Preocupações econômicas com a proposta federal de reforma tributária

José Maria Arruda de Andrade

Por José Maria Arruda de Andrade

omo amplamente divulgado, o governo federal finalmente apresentou a sua proposta de reforma tributária, mediante o Projeto de Lei Ordinária de nº 3.887/2020. Trata-se de uma primeira fase do que pretende o governo, consistente na substituição do PIS e da Cofins (mercado interno e importação) em favor de uma CBS (Contribuição Social sobre Operações com Bens e Serviços) inspirada, assim como as PEC 45/2019 e 110/2019, nas recomendações da literatura econômico-jurídica internacional, sobretudo nas orientações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Em vários textos nessa coluna, apresentei algumas críticas à regressividade de um sistema tributário altamente concentrado na tributação sobre o consumo e sobre aspectos problemáticos de tal ênfase, notadamente em relação aos problemas de nosso país, marcado por elevado grau de desigualdade regional e social. Mas também deixei claro que, havendo vontade democrática na reforma da tributação sobre o consumo, que seria importante buscar, de fato, as lições de um bom tributo sobre o valor adicionado. Sigo nessa linha, buscando convergência no debate sobre a melhoria de nossos tributos sobre o consumo (ICMS e ISS), mas sem fazer uma defesa acrítica na importação de ideias que forcem uma realidade que a elas não se adapta tão facilmente.

A iniciativa do governo federal tem vários aspectos positivos, mas incorre em possíveis e sérios problemas, que eu poderia agrupar, simploriamente, em dois tipos: I) os de natureza econômica; e II) os de natureza jurídico-tributária. Nesse texto, pretendo apenas abordar os do primeiro tipo, fazendo o registro de que existe, de fato, uma tensão na tentativa de transmutar uma tributação de base atuarial sobre a receita bruta devida pelos empregadores e tomadores de serviço para um tributo sobre o consumo. A União Federal foi, ao longo dos anos, tomando para si uma competência que não lhe cabia.

Começo o texto com uma afirmação breve, porém enfática, já mencionada em palestras minhas alhures: um bom tributo decorre da relação entre I) a sua estrutura normativa, II) a sociedade e as respectivas instituições que o adotarão, III) a sua carga tributária potencial e IV) quem o pagará efetivamente.

Infelizmente, a defesa dos projetos tem sido dominada pela argumentação em torno da estrutura de um bom IVA/IBS (as recomendações da OCDE, para simplificar), com poucas considerações sobre o país em que se pretende que ele opere (e suas instituições) e, sobretudo, sobre qual o limite de carga tributária que um bom tributo aceita antes que se transforme em um pesadelo.

O remédio que cura também é o que mata, a depender da dose prescrita. Assim, um tributo simples e necessário como o IPTU terá uma boa estrutura enquanto não se estabelecer alíquotas exageradas (imagine-se uma a 50%!). Ou seja: não adiantaria uma defesa apaixonada do IPTU per se sem, antes, saber sua carga tributária potencial. O tributo não é bom somente a partir de sua estrutura.

Sobre as instituições, deve-se lembrar que copiar a regra de incidência abstrata de um tributo da Nova Zelândia não transforma as instituições brasileiras imediatamente. Nossa sociedade é outras e nossa cultura desenvolveu-se de forma diversa. Uma nota técnica que avalie positivamente um IBS da PEC 45, pressupondo que a litigiosidade deixará de existir porque a estrutura normativa do novo imposto é boa, ignora o papel das instituições em nossa sociedade. A litigiosidade não decorre somente de textos normativos, decorre de uma cultura arraigada de animosidade entre fisco e contribuinte. Bons textos normativos diminuem o potencial de conflitos, mas eles não rodam no abstrato, elas operam nas relações concretas.

Não se pode esquecer a história! A novidade de hoje é a repetição da revolução de ontem. Recentemente, em sala de aula, revistei as justificativas econômicas dadas para a implementação da não-cumulatividade da Cofins, presente na nota técnica do Ministério da Fazenda [1]. Em síntese, alegou-se que se obteria:

— Expressivo ganho de eficiência econômica;

— Redução do artificialismo nas decisões dos agentes sobre a estrutura de seus negócios (verticalização);

— Que empresas de um mesmo setor econômico tivessem distintas cargas tributárias;

— Melhor alocação dos fatores de produção;

— Carga tributária para o consumidor final correspondente à alíquota nominal;

— Desoneração dos bens de capital;

— Desoneração completa das exportações, com os créditos acumulados na aquisição dos insumos podendo ser compensados na própria apuração, já que os mecanismos de ressarcimento seriam lentos e complexos;

— Definição da alíquota da nova sistemática apenas para preservar a arrecadação do tributo atual, sem aumento da carga tributária.

