT.
A real dimensão que o departamento tributário adquiriu nas grandes empresas do país fica evidente na comparação com o cenário encontrado no exterior. “Em nenhum outro lugar do mundo es sa área mobiliza uma estrutura semelhante”, afirma Ricardo Melo, diretor de tributos da cervejaria Ambev (no 3 no ranking das 500 maiores de MM). De acordo com os dados de MELHORES E MAIORES, a Ambev foi a companhia privada que mais pagou impostos no Brasil no ano passado, arcando com um total de 3,7 bilhões de dólares em despesas nessa área. (A campeã absoluta no pagamento de impostos é a Petrobras, com 20,3 bilhões de dólares pagos em 2006.) Para realizar os cálculos e cuidar da burocracia necessária ao atendimento ao Fisco, a Ambev mantém uma equipe de 40 funcionários. Na maior parte do tempo, eles cuidam de operações triviais, como o preenchimento de formulários e a checagem das normas. A título de comparação, a matriz da cervejaria, a Inbev, na Bélgica, mantém um time de apenas dez pessoas para executar a mesma função. “Já tentei explicar várias vezes a nossos executivos na Europa como funciona por aqui a arrecadação de tributos como o ICMS, mas eles não conseguem entender”, diz Melo.
Da estrutura mantida atualmente pela Ambev na área tributária, nada menos que 35 funcionários dedicam-se exclusivamente ao cálculo e ao pagamento do ICMS, que tem leis e alíquotas próprias em cada um dos 27 estados da federação. Os valores a ser pagos podem variar 100%, e as datas de recolhimento são diferentes. Por incrível que pareça, o trabalho não termina aí. Depois dos acertos de contas, é preciso armazenar todos os recibos durante um bom período de tempo. Isso ocorre porque, não raro, a Receita Federal cobra dívidas já pagas. Quando isso acontece, a empresa precisa se explicar e comprovar a quitação do tributo, sob o risco de entrar para a lista de fraudadores do Fisco. Diante desse cenário, companhias como a Souza Cruz contratam empresas terceirizadas para cuidar do arquivo de sua papelada tributária por cinco anos. Segundo levantamento de MELHORES E MAIORES, a Souza Cruz é a sétima maior pagadora de impostos do Brasil. No ano passado, ela deixou 2,1 bilhões de dólares nas malhas do Fisco.
De acordo com os dados deste anuário, as 500 maiores empresas do país são responsáveis hoje por 30% de toda a arrecadação de tributos. Esse não é o único custo para estar em dia com o Fisco. Um estudo realizado em 2005 pela consultoria PricewaterhouseCoopers estimou os gastos com a manutenção dos departamentos tributários de 74 grandes empresas brasileiras das áreas de consumo e varejo. A conclusão é impressionante. Segundo o levantamento, o conjunto de companhias avaliadas desembolsa por ano um total de 12 bilhões de dólares nesse tipo de trabalho — quase quatro vezes a média internacional. “Costumo dizer que somos uma empresa geradora de impostos que, por acaso, faz cerveja”, afirma Melo, da Ambev.
Para aumentar ainda mais o grau de surrealismo da situação, muitas das maiores pagadoras de tributos do país concorrem em seus respectivos mercados com empresas que conseguem preços mais baixos por meio da sonegação de impostos, incluindo os trabalhistas. A indústria de bebidas e a de cigarros estão entre as áreas mais problemáticas — até pelo tamanho da carga tributária imposta. Em 2005, uma operação da Polícia Federal resultou na prisão por dez dias dos donos da Schincariol (no 235 na lista das 500 maiores de MM), incluindo o presidente da companhia, Adriano Schincariol. Na época, a empresa ocupava o posto de terceira maior cervejaria do país. A acusação era que eles mantinham um esquema de sonegação responsável pelo desvio de 1 bilhão de dólares. Essa dívida continua em discussão até hoje.
Mais recentemente, em junho, foi a vez de o mercado brasileiro de cigarros entrar na mira de uma grande operação da Polícia Federal. Um dos principais alvos dos agentes são as marcas que estariam sonegando o imposto sobre produtos industrializados utilizando-se de empresas de fachada. De acordo com estimativas dos especialistas, cerca de 30% das vendas de cigarros no Brasil são dominadas hoje pelo mercado ilegal. Isso representa por ano aproximadamente 39 bilhões de unidades de cigarros — quase o total consumido num mercado como o da Argentina.
