Tributação de livros reabre discussão sobre natureza das contribuições

Hugo de Brito Machado Segundo

Tem sido noticiada, nas últimas semanas, a pretensão do governo federal de instituir uma “contribuição sobre bens e serviços — CBS”, em substituição aos atuais PIS e Cofins. Seria um primeiro passo para a futura implantação de um “imposto sobre bens e serviços — IBS”, que no longo prazo substituiria, além do PIS e da Confins (ou da CBS que vier a sucedê-las), também IPI, ICMS e ISS. Em última análise, arremedo para a instituição de um “IVA Federal”.

Diversos aspectos podem ser questionados, a partir da referida pretensão. É o caso, por exemplo, da alíquota, que no PIS é de 1,65%, na Cofins é de 7,6%, as quais serão sucedidas por uma CBS com alíquota de 12%, em uma matemática que aparentemente não fecha. Sobretudo se se considerar que todos os contribuintes passarão ao regime da não cumulatividade, inclusive aqueles hoje não obrigados a essa forma de apuração e portanto submetidos a alíquotas de apenas 3% e 0,65%.

O presente texto, contudo, não tem a pretensão de examinar tais questões todas. A ideia, aqui, é suscitar apenas uma, que, por sua relevância, tem despertado a atenção de muitos não especialistas na matéria: a tributação de livros, jornais, periódicos, e do papel destinado à sua impressão, os quais são imunes nos termos do artigo 150, VI, “d”, da CF/88.

A imprensa noticia manifestações do ministro da Economia, para quem os livros são comprados por pessoas ricas, que precisam pagar tributos. Para os mais pobres continuarem tendo acesso a tais bens, a alternativa proposta seria a sua distribuição gratuita pelo governo.

Com todo o respeito, existem diversos equívocos, tanto na proposta, como na solução sugerida para os problemas que por ela seriam criados. E tudo, de quebra, ainda reabre a discussão sobre a verdadeira natureza das “contribuições”, rótulo que, sob o mantra da “finalidade social”, desde os anos 1990 só tem servido para afrouxar a aplicação de limitações constitucionais ao poder de tributar e para arrebentar a divisão constitucional de rendas feita em 1988, causando desequilíbrio bastante nocivo à autonomia de Estados e Municípios, que em regra participam da partilha da receita obtida com impostos (sobretudo IR e IPI), mas não com contribuições.

Há pouco tempo, aqui na ConJur, foi feito um alerta mais geral a respeito do tema, examinado com mais especificidade em “Contribuições e Federalismo” (São Paulo: Dialética, 2005). A criação da CBS e a tributação dos livros reabre a discussão sobre a natureza de tais contribuições, e sobre seu regime jurídico, que estava nesse ponto adormecida porque a legislação do PIS e da Cofins contava com “isenção” para livros jornais e periódicos, que será suprimida quando da criação da CBS. É exatamente em torno dessa revogação que se discute, como se a questão não tivesse qualquer repercussão constitucional.

A Constituição, literalmente, no seu artigo 150, VI, “d”, estabelece que União, Estados, Distrito Federal e Municípios não podem instituir impostos sobre livros, jornais e periódicos. Daí, pelo argumento literal, dizer-se que PIS e Cofins, e que a futura CBS, não são impostos, mas contribuições. Espécie diversa, portanto, e nessa condição não submetida à imunidade. Ausente a vedação constitucional, caberia ao legislador ordinário decidir pela tributação, ou não, de tais realidades por meio de contribuições.

Talvez por isso as notícias veiculadas sobre o assunto não tocam, de forma técnica e direta, na questão da imunidade. Limitam-se a discutir se a revogação seria politica e economicamente conveniente, perquirindo sobre se livros são comprados por pessoas ricas, ou se as editoras estariam ou não em crise, ou se a doação de livros aos mais pobres pelo Poder Público resolveria o problema. Tais colocações são inadequadas, e a questão é mais profunda.

Na verdade, a imunidade do livro não se destina a barateá-lo, simplesmente. É preciso resgatar um pouco da História, para que no longo processo de tentativa e erro que a humanidade aplica aos seus artefatos e instituições, em moldes análogos aos da seleção natural, não se repitam os mesmos erros. Só é possível aprender com eles, e corrigir as tentativas, se se tiver alguma atenção ao que já se passou.

Como testemunha Aliomar Baleeiro, que foi deputado constituinte, a imunidade, inserida na Constituição desde o texto de 1946, deveu-se ao fato de que “estava muito recente a manobra ditatorial de subjugar o jornalismo por meio de contingenciamento do papel importado” (Aliomar Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, 7. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 339). Ou seja, a tributação do papel foi instrumento oblíquo para censurar jornais.

Essa, portanto, é sua finalidade. Evitar que, por meio do tributo, se exerça, de maneira indireta, a censura. O intuito não é apenas baratear, embora essa consequência possa dela advir. Aliás, pode ser o caso de o preço do livro ser mantido por quem o produz e vende, refletindo-se o alívio nas editoras, e não necessariamente nos leitores. E é mesmo saudável que existam muitas editoras, com visões e orientações as mais diversas. Ao final, o mercado ditará os preços, podendo a redução de custos repercutir neles. Esses são efeitos econômicos possíveis, e até prováveis, mas a imunidade não os almeja diretamente. O objetivo, simplesmente, é evitar que, com o uso da função indutora, se censurem livros.