Ou seja, completa-se a cartela do bingo em instantes em uma reunião de defesa sobre IBS/CBS, atualmente. Uma reforma da tributação sobre o consumo pode alcançar alguns desses objetivos, mas se deve alertar que promessas simples são facilmente quebradas, daí a necessidade de se estudar os textos das propostas e não o material encarregado de construir novas narrativas.

Uma reforma legislativa pode ser motivada pela fé de seus proponentes, mas o texto final precisa ter os elementos necessários para guiar a sua aplicação nas próximas décadas. As apresentações em Power Point ficarão para trás, assim como as lives. Em termos ainda mais diretos: tributar todos os consumidores por todas as operações pode ser uma narrativa, mas o que determinará a incidência tributária e o grupo de contribuintes jurídicos e os repasses econômicos é a lei posta e sua aplicação (metódica) jurídica.

Desejo profundamente que se tenha aprendido a lição de que o projeto de não-cumulatividade do PIS e da Cofins foi a ideia de eficiência e transparência vendida a nós em 2002 e que foi pessimamente entregue como direito positivo (a ausência de definição de insumos fica como o maior fiasco de nossa história recente, que custou bilhões aos cofres públicos e gerou insegurança ao investimento porque alguns poucos arquitetos institucionais nos seduziram com suas comparações internacionais idealizadas técnicas).

Pois bem, feitas as considerações iniciais, chamo a atenção, agora, a certos argumentos que chamarei de econômicos e que precisam ser aprimorados no projeto federal de criação da CBS. A vantagem da iniciativa federal é a de se ter um projeto de texto legal concreto para se analisar, o que possibilita um bom ensaio crítico, inclusive em relação a eventual projeto de lei complementar a regulamentar as inovações propostas nas emendas constitucionais apresentadas.

1) Aumento da carga tributária
Tem-se defendido o projeto culpando os críticos de não saberem fazer conta ou de desconhecerem a distinção entre cálculo por dentro ou por fora. A premissa de todas as reformas é de que não haverá aumento global de arrecadação. O ministro da economia chegou a se comprometer publicamente (novamente a distinção entre narrativa e texto de lei se faz presente, já que não há mecanismo de revisão da carga no projeto) de que abaixaria a alíquota se houvesse aumento global.

Em primeiro lugar, nunca houve reforma tributária desde 1930 que não tenha acarretado aumento de arrecadação, incluindo PIS e Cofins não cumulativo em 2002 e 2003. Em palestras tenho apontado tal assertiva de forma gráfica.

Segundo, se a comparação for em termos nominais, pouco se sabe se a economia daqui a seis meses será a mesma de 2019 (eventual parâmetro de comparação). Em geral, as comparações costumam ser feitas em termos de valor arrecadado e não em proporção de PIB; mas, ainda que assim seja, pouco se sabe sobre o efeito da crise fiscal da Covid-19 sobre os próximos anos.

Além disso, uma alíquota padrão do regime não cumulativo de 9,25% por dentro corresponde a 10,19% por fora. Nessa conta singela, 12% será superior. Verdade que os créditos serão mais amplos; por outro lado, inúmeros regimes foram revogados. Além disso, muitas empresas estão submetidas a uma alíquota de 3,65% (3,79% por fora). Por fim, muitas atividades, notadamente de prestação de serviços, sairão de alíquotas inferiores (como 3,65%) para 12% e não darão direito a crédito a seus consumidores (pessoas físicas) [2].

Justamente nesse caso, os defensores da CBS buscam desqualificar a crítica, alegando se tratar de ignorância quanto à forma de apuração não cumulativa, em que ninguém recolhe do próprio bolso, apenas repassa recursos ao governo e passa adiante o crédito. Ora, o recorte isolado de um elo da cadeia em que alguém presta serviço e repassa crédito é absolutamente irreal, seja porque ignora o baixo volume de créditos que o prestador consegue utilizar, seja porque diminui a repercussão dos tributos sobre os consumidores finais pessoas físicas (nós, a população), seja, ainda, porque ignora que a economia é uma relação de produção com insumos e serviços, de atividades diretas e indiretas, em que, havendo aumento da carga dos prestadores intermediários, haverá repercussão nos preços gerais e diminuição de renda de inúmeros consumidores.

Nos exemplos acima, todos aqueles serviços e bens consumidos pelas pessoas naturais sofrerão o repasse dos tributos que foram sendo acrescidos na cadeia e, quando o aumento ocorre justamente na entrega ou na etapa final, isso será repassado à sociedade, reforçando o caráter regressivo da tributação sobre o consumo. Em termos mais diretos: serviços médicos (aguardem a revogação da autorização legal para dedução no imposto de renda), de educação (idem); telecomunicações (internet, celular, telefonia fixa), livros, streaming terão sua tributação majorada.

