Sociedade informacional, direito e democracia: Pensando o direito tributário para além da dogmática

Guilherme Villela de Viana Bandeira

Nota: Artigo elaborado no NEF – Núcleo de Estudos Fiscais da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas – DIREITO GV.

1 – Introdução: Qual sociedade? Como interpretá-la?

No dia 20 de outubro de 2011 terminava em Sirte, Líbia, uma ditadura que durou mais de 40 anos – a mais longa de todo o Oriente Médio, após três meses de intensos bombardeios das forças da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Embora importante, este fato não deveria nos chamar à atenção, pois o surgimento e a queda de ditaduras se repetiu com uma certa frequência neste último século. O que é sim novo e nunca visto pela humanidade está no seguinte: a tortura, as sevícias sofridas e o consequente assassinato de Muammar al-Gaddafi, ex-ditador líbio, puderam ser assistidos quase em tempo real pelo mundo inteiro, em nosso computadores pessoais e smartphones. Pelas imagens disponibilizadas na internet é possível ver a profusão de celulares dos rebeldes algozes portando mini-câmeras filmadoras, gravando todo aquele espetáculo sangrento e macabro. As novas armas, além das antigas AK-47 e R-15, agora são os Motorolas, os Iphones, os Nokias, capazes de gerar efeitos políticos e econômicos instantâneos e globais, muito mais do que uma granada ou um grande projétil lançado contra alvos terrestres, que podem muito bem passar despercebidos pelo resto do mundo se não forem capturados digitalmente.

Agora, façamos um paralelo ousado. No dia 22 de janeiro de 2007 entrou em vigor o Decreto nº 6.022, implantando o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED) em todo o território nacional. Seu objetivo declarado foi sistematizar as obrigações acessórias por meio da validação digital para o pagamento de Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI) e Impostos sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), mas o projeto será ampliado aos demais tributos nos próximos anos. O sistema como um todo opera por mecanismos de certificação digital em três áreas: a escrituração contábil digital, a escrituração fiscal digital e a nota fiscal eletrônica. Assim, o Fisco possui virtualizadas todas as informações necessárias para a atividade arrecadatória e fiscalizatória do Estado.

Espera-se que, no longo prazo, que ocorra a completa extinção dos papéis para essas atividades.

Com a introdução dessas novas tecnologias, a administração fiscal passou a ter diante de si um o retrato virtual e numérico de toda a rede produtiva ocorrendo a tempo real, por meio do qual é possível comparar valores, checar dados e conferir informações distintas. A digitalização dos livros contábeis e das notas fiscais eletrônicas acessíveis aos computadores do Fisco impede que haja descompasso entre a realidade virtual e a realidade física, já que o próprio direito passou a considerar a realidade virtual como representativa da realidade física.

O que as imagens do assassinato de um ditador transmitidas on-line e a modernização de nosso sistema tributário possuem em comum?

Elas fazem parte de uma profunda mudança que a sociedade vem sofrendo pelo menos a partir da década de 1970, com o surgimento da chamada sociedade informacional, cujos últimos desdobramentos estampam a todo o dia as capas – e sites – dos jornais: a já intitulada Primavera Árabe, derrubando ditaduras que antes pareciam intermináveis; a crise do capitalismo globalizado que vem solapando as economias das potências centrais; a emergência de países que cada vez ganham força tanto política quanto econômica como o Brasil, China e Índia.

Provavelmente só compreenderemos a fundo tais eventos quando eles se tornarem história e portanto um objeto apartado de nós. "A coruja de Minerva só alça vôo no entardecer", disse Hegel no princípios da filosofia do direito. Entretanto, mesmo reconhecendo o limite epistemológico para entender o presente, podemos ver tais fenômenos como contradições internas desta sociedade que se constituiu nos últimos quatro decênios. Os adjetivos para caracterizar tal sociedade são muitos e conhecidos: pós-moderna (Lyotard e Harvey), sociedade em rede (Castells), sociedade do risco (Beck), modernidade líquida (Bauman), sociedade do simulacro (Baudrillard), modernidade reflexiva (Giddens), só para citar alguns poucos exemplos. Esta pluralidade de adjetivos nos impõe uma pergunta fundamental: Qual é a melhor postura intelectual capaz de descrever tais fenômenos, já que as narrativas com as quais estávamos acostumados – tratando do direito positivo, de democracia, da legitimidade e do Estado Nacional – já não dão de explicar nossas ações nem o mundo em que vivemos?

