Usufruto de Participações Societárias. Distribuição Disfarçada de Lucros na Instituição de Usufruto de Juros Sobre o Capital

Edmar Oliveira Andrade Filho

INTRODUÇÃO

Em 4 de janeiro de 2021, o Diário Oficial da União divulgou o texto da Solução de Consulta COSIT nº 137/2020, na qual trata da dedução de despesas de juros sobre o capital que forem pagos aos usufrutuários de cotas ou ações do capital de sociedade. A meu juízo, o documento normativo aborda de modo escorreito o tema para firmar a interpretação no sentido de que, para efeitos de apuração do lucro real e do resultado ajustado, a pessoa jurídica poderá deduzir os juros sobre o capital próprio pagos ou creditados aos usufrutuários de ações ou cotas de capital gravadas com usufruto. De acordo com o item 13 do texto, o órgão da Receita Federal do Brasil afirma que o usufrutuário faz as vezes do titular do rendimento a ele cedido sem que haja desnaturação da natureza primária desse rendimento, quer sejam pagos ou creditados ao usufrutuário titular do rendimento, ao sócio ou ao acionista.

A Solução de Consulta nº 137 não examina a eventual caracterização de distribuição disfarçada de lucros (DDL) quando uma sociedade investidora institui usufruto em favor de uma pessoa natural a ela vinculada. O usufruto, nessas hipóteses, é altamente vantajoso do ponto de vista tributário tendo em vista que a investidora, após a instituição do usufruto, não mais receberá juros sobre o capital e deixa de contabilizar a receita que, como sócia obteria: por conseguinte, ela fica livre da obrigação de pagar IRPJ, CSLL e contribuições devida ao PIS e COFINS sobre essa receita. O usufruto, portanto, pode eliminar um inconveniente tributário das sociedades holdings ao menos em relação às referidas contribuições dado que o imposto de renda pode ser “compensado” com a distribuição, pela sociedade investidora, de juros aos seus próprios acionistas. Para se determinar se há ou não DDL é imprescindível ter em conta os efeitos patrimoniais do usufruto que pode ser instituído a título oneroso ou gratuito. A instituição de usufruto sobre participações societária é um negócio jurídico lícito e os problemas societários decorrentes foram enfrentados no julgamento, pelo STJ, do Recurso Especial nº 1.169.202, em 20 de setembro de 2011. O perfil jurídico do usufruto é estabelecido pelas normas do art. 1.390 e seguintes do Código Civil; assim, o usufruto pode recair em um ou mais bens, móveis ou imóveis, em um patrimônio inteiro, ou parte deste, abrangendo-lhe, no todo ou em parte, os frutos e utilidades.
CONCESSÃO DE USUFRUTO E ALIENAÇÃO BENS OU DIREITOS

A instituição do usufruto atribui ao usufrutuário o domínio útil da coisa, ou seja, o direito de usar, gozar e usufruir. Não é transmitido ao usufrutuário, todavia, um dos atributos do domínio, que é o de dispor da coisa, cujo direito é reservado ao nu-proprietário; como consequência o usufrutuário tem a posse direta do bem e o nu-proprietário a posse indireta. Com a instituição do usufruto há cessão dos atributos de usar, gozar e usufruir, de modo que há desmembramento dos atributos do domínio, que passa ser exercido simultaneamente por pessoas distintas. A cessão recai sobre parte do direito do titular da participação societária de modo que, ao instituir o usufruto, há alienação de parcela do seu direito e a reserva de outra parcela para si. A alienação de direitos inerentes à coisa é da essência do usufruto pelo o qual o proprietário mantém para si a nua-propriedade como decidiu o STJ no julgamento do Recurso Especial 1.613.657, em 21 de agosto de 2018: na ementa do acórdão está dito, de modo didático: “3. No caso de usufruto convencional ou voluntário, o proprietário (que detém todos os atributos do domínio), por ato gratuito ou oneroso, reserva para si a nua-propriedade e transfere para terceiro o usufruto (usufruto por alienação); ou reserva para si o usufruto do bem e transmite para terceiro a nua-propriedade (usufruto por retenção)”. A ocorrência da alienação nos casos em que o cedente mantém a condição de nu-proprietário é patente e acima de dúvida razoável tendo em vista que a parcela do direito cedido passa a integrar o patrimônio do usufrutuário que adquire o direito líquido e certo de receber os juros sobre o capital quando forem declarados, e, tem o direito de ação que o habilita a, eventualmente, reclamar judicialmente em caso de falta de pagamento.