O governo prestará um desserviço se continuar insistindo em dar exemplos numéricos incompletos ou, como o faz na cartilha de perguntas e respostas (pergunta 1.11), se mostrar que uma alíquota nominal de 12% por dentro ou por fora representa cargas tributárias distintas, mas a induzir que o cálculo por fora da CBS seria inferior aquele por dentro do PIS e da Cofins, mas sem apontar que a alíquota por fora desses tributos atuais é, em verdade, inferior a 12% [3].

2) Tendência a uma alíquota desastrosa de IBS e CBS total (federal, estadual e municipal)
Como afirmado acima, não adianta copiar uma bela estrutura de tributo e errar na definição de sua alíquota. Nesse sentido, como a proposta federal é de 12% (cálculo por fora), sobraria apenas 13% de espaço para um IBS estadual e municipal se se quisesse manter uma alíquota alvo de 25%. Os estudos iniciais apresentados em diversos seminários por representantes do CCiF, contudo, apontavam para a necessidade de uma carga estadual de 13,8% e uma municipal de 2,0% para se manter o atual nível de arrecadação.

A soma de todas essas alíquotas gera como resultado uma carga tributária sobre bens e serviços de, no mínimo, 28%, se não houver alguma mudança, e já se ouve falar em alíquotas bem superiores. Tal carga colocaria o Brasil como o país de maior alíquota nominal de IVA/IBS/CBS dentre as nações acompanhadas pela OCDE. Certamente, muitos patrocinadores da reforma se sentirão traídos se fizeram suas simulações de impacto baseados em uma alíquota de 25% e descobrirem uma de 30%.

3) Regressividade
Se a tributação no Brasil é concentrada no consumo (perto de 50%), uma maior concentração (aumento) dessa imposição terá efeitos negativos, que recairão de forma mais acentuada sobre os que possuem menos renda (regressividade). Tudo isso, diga-se, porque a União Federal buscou para si uma forma de tributação que nunca lhe coube (tributação sobre o consumo). A autorização constitucional sempre foi para tributar a receita bruta apenas para fazer frente aos gastos da seguridade social.

Esses pontos, aqui elaborados de forma rápida, demonstram que falta muita transparência para o debate democrático sobre números, ganhadores e perdedores.

Uma cartilha que escolhe exemplos em que a comparação entre a alíquota anterior (por dentro) e a proposta (por fora) é de redução da carga deveria ser repensada.

A eleição dos advogados como ignorantes de matemática, mal intencionados e defensores apenas de sua categoria é outro espantalho que pouco contribui para o amadurecimento da proposta.

Enfim, trata-se de um jogo de ganhadores e de perdedores (porque alguns setores pagarão mais) arriscado, porque os vencedores ainda desconhecem a alíquota do IBS total (incluindo a proposta federal) e a tal história de que não interessa a alíquota do tributo porque você apenas destaca e o oferece de crédito para o próximo da cadeia econômica só funciona no discurso.

Estudos econômicos que apontem ganhos de eficiência baseados em diminuição de custo de conformidade e fim da litigiosidade avaliam um crescimento que não tem como ser entregue, pela simples razão que a litigiosidade não se encerra imediatamente (o tributo antigo de hoje será fiscalizado daqui a cinco anos e gerará um processo que durará uns quinze anos, acrescido de mais dez anos de vigência do sistema atual, conforme previsto na PEC 45).

E a redução a complexidade das obrigações acessórias é promessa cujo conteúdo pouco se sabe. Em texto anterior, tratei disso. O ambiente institucional que se vive, não permite a ilusão de que a mera redação de novo tributo apaga todos os aspectos culturais e sociais inerentes às instituições.

[1] BRASIL. A TRIBUTAÇÃO CUMULATIVA NO BRASIL: Transição para o Modelo de PIS e Cofins Não-cumulativo. Brasília, 2003.

[2] Não ignoro, por óbvio a existência de inúmeras empresas no SIMPLES NACIONAL.

[3] A ideia parece ser apenas mostrar duas formas distintas de calcular tributo (por dentro e por fora), mas ao apontar que a CBS seria inferior, passa-se a falsa impressão aos não acostumados que haverá redução na carga tributária. Ver https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/reforma-tributaria/perguntas-e-respostas.pdf.

José Maria Arruda de Andrade

professor associado de Direito Econômico e Economia Política da Universidade de São Paulo (USP), livre-docente e doutor pela mesma instituição. Foi secretário-adjunto da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência em Munique (Alemanha).

Gostou do artigo? Compartilhe em suas redes sociais

iplwin

iplwin login

iplwin app

ipl win

depo 25 bonus

slot deposit pulsa

1win login

indibet login

bc game download

10cric login

fun88 login

rummy joy app

rummy mate app

yono rummy app

rummy star app

rummy best app

iplwin login

iplwin login

dafabet app

https://rs7ludo.com/

dafabet