Sofremos os efeitos de duas impressões contrárias e que não conseguimos conciliar: ao mesmo tempo que somos bombardeados por estes fenômenos a tempo real e tentamos compreendê-los, estes mesmos acontecimentos envolvem regiões, culturas e instituições muito complexas e diferentes das nossas. Nos sentimos perplexos por uma contradição básica na sociedade atual: ainda que estejamos conectados globalmente pela tecnologia da informação e sentimos, por causa disso, seus efeitos -afinal, há mais de quarenta anos Marshall McLuhan diz que vivemos em uma "aldeia global"- nossa vida e o sentido que atribuímos a ela transcorre localmente, em nossa cidade, nosso bairro e com pessoas com as quais mantemos contato. Por conta dessa contradição, somos seduzidos pelo niilismo intelectual, nos impondo um ceticismo social ampliado por uma generalizada descrença política.

Geralmente, os diagnósticos de época que trazem o prefixo "pós" seguem esta linha desanimadora. Pós-modernidade, pós-estruturalismo, pós-positivismo, pós-tudo. Como diz Ulrich Beck, no prefácio de seu livro Sociedade de Risco – muito lido na década de 1980, mas só no ano passado traduzido no Brasil:

"(o sufixo "pós") é a palavra-chave de nossa época. Tudo é "pós". Ao "pós-estruturalismo" já nos acostumamos há algum tempo. Ainda que lhe associamos alguns conteúdos. Com a "pós-modernidade", tudo já começa a ficar mais nebuloso. Na penumbra conceitual do pós-esclarecimento, todos os gatos são pardos. "Pós" é a senha para a desorientação que se deixa levar pela moda. Ela aponta para um além que não é capaz de nomear, enquanto, nos conteúdos, que simultaneamente nomeia e nega, mantém-se a rigidez do que já é conhecido. Passado mais "pós? – essa é a receita básica com a qual confrontamos, em verborrágica e obtusa confusão, uma realidade que parece sair dos trilhos." (01)

É evidente que uma postura niilista e irracionalista dispensaria qualquer produção intelectual ou vinculação política. Além disso, tal postura é contraditória. Se anuncio ao mundo que não consigo compreendê-lo, este mesmo enunciado já não é algum tipo de compreensão? Manuel Castells possui uma posição muito mais frutífera e coerente, ao dizer: "acredito na racionalidade e na possibilidade de recorrer à razão sem idolatrar sua deusa. Acredito nas oportunidades de ação social significativa e de política transformadora, sem necessariamente derivar para as corredeiras fatais de utopias absolutas" (02). E, mais importante do que este auto-de-fé intelectual, propõe que partamos da "hipótese de que todas as maiores tendências das mudanças em nosso mundo novo e confuso são afins e que podemos entender seu inter-relacionamento." (03) (grifei)

Esta será a postura adotada neste trabalho: "acreditar na razão sem idolatrar sua deusa", procurando as mudanças afins que encontramos neste mundo novo e confuso. Partiremos da premissa de que a tecnologia da informação teve um papel-chave na constituição desta sociedade que surgiu nas últimas três décadas do século XX. Que esta sociedade da informação, resultado de uma profunda mudança dentro do próprio capitalismo, ao contrário do que é professado, teve como principal agente o Estado, aumentando e modificando seu aparelho regulatório e fiscal.

A proposta deste trabalho é analisar um exemplo claro desta reestruturação interna pela qual vem passando os Estados em sua atividade fiscal. O objetivo aqui será descrever as implicações institucionais e jurídicas impostas pelo Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), que revolucionou sistema tributário brasileiro, tanto na relação entre Fisco e contribuinte, como na cooperação entre os Estados Federados. Em uma segunda parte, esboçaremos um prognóstico de algumas possíveis mudanças que poderão ser feitas para aumentar a transparência da arrecadação e reduzir sua complexidade. Utilizando a tecnologia não só para difundir a informação, como também para aumentar a participação democrática.