DISTRIBUIÇÃO DISFARÇADA DE LUCROS

A alienação de bens (o que inclui os direitos) a pessoa ligada sem contraprestação ou com contraprestação inferior ao valor de mercado dos bens transferidos atrai a norma do item I do art. 528 do RIR/18 sobre DDL; portanto, mesmo que a alienação seja contratada a título oneroso é possível – em tese – a ocorrência de DDL. Todavia, é necessário ter em conta que, mesmo havendo favorecimento, a incidência da norma não é automática tendo e vista a possibilidade de que a aplicação seja elidida na forma do § 3º do art. 528 do RIR/18. De acordo com esse preceito “a prova de que o negócio foi realizado no interesse da pessoa jurídica e em condições estritamente comutativas ou em que a pessoa jurídica contrataria com terceiros exclui a presunção de distribuição disfarçada de lucros”.

Para descobrir o significado de “interesse da pessoa jurídica” será necessário fazer uma experiência colateral no direito societário. A constituição de uma sociedade personalizada (a pessoa jurídica da lei tributária) de acordo com os tipos previstos no ordenamento jurídico implica na automática adesão a um modelo normativo formado por princípios e regras pertinentes ao tipo de sociedade escolhido; para sociedades empresárias o referido modelo se estriba em pelo menos dois postulados: em primeiro lugar, os criadores da sociedade personalizada (a pessoa jurídica) devem ter presente que a sociedade é autônoma em relação aos sócios e, por essa razão, eles autolimitam a sua própria capacidade jurídica que deverá ser exercida de acordo com as normas sobre o funcionamento da sociedade que deve ser tratada como ser autônomo que é. Em segundo lugar, eles se obrigam a respeitar e defender os interesses da própria sociedade que, como visto, é um ente autônomo. O dever de considerar e defender o interesse da sociedade é extraído do texto do caput do art. 115 da Lei nº 6.404/76, assim, o acionista – controlador ou minoritário – deve exercer o direito a voto no interesse da companhia.

Também os administradores devem respeitar e defender o interesse da sociedade: de acordo com o caput do art. 154 da Lei nº 6.404/76, “o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”. Além disso, o § 2º do referido preceito legal estabelece que é vedado ao administrador praticar ato de liberalidade à custa da companhia. De acordo com o § 4º do art. 154 da Lei nº 6.404/76, o conselho de administração ou a diretoria podem autorizar a prática de atos gratuitos razoáveis em benefício dos empregados ou da comunidade de que participe a empresa, tendo em vista suas responsabilidades sociais. Em resumo, a concessão de benefícios sem contrapartida (ou sem justa retribuição) ofende o interesse da sociedade de modo que constitui ato ultra vires (sem poderes ou com desvio de poderes).