É opinião unânime de especialistas que essas distorções só vão ser resolvidas com uma profunda reforma tributária no Brasil. Como não há perspectivas de que o assunto avance com a rapidez desejada no Congresso Nacional, as empresas têm procurado caminhos legais para tentar aliviar essa carga de tributos. O mais comum deles é a contratação de assessorias tributárias e jurídicas para assegurar que serão pagos apenas os impostos efetivamente devidos. Nos últimos anos, a procura por esses serviços no Brasil cresceu acima da média internacional. Muitas vezes, esses escritórios orientam seus clientes a questionar na Justiça a forma de cobrança e os valores de alguns tributos. De acordo com o estudo da PricewaterhouseCoopers de 2005, 80% das companhias ouvidas tinham movido na época processos questionando o pagamento do PIS ou da Cofins.
Outro dado revelador da pesquisa é a quantidade de empresas que se mostraram dispostas a aceitar planejamentos tributários mais heterodoxos, no limite da ilegalidade, caso isso contribua para aliviar o peso do Fisco sobre suas atividades. Na mostra da Price, quase 10% das empresas ouvidas confessaram que se sentiam tentadas a seguir esse caminho. Ele não é aconselhado por especialistas sérios. “Muitas vezes, depois de uma decisão judicial, a companhia tem de devolver para a União um montante importante e não tem dinheiro em caixa preparado para isso”, afirma Amaral, do IBPT. A vontade de tentar uma solução diferente pode ser interpretada como fruto do desespero diante de uma situação tributária sufocante. Não chega a ser surpreendente esse tipo de tendência num país em que uma empresa precisa ter quatro dezenas de funcionários apenas para calcular e pagar em dia os impostos.
Masao Goto Filho
Bar em São Paulo: o setor de bebidas é um dos que sofrem taxação pesada no país
Por Maria Teresa de Souza
Na época da inflação descontrolada no país, os departamentos financeiros das grandes empresas se agigantaram e adquiriram importância estratégica. Afinal, era preciso proteger o dinheiro da rápida desvalorização. Com a estabilização da economia, essas superestruturas perderam o sentido e, por isso, foram sendo gradativamente desidratadas. Hoje, a área tributária das maiores companhias passa por um processo semelhante de inchaço e aumento de importância nas corporações. Isso se tornou uma questão de sobrevivência para elas num ambiente que não se destaca apenas pela voracidade do Fisco mas também por uma teia de impostos cada vez mais complexa e irracional. Na última década, a carga tributária passou de 28% para quase 40% do PIB. Nesse mesmo período, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), ocorreu uma média de 1,5 mudança nas regras tributárias por hora no Brasil. “Manter um grande time de profissionais para cuidar do desafio de estar em dia com o Fisco não é mais uma opção, e sim uma necessidade das empresas”, afirma o advogado Gilberto Luiz do Amaral, presidente do IBPT.
A real dimensão que o departamento tributário adquiriu nas grandes empresas do país fica evidente na comparação com o cenário encontrado no exterior. “Em nenhum outro lugar do mundo es sa área mobiliza uma estrutura semelhante”, afirma Ricardo Melo, diretor de tributos da cervejaria Ambev (no 3 no ranking das 500 maiores de MM). De acordo com os dados de MELHORES E MAIORES, a Ambev foi a companhia privada que mais pagou impostos no Brasil no ano passado, arcando com um total de 3,7 bilhões de dólares em despesas nessa área. (A campeã absoluta no pagamento de impostos é a Petrobras, com 20,3 bilhões de dólares pagos em 2006.) Para realizar os cálculos e cuidar da burocracia necessária ao atendimento ao Fisco, a Ambev mantém uma equipe de 40 funcionários. Na maior parte do tempo, eles cuidam de operações triviais, como o preenchimento de formulários e a checagem das normas. A título de comparação, a matriz da cervejaria, a Inbev, na Bélgica, mantém um time de apenas dez pessoas para executar a mesma função. “Já tentei explicar várias vezes a nossos executivos na Europa como funciona por aqui a arrecadação de tributos como o ICMS, mas eles não conseguem entender”, diz Melo.