2 – Adaptações do Estado e do direito tributário para uma economia informacional

A implantação do SPED não foi uma mera mudança burocrática interna à administração do Fisco. Sua lógica e funcionamento são muito distintos do sistema tributário moderno criado pelo Código Tributário Nacional (CTN) em 1966. Além de terem mais de quarenta anos de diferença, eles foram concebidos segundo paradigmas econômicos diferentes. No fim da década de sessenta, o Brasil se desenvolvia segundo a lógica do industrialismo. Este modo de desenvolvimento está concentrado, segundo Castells, na introdução de novas fontes de energia e na capacidade de descentralização de seu uso ao longo do processo produtivo. Tratava-se de uma atividade econômica majoritariamente industrial e fordista, por meio do qual o lucro era auferido pelo valor agregado às mercadorias. Os estoques eram comuns e quanto mais o empresário conseguisse acelerar seu giro de capital, maior seria sua remuneração. Apoiado nas políticas keynesianas, o Estado, por sua vez, era responsável pelas medidas anticíclicas e estava preocupado sobretudo em manter uma política econômica que assegurasse um alto padrão de consumo. Por isso, neste tipo de capitalismo organizado, era fundamental que houvesse uma alta concentração e centralização do capital industrial, bancário e comercial em mercados nacionais.

A partir das décadas de 1970 e 1980, a lógica passou a ser outra. No informacionalismo, vigora o que David Harvey chama de acumulação flexível. "Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional (…) Ela também envolve um novo movimento que chamarei de "compressão do espaço e tempo" no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisão decisões privada e pública se estreitam, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitam cada vez mais a difusão imediata das decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado"(04). Para que ocorressem essas três mudanças importantes – flexibilidade, inovação e compressão do tempo e espaço – foi fundamental que desenvolvimento da tecnologia de informação na década de 1970 criasse uma cultura própria que se difundisse pela sociedade e suas instituições. Como diz Manuel Castells, "é por isso que a economia é informacional, e não apenas baseada na informação, pois os atributos culturais e institucionais de todo o sistema social devem ser incluídos na implementação e difusão do novo paradigma tecnológico. A economia industrial também não se baseou apenas no uso de novas fontes de energia de produção, mas no surgimento de uma cultura industrial, caracterizada por uma nova divisão social e técnica do trabalho."(05)

Esta nova economia opera pela redução dos estoques em produção globalizada e "just in time", impondo uma maior flexibilidade regulatória para o comércio internacional. Os nossos padrões de consumo também se alteraram. O industrialismo – que girava em torno do consumo de massa de bens duráveis – vem cada vez mais cedendo espaço para o consumismo individualizado da cultura yuppie. Segundo Castells, "a economia informacional/global é organizada em torno de centros de controle capazes de coordenar, inovar e gerenciar as atividades interligadas das redes de empresas. Serviços avançados, inclusive finanças, seguros bens imobiliários, consultorias, serviços de assessoria jurídica, propaganda, projetos, marketing, relações públicas, segurança, coleta de informações e gerenciamento de sistemas de informação, bem como P&D e inovação científica, estão no cerne de todos os processos econômicos, seja na indústria, agricultura, energia, seja em serviços de diferentes tipos. Todos podem ser reduzidos à geração de conhecimento e a fluxos de informação. Portanto, os sistemas avançados de telecomunicações poderiam possibilitar sua localização dispersa pelo globo" (06) (grifo).