A renúncia de receita, assim como toda e qualquer prática liberalidade ou benesses que não sejam justificadas por razões econômicas ou jurídicas, são proibidas em decorrência do princípio da lucratividade. Esse princípio visa a concretizar o interesse da sociedade: alhures escrevi que: “é contrário ao interesse da sociedade todo e qualquer ato que seja contrário ao princípio da lucratividade ou que entrave, de modo direto ou indireto, a prosperidade da empresa. Enfim, não se amolda ao interesse da companhia nenhum ato ou negócio que diminua o seu patrimônio sem justa contrapartida ou que vise a subtrair da sociedade qualquer espécie de rendimento que lhe pertence”. Em razão do referido princípio parece claro que a sociedade não pode “abrir mão” de receitas ou despender dinheiro ou outros bens para concessão de benesses sem ofender ao princípio da lucratividade. Em resumo, o princípio da lucratividade repudia a prática de negócios em condições de favorecimento e afeta pelo menos quatro esferas jurídicas: (a) da sociedade personalizada, que não pode ter o seu patrimônio desfalcado pela renúncia de receitas ou pela distribuição de benefícios econômicos sem contrapartida ou com contrapartida que não seja equitativa ou justa; (b) dos administradores (diretores e conselheiros) que não têm poderes para a prática de tais atos; (c) dos membros do conselho fiscal, que não podem aprovar atos ofensivos ao interesse da sociedade na forma do disposto no § 1º do art. 165 da Lei nº 6.404/76; e (d) dos sócios ou acionistas, que, em razão do disposto no art. 115 da Lei nº 6.404/76, estão impedidos de exercer o direito de voto contra os interesses da sociedade.

CONCLUSÕES

Retomando a análise das questões tributárias no caso de concessão de usufruto de participação societária, é necessário considerar que a outorga do usufruto – oneroso ou gratuito – implica na alienação dos bens (isto é, de alguns dos direitos inerentes às participações societárias) e isso impõe o registro dos fatos contábeis. Portanto, por ocasião da instituição do usufruto a investidora deve reconhecer um eventual ganho ou perda de capital se a concessão tiver sido contratada a título oneroso. O eventual ganho, de acordo com o que foi decidido pela CSRF no acórdão no 9101¬004.210, de 4 de junho de 2019, será reconhecido e tributado com base no regime de competência. Por outro lado, se o usufruto for concedido a título gratuito a baixa parcial do valor do investimento é requerida e a perda de capital não pode ser deduzida. Em qualquer caso, na falta de elementos para determinar o valor a ser baixado, o contribuinte deve adotar por analogia as regras do art. 140 do RIR/18, na forma do acórdão no 2402-005.365, emitido pelo CARF.

Além da apuração do eventual ganho ou perda de capital o contribuinte deve cumprir, se for o caso, as regras sobre DDL: assim, se houver caracterização da DDL a sociedade instituidora do usufruto deve submeter à tributação a receita que vier a renunciar caso: (a) o usufruto foi concedido a título gratuito; ou, (b) o usufruto tenha sido contratado por valor inferior ao de mercado. O cálculo pode ser feito por pelo menos duas perspectivas: em primeiro lugar, é possível cogitar que o valor a ser tributado deve ser apurado de uma só vez no período da instituição do usufruto e corresponderá ao valor presente estimado dos benefícios renunciados diminuído do valor recebido, se for o caso. Esse valor presente corresponde ao valor de mercado e deve ser apurado de acordo com os parâmetros e métricas que sejam reconhecidos e aceitos pela comunidade profissional. Por outro lado, por questão de razoabilidade e tendo em conta as características do negócio jurídico de usufruto, parece ser razoável considerar que o cômputo dos valores para fins de cálculo do IRPJ e CSLL deve ocorrer ao longo do tempo enquanto permanecer eficaz o negócio jurídico em que houve a concessão de usufruto. Nesse último caso, o valor tributável em cada período deveria ser equivalente ao valor obtido pelos beneficiários e que pode ser objetivamente determinado. Em qualquer dos dois métodos de cálculo, o valor tributável deveria tomar como parâmetro o montante dos juros líquido de imposto de renda retido na fonte e o fato gerador ocorrerá quando os juros forem percebidos pelo usufrutuário. O valor líquido de imposto é o montante do benefício econômico obtido pelo usufrutuário.

Edmar Oliveira Andrade Filho

Mestre e doutor em Direito Tributário
Membro Benemérito da APET

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