Nessa ordem de ideias, a solução de o Poder Público doar livros aos mais pobres consegue ser pior do que o problema criado pela tributação, pois haverá desestímulo à produção e à comercialização de uns, e o incentivo direto (com a compra e a distribuição gratuita pelo governo) de outros. E quem decidirá quais livros serão doados? Qual burocrata definirá quais poderão ser adquiridos pelo consumidor, mas mediante a aplicação do custo extra do tributo, e quais serão doados pelo governo a custo zero para o leitor? Evidentemente, com isso, o tributo poderá tornar proibitivo os livros que o Poder Público não deseja que sejam lidos, não se podendo descartar que aqueles a serem doados, com o uso de recursos públicos, sejam justamente os que veiculam ideias convergentes com as dos governantes. Exatamente o que a imunidade visa a evitar.

É por isso que se afigura equivocado interpretar-se literalmente o artigo 150, VI, da CF/88, para de seu âmbito excluir toda e qualquer outra espécie tributária diversa do imposto. Até porque algumas disposições constantes de seus incisos poderiam nem mesmo estar escritas. Cita-se como exemplo a imunidade recíproca, segundo a qual é vedado aos entes federativos instituírem impostos uns sobre os outros: sem nada escrito nesse sentido na Constituição americana, a imunidade, nos EUA, foi reconhecida por sua Suprema Corte como decorrência necessária do próprio princípio federativo.

Que as imunidades referidas no artigo 150 da CF não se apliquem a taxas, e a contribuições de melhoria, até se entende. Não pela literalidade do artigo, mas pela própria natureza dessas espécies. Tendo como pressuposto de incidência o desempenho de atividades estatais (serviços públicos, exercício do poder de polícia, obras públicas das quais decorre valorização imobiliária…), tais exações não têm como ser usadas para inibir ou desestimular a ocorrência de fatos realizados por particulares, sem relação com atividade estatal alguma.

O problema das contribuições, diversamente, assim como dos empréstimos compulsórios, é que em tese podem ter fatos geradores semelhantes, ou mesmo iguais, aos dos impostos. Veja-se, v.g., o que se dá com a contribuição social sobre o lucro e com o imposto de renda. Ou com o PIS e a Cofins, de um lado, e com o ISS, o ICMS e o IPI, de outro. Tanto que, no caso destes últimos, a reforma pretende substitui-los todos por um IBS. Há grande equivalência entre eles, no que tange às atividades que oneram, e à forma como o fazem.

Com a potencialidade de alcançar os mesmos fatos, em tese passíveis de tributação por impostos, as contribuições surgem como o veículo perfeito para burlar as imunidades e assim atingir tudo o que de importante elas protegem: basta rebatizar, o que não tem sido raro no Brasil (veja-se o IPMF e a CPMF, ou a taxa de iluminação pública e a contribuição de iluminação pública…). Para que a União possa abocanhar percentual expressivo do patrimônio, da renda, dos serviços ou mesmo das receitas de Estados e Municípios, dificultando-lhes bastante a subsistência, bastará dar à figura o nome de contribuição? O princípio federativo o permitiria? O mesmo poderá ocorrer com partidos políticos? Sindicatos? Como se percebe, a prevalecer essa compreensão, o dano aos valores constitucionalmente protegidos da tributação pela imunidade pode ser extenso e profundo.

A leitora, por certo, pode estar refletindo: mas as contribuições não são, de fato, espécie diferente? Sim, são. Pelo menos em tese. Mas, no desenho originalmente traçado em 1988, teriam um papel muito menor do que têm hoje, fruto da complacência do STF para com os abusos da União em sua instituição e em sua (tre)destinação. Uma CBS de 12%, não-cumulativa, sobre a receita de todas as empresas do país, destinada a alimentar a conta única do Tesouro Nacional, é um exemplo claro dessa deformação.

A complacência do STF deu-se, como dito, também no terreno da destinação, que seria o elemento diferencial da espécie. Talvez tenha mesmo sido por isso que elas terminaram por crescer muito além do previsto, respondendo por fatia muito expressiva da arrecadação tributária federal. Permite-se que sua arrecadação se dê pelos mesmos órgãos que cobram os impostos, e até que a destinação inicial seja a conta única do Tesouro Nacional, de onde, depois, haverá em tese o repasse para as despesas sociais que as justificariam. Há, contudo, nisso, dois graves problemas: o STF entende que posterior desvio não invalida a contribuição (RE 138.284), e, pior, é complacente com emenda constitucional que ostensivamente permite o uso dos recursos arrecadados com as contribuições para outras finalidades, dentro do que se convencionou chamar de “desvinculação das receitas da União” (RE 566.007). A diferença entre elas e os impostos, diante disso, é quase imperceptível.

Por tudo isso, seja porque as imunidades do artigo 150, VI, “d”, da CF/88 devem ser aplicadas a todos os tributos que tenham fato gerador próprio ou equivalente ao de impostos, seja porque as contribuições, cada vez mais, assumem a natureza de verdadeiros impostos travestidos de outros nomes só para não serem divididos com Estados e Municípios, as vedações ali constantes devem, sim, ser aplicáveis às contribuições.

Por isso, é inconstitucional fazer com que a CBS incida sobre livros, jornas, periódicos, e sobre o papel destinado à sua impressão. É preciso que todos se mobilizem em torno do assunto, para evitar que, como no período que antecedeu a Constituição de 1946, algumas editoras – já em grandes dificuldades por outros fatores – fechem por não suportarem a tributação, enquanto outras, as escolhidas (por qual critério?), surfarão na fartura das aquisições governamentais destinadas às doações anunciadas pelo Ministro. É óbvio, em um cenário assim, que as editoras preocupadas em sobreviver tenderão a procurar agradar quem as estará alimentando, o que não será nada bom para o pluralismo e o pensamento crítico, premissas necessárias à democracia. Fonte Conjur

Hugo de Brito Machado Segundo

Doutor e mestre em Direito, advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará e do Centro Universitário Christus (Unichristus). Membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA). Visiting scholar da Wirtschaftsuniversität (Viena, Áustria).

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