Evidente que a legislação tributária segue, ainda que implicitamente, a economia e o modelo de regulação a ela subjacente. Quando o CTN entrou em vigor, a maior preocupação era assegurar a legalidade e a tipicidade na cobrança dos tributos. Buscava-se segurança e uniformidade na aplicação das leis. Por isso foi tão importante encontrar a coerência conceitual na legislação tributária, sistematizando categorias determinadas por padrões mais ou menos rígidos. Por exemplo, segurança significava saber o que era o fato gerador, o conceito correto de prescrição, decadência, obrigação principal, obrigação acessória, hipótese de incidência e etc. Utilizando essas categorias interpretativas criadas pela dogmática jurídica, o Estado era controlado – pelos limites impostos pela legislação e jurisprudência – em uma relação direta entre positivação e interpretação, atividade legislativa e o estudo da linguagem. Como explica Marco Aurélio Greco, tratando da importância da dogmática jurídica na década de 1970:

"Debater com a Autoridade no plano sintático e semântico e suscitar questões ligadas à hierarquia (das normas) era um porto seguro onde o questionamento do exercício da autoridade estatal (via tributação) podia se dar sem maiores riscos" (07).

Entretanto, quando a realidade material subjacente ao texto legal se altera radicalmente, como ocorreu com a penetrabilidade da tecnologia de informação em nosso cotidiano, novas normas buscam acompanhar esta mudança e demoramos a perceber que utilizamos os mesmo conceitos para nos referir a fenômenos diferentes, rompendo com a sistematicidade e coerência entre os arranjos normativos. A dogmática passa a descrever realidades jurídicas e materiais que não existem mais e seu discurso passa a ser meramente autorreferencial: de dogmáticos para dogmáticos, signos sobre signos sem significados. Ocorre o que se chama de "descompasso categorial" ou "descompasso de paradigmas interpretativos" gerado por essa mudança estrutural. Isto pertence ao tipo identificado por Wittgenstein de que "o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida" (08). Se ocorre uma mudança radical em nossa forma de vida, em nosso hábitos, nossa linguagem deverá acompanhar estas mudanças ou a comunicação não se estabelece.

Alguns exemplos para este argumento ficar mais claro. O art. 195 do CTN diz que "para os efeitos da legislação tributária, não têm aplicação quaisquer disposições legais excludentes ou limitativas do direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais, dos comerciantes ou produtores, ou da obrigação destes de exibi-los". No parágrafo único diz que "os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes dos lançamentos nele efetuados serão conservados até que ocorra a prescrição dos créditos tributários decorrentes das operações a que se refiram". A preocupação deste artigo foi assegurar à autoridade tributária o acesso às provas físicas correspondentes às obrigações tributárias. Estas mesmas provas – os livros de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes de lançamentos – deveriam ser conservados fisicamente até a ocorrência da prescrição. A tecnologia disponível naquela época não era tão avançada e exigia um grande esforço de deslocamento físico dos agentes para que houvesse a checagem dos materiais conservados com o próprio contribuinte até a prescrição. Agora, vejamos como funciona o SPED. O art. 2º caput e §1º do decreto que o instituiu diz:

"o SPED é instrumento que unifica as atividades de recepção, validação, armazenamento e autenticação de livros e documentos que integram a escrituração comercial e fiscal dos empresários e das sociedades empresárias, mediante fluxo único computadorizado de informações". Todos os livros e documentos de que trata o caput serão emitidos em forma eletrônica e estarão a todo o tempo disponíveis para a fiscalização.

Podemos, na linguagem cotidiana, falar sobre a "realidade" sem muitos problemas de comunicação, mas comparemos como a percepção da "realidade" relevante ao direito é diferente nestes dois dispositivos legais. Escapando à lógica interna estruturada pelo CTN, os Fiscos, com a tecnologia da informação, podem ter acesso, a qualquer tempo, a todas as provas necessárias à constituição do crédito tributário. As novas normas desenvolveram um sistema completamente virtual para o cumprimento e exigência dessas obrigações. O SPED fala de um espaço de fluxos enquanto o CTN ainda está preso no espaço de lugares (09).

Se o direito, em sua própria operação, já possuía algum caráter de virtualidade, na medida em que ignora os fatos ocorridos no mundo real e considera somente as provas dos fatos para a incidência da norma, com o sistema de escrituração digital esta virtualidade ficou ainda mais evidente. Obrigações, direitos e deveres puderam ser reduzidos a um sistema único de informação para que pudessem ser processados com maior rapidez.