Da estrutura mantida atualmente pela Ambev na área tributária, nada menos que 35 funcionários dedicam-se exclusivamente ao cálculo e ao pagamento do ICMS, que tem leis e alíquotas próprias em cada um dos 27 estados da federação. Os valores a ser pagos podem variar 100%, e as datas de recolhimento são diferentes. Por incrível que pareça, o trabalho não termina aí. Depois dos acertos de contas, é preciso armazenar todos os recibos durante um bom período de tempo. Isso ocorre porque, não raro, a Receita Federal cobra dívidas já pagas. Quando isso acontece, a empresa precisa se explicar e comprovar a quitação do tributo, sob o risco de entrar para a lista de fraudadores do Fisco. Diante desse cenário, companhias como a Souza Cruz contratam empresas terceirizadas para cuidar do arquivo de sua papelada tributária por cinco anos. Segundo levantamento de MELHORES E MAIORES, a Souza Cruz é a sétima maior pagadora de impostos do Brasil. No ano passado, ela deixou 2,1 bilhões de dólares nas malhas do Fisco.
De acordo com os dados deste anuário, as 500 maiores empresas do país são responsáveis hoje por 30% de toda a arrecadação de tributos. Esse não é o único custo para estar em dia com o Fisco. Um estudo realizado em 2005 pela consultoria PricewaterhouseCoopers estimou os gastos com a manutenção dos departamentos tributários de 74 grandes empresas brasileiras das áreas de consumo e varejo. A conclusão é impressionante. Segundo o levantamento, o conjunto de companhias avaliadas desembolsa por ano um total de 12 bilhões de dólares nesse tipo de trabalho — quase quatro vezes a média internacional. “Costumo dizer que somos uma empresa geradora de impostos que, por acaso, faz cerveja”, afirma Melo, da Ambev.
Para aumentar ainda mais o grau de surrealismo da situação, muitas das maiores pagadoras de tributos do país concorrem em seus respectivos mercados com empresas que conseguem preços mais baixos por meio da sonegação de impostos, incluindo os trabalhistas. A indústria de bebidas e a de cigarros estão entre as áreas mais problemáticas — até pelo tamanho da carga tributária imposta. Em 2005, uma operação da Polícia Federal resultou na prisão por dez dias dos donos da Schincariol (no 235 na lista das 500 maiores de MM), incluindo o presidente da companhia, Adriano Schincariol. Na época, a empresa ocupava o posto de terceira maior cervejaria do país. A acusação era que eles mantinham um esquema de sonegação responsável pelo desvio de 1 bilhão de dólares. Essa dívida continua em discussão até hoje.
Mais recentemente, em junho, foi a vez de o mercado brasileiro de cigarros entrar na mira de uma grande operação da Polícia Federal. Um dos principais alvos dos agentes são as marcas que estariam sonegando o imposto sobre produtos industrializados utilizando-se de empresas de fachada. De acordo com estimativas dos especialistas, cerca de 30% das vendas de cigarros no Brasil são dominadas hoje pelo mercado ilegal. Isso representa por ano aproximadamente 39 bilhões de unidades de cigarros — quase o total consumido num mercado como o da Argentina.
É opinião unânime de especialistas que essas distorções só vão ser resolvidas com uma profunda reforma tributária no Brasil. Como não há perspectivas de que o assunto avance com a rapidez desejada no Congresso Nacional, as empresas têm procurado caminhos legais para tentar aliviar essa carga de tributos. O mais comum deles é a contratação de assessorias tributárias e jurídicas para assegurar que serão pagos apenas os impostos efetivamente devidos. Nos últimos anos, a procura por esses serviços no Brasil cresceu acima da média internacional. Muitas vezes, esses escritórios orientam seus clientes a questionar na Justiça a forma de cobrança e os valores de alguns tributos. De acordo com o estudo da PricewaterhouseCoopers de 2005, 80% das companhias ouvidas tinham movido na época processos questionando o pagamento do PIS ou da Cofins.
Outro dado revelador da pesquisa é a quantidade de empresas que se mostraram dispostas a aceitar planejamentos tributários mais heterodoxos, no limite da ilegalidade, caso isso contribua para aliviar o peso do Fisco sobre suas atividades. Na mostra da Price, quase 10% das empresas ouvidas confessaram que se sentiam tentadas a seguir esse caminho. Ele não é aconselhado por especialistas sérios. “Muitas vezes, depois de uma decisão judicial, a companhia tem de devolver para a União um montante importante e não tem dinheiro em caixa preparado para isso”, afirma Amaral, do IBPT. A vontade de tentar uma solução diferente pode ser interpretada como fruto do desespero diante de uma situação tributária sufocante. Não chega a ser surpreendente esse tipo de tendência num país em que uma empresa precisa ter quatro dezenas de funcionários apenas para calcular e pagar em dia os impostos.