Tributação das subvenções, pacto federativo e guerra fiscal vertical
Fernando Facury Scaff
Subvenções são transferências financeiras feitas pelo Poder Público destinadas a cobrir despesas de custeio de entidades de direito público ou privado, sendo classificadas como subvenções sociais ou subvenções econômicas, estas podendo ser destinadas inclusive a empresas privadas em geral (Lei 4.320/64, artigo 12, §3º), e podem ocorrer por meio de dispêndio direto ou de renúncia de receitas (isenção ou redução de tributos).
Para fins de apuração do Imposto de Renda, distingue-se as subvenções econômicas em subvenções destinadas a investimentos e destinadas ao custeio. As subvenções para investimento não são computadas para fins de apuração do lucro real, devendo ser registradas como reserva de lucros, a qual só pode ser utilizada em restritas hipóteses (artigo 523, RIR). As subvenções para custeio são computadas para fins de determinação do lucro real (artigo 441, I, RIR).
Claro que tal distinção entre custeio e investimento gera discussão, inclusive judicial, pois o prêmio (incluir ou não seu valor na base de cálculo do lucro real) é muito grande.
O problema se aguça quando se coloca em debate o prisma federativo, pois, muitas vezes, os estados concediam renúncias fiscais de seus próprios tributos (ICMS) e isso trazia impactos na esfera tributária da União, que classifica todas estas desonerações como subvenções para custeio, o que amplia o lucro real a ser tributado pelo IR e seus consectários.
Na prática, havia uma guerra fiscal federativa horizontal, pois cada estado visava reduzir seu ICMS para atrair investimentos. Ocorre que tal guerra fiscal desse imposto foi encerrada pela Lei Complementar 160, de 7 de agosto de 2017, que pacificou essa disputa horizontal entre os estados.
Visando ampliar esta pacificação federativa, a Lei Complementar 160/17 também pôs fim à guerra fiscal vertical, entre os estados e a União, ao modificar outra norma (artigo 30, Lei 12.973/14) através de seu artigo 9º, dispondo que os incentivos fiscais relativos ao ICMS “são considerados subvenções para investimento, vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo”, aplicando-se “inclusive aos processos administrativos e judiciais ainda não definitivamente julgados”. Foi criada aqui uma espécie de ficção jurídica, pois equipara as duas espécies de subvenções econômicas, visando reduzir conflitos federativos, no que agiu muito bem o legislador.
Eis o ponto de análise em face de dois aspectos: (1) existem processos judiciais em curso nos quais esse assunto permanece sendo debatido, e (2) recentes declarações do ministro Haddad buscam reabrir esta disputa federativa vertical.
Iniciemos pelos processos judiciais em curso.
O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que esse debate envolve matéria infraconstitucional, logo, fora de sua competência jurisdicional (Tema 957, rel. ministro Dias Toffoli, de 19 de agosto de 2017), o que coloca o tema no âmbito de análise do Superior Tribunal de Justiça.
O STJ, mesmo sem mencionar a Lei Complementar 160/17, decidiu em 8 de novembro de 2017 esse problema de guerra fiscal vertical entre os estados e a União de forma lapidar no EREsp 1.517.492, sob relatoria da ministra Regina Helena, que, com sua habitual precisão, matou a pau o problema, ao afirmar: “Ao considerar tal crédito como lucro, o entendimento manifestado pelo acórdão paradigma, da 2ª Turma, sufraga, em última análise, a possibilidade de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou”. Só esta frase encerra todo o debate sobre a exigência feita pela União de incluir a renúncia fiscal de ICMS concedida pelos estados na base de cálculo do IR, independentemente da discussão entre subvenção para investimento ou para custeio, apenas com amparo principiológico federativo, de raiz constitucional.
Não satisfeita em resolver a questão pela frase acima destacada, a Ministra ainda afirmou: ‘Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um autêntico sobreprincípio regulador da repartição de competências tributárias e, por isso mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas relações entre a União e os demais entes federados. A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da autonomia consagrada pelo modelo federativo. Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas”.
E arremata: “A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação. Não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a autonomia da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e em atrito com o princípio da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia dos entes federados”.
Afinal, como bem lembrado no acórdão do STJ, o afastamento do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins, decidido pelo STF, também teve em sua fundamentação a questão federativa vertical entre a União e os estados.
A Receita Federal, ancorada na Lei Complementar 160/17, bem como na inconteste decisão do STJ, editou a SC (Solução de Consulta) 11, em 04 de março de 2020, na qual declara que “a norma em questão insere novo comando legal ao dispositivo que confere o adequado tratamento tributário, no que tange ao IRPJ e a CSLL, às subvenções para investimento”. Ocorre que, logo após, pela SC 145, de 15 de dezembro de 2020 e pela SC 4029, de 09 de novembro de 2021, a Receita mudou seu entendimento e passou a exigir algumas condicionantes para distinguir subvenções entre custeio e investimento, tributando as primeiras.
Não é necessário gastar muito latim para identificar que estas Soluções de Consulta 145/20 e 4029/21 da Receita violam o que foi estabelecido pela Lei Complementar 160/17, em seu artigo 9º, que alterou o artigo 30, da Lei 12.973/14, acima transcrito, no qual se lê: “vedada a exigência de outros requisitos ou condições não previstos neste artigo”.
O entendimento do STJ no EREsp 1.517.492 já foi ratificado em outras decisões, como no AgInt no REsp 1920675/RS (rel. ministro Benedito Gonçalves), no AgInt no REsp 1.802.273/RS (rel. ministro Og Fernandes) e no REsp 1.222.547 (rel. ministra Regina Helena), dentre vários. De modo ancilar, outras decisões do STJ já analisaram a questão sobre a classificação dessas subvenções à luz da Lei Complementar 160/17: REsp 1.605.245/RS e AgInt no AREsp 1.806.083/RS (rel. ministro Mauro Campbell) e AgInt nos EREsp 1.462.237/SC, rel. ministro Gurgel de Faria).
Logo, no âmbito dos processos em curso, a matéria está pacificada no STJ, tendo o STF reconhecido sua incompetência jurisdicional sobre o tema.
Passemos às recentes declarações do ministro Haddad.
A despeito de reconhecermos suas boas intenções, qualquer iniciativa sobre esse tema reabrirá a guerra federativa vertical entre a União e os estados, com sérias implicações na esfera privada, pois os custos fiscais se ampliarão, e ocasionará a necessidade de ampliação dos benefícios fiscais concedidos pelos estados, reabrindo, por consequência, a guerra fiscal horizontal do ICMS, que atualmente encontra-se pacificada.
No contexto da recente criação do louvável Conselho da Federação (Decreto 11.495/23) será que isso é adequado? Outras fontes para ampliação da receita pública federal podem ser buscadas, sem colocar fogo nesse braseiro. Não parece prudente seguir essa trilha.
Estando o tema juridicamente pacificado, inclusive no âmbito judicial, por qual razão seguir a orientação da Receita nas Soluções de Consulta SC 145/20 e SC 4.029/21, que são visivelmente ilegais? Melhor seria manter o sistema em paz, e repristinar a SC 11/20, que bem tratou do tema.
Fernando Facury Scaff
Professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.