3 – Implicações da sociedade informacional para a dogmática tributária

Como o SPED impôs ao direito tributário o espaço de fluxos, podemos dizer que vigora atualmente um novo conceito de fato gerador, reduzido ao lançamento e processamento das informações digitais, e não mais pela saída física da mercadoria ou pelo fato de se auferir renda ou faturamento. Outro conceito importante para o direito tributário que poderá ser repensado a partir do SPED é o lançamento por homologação. Como já foi dito, a preocupação do sistema elaborado pelo CTN foi garantir a legalidade pela segurança da interpretação das leis positivadas e da jurisprudência. O esquema criado foi resumidamente este: o contribuinte deverá i) interpretar ele próprio a legislação tributária; ii) realizar o lançamento informando ao Fisco seus dados e também sua interpretação da legislação – ainda que o lançamento em si só ocorra depois da homologação – e finalmente iii) pagar os tributos. Teoricamente, a segurança jurídica seria possível, pois a interpretação do contribuinte ao realizar o lançamento seria a mesma do Fisco ao realizar a homologação. Entretanto não é isto o que ocorre. A maioria do contencioso que encontramos hoje envolve questões interpretativas sobre o direito aplicado, na medida em que o SPED já realizou uma pacificação no mundo dos fatos (10).

Podemos dizer que o conflito interpretativo sobre qual é o direito aplicado ocorra por uma questão temporal. O momento da interpretação do contribuinte e o momento da homologação do Fisco – que poderá durar até cinco anos – é evidentemente outro. Mas outra também será a nossa visão sobre as atividades tributadas. Vivemos em um mundo onde as palavras de ordem são: inovação, destruição criativa e flexibilidade. Para citar mais uma vez Harvey: "o movimento flexível do capital acentua o novo, o fugidio, o efêmero, o fugas e contingente da vida moderna, em vez dos valores mais sólidos implantados na vigência do fordismo (…) Afinal de contas, foi principalmente por intermédio da irrupção de novos negócios, da inovação e do empreendedorismo que muitos dos novos sistema de produção vieram a ser implantados" (11). A cada dia surgem não só novos produtos, surgem novas profissões, indústrias inteiras são reformuladas e novas formas vida passam a fazer parte do nosso quotidiano. Neste mundo onde mudanças tão profundas ocorrem em um curto espaço de tempo, a interpretação que damos hoje às atividades realizadas há alguns anos pode se alterar completamente. Por isso, não é o caso de dizer que o CTN e a dogmática criada para interpretá-lo padecessem de algum vício de origem. Ocorreu na verdade uma profunda mudança estrutural antes impossível de ser imaginada há cinqüenta anos, por isso os problemas que encontramos hoje devem ser repensados em novos termos.

Estas mudanças não levaram, como propõe alguns teóricos (12), a uma derrocada do direito tal qual o compreendemos. Antes o contrário. Ele não deixou de ser constituído por um sistema hierárquico e sistemático de normas que regulam sua própria criação, possui ainda um mecanismo relativamente claro – ainda que cada vez mais complexo – de diferenciar as normas válidas e inválidas e detém o monopólio legítimo da força. Podemos apontar algumas mudanças estruturais afins: a multiplicação de atos normativos infra-legais técnicos que não passam pela discussão parlamentar, o desmantelamento de direitos sociais para medidas focalistas, o impulso para o mercado financeirizado, a privatização de empresas estatais e etc. Mas nenhuma dessas mudanças apresentam um "enfraquecimento" do conceito de direito. Há uma proliferação da regulamentação jurídica e nunca tantas matérias foram tematizadas e pautadas pelo direito. Basta vermos a importância alcançada pelas decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) depois da Constituição de 1988. As grandes questões nacionais são decididas com base em argumentos jurídicos – do aborto às contendas tributárias – e passou-se a reconhecer que o direito pode ser um instrumento eficaz para resolver problemas estruturais como a redução de desigualdades e o crescimento equitativo da riqueza. Portanto, é errado dizer que o direito está perdendo sua força e que o estudo de seu funcionamento interno é infrutífero. Importante é compreender como o direito tem respondido a essas mudanças cada vez mais rápidas e quais foram suas áreas mais afetadas pela virtualidade da tecnologia.

4. Nova legalidade e democracia: Projeto SEFAZ nacional e o índice de transparência e cidadania fiscal

Devemos ter em mente dois aspectos fundamentais para pensar o direito e a democracia na sociedade informacional: a pluralidade de agentes que agora possuem acesso à informação e quem será responsável por seu processamento.

A tecnologia acessível a uma grande parcela da população evidentemente aumentou os canais de participação democrática, mas o problema agora reside na qualidade dessa informação difundida e como nos apropriamos dela. Afinal, de que adianta termos acesso a um grande número de informação se não conseguimos compreendê-la nem interpretá-la?

Temos um exemplo claro deste paradoxo no que diz respeito à transparência dos Estados Federados em disponibilizar suas respectivas informações fiscais em meios virtuais. Por mais que haja um legítimo esforço desses Estados em disponibilizar suas informações em tempo real para se adequarem à Lei da Transparência (Lei Complementar nº 131) (13), estas mesmas informações são muito complexas e escapam a um controle efetivo dos cidadãos por não saberem interpretá-las (14). Sentimos falta de quem puder simplificar essas informações disponibilizadas, padronizando seus critérios para aferir sua qualidade.

Outro exemplo envolve a complexidade inerente à atual legislação tributária. Há, neste caso, um grave problema de legalidade, pois muitas vezes o contribuinte sequer saberá qual será a norma aplicada, incorrendo em enormes custos só para manter-se atualizado em relação à legislação. O sistema elaborado pela empresa FISCOSoft (15) chamado Systax trabalha com o processamento e a simplificação de mais de 500.000 regras fiscais.

Ele opera por um sofisticado software capaz de dissecar e simplificar a legislação fiscal, cujo banco de dados é alimentado todos os dias com novas regras estatuais e federais. Por mais que um sistema como este possa ser muito útil para consultores e advogados, que não possuem a capacidade de se atualizar com tamanha rapidez, as informações geridas por este mecanismo não são emitidas por nenhuma autoridade pública. Quem utiliza este serviço sabe os riscos que incorre, pois a interpretação do Fisco para as mesmas regras pode ser outra, mas quem se responsabiliza pela interpretação é o próprio contribuinte.

Para que a tecnologia seja utilizada para recuperar a legalidade perdida, devemos pensar em novas soluções regulatórias e institucionais. Quando o CTN entrou em vigor, o Fisco ainda precisava descentralizar suas operações pois não tinha capacidade para gerir uma grande quantidade de informações. O contribuinte ainda tinha que, ele próprio, interpretar a legislação. Por isso o lançamento "por homologação" era tão útil: os contribuintes eram eles próprios um longa manus da burocracia fiscal. Hoje em dia, com a atual quantidade de informações possíveis de serem processadas pelo Fisco, não há razão burocrática para que o crédito tributário seja constituído parcialmente por quem deverá pagá-lo. O Fisco já pode arcar sozinho com essa responsabilidade.

Para que haja uma verdadeira revolução no direito tributário precisamos devolver a complexidade da legislação tributária de volta para o Fisco. Uma maneira possível de fazê-lo é utilizar o próprio SPED, não só o aumentando os poderes fiscalizatórios, como tem sido usado atualmente, mas para uma efetiva simplificação das obrigações acessórias.

Como as informações prestadas às Secretarias da Fazenda por meio SPED são enviadas antes da ocorrência do fato gerador, o Fisco já possui toda a informação sobre a operação que será realizada. Além de simplesmente autorizar as notas fiscais eletrônicas, poderia ele também calcular o imposto a ser exigido. Ou seja, poderia ele próprio interpretar a legislação tributária e dizer ao contribuinte: partindo das informações que você me forneceu, você deverá pagar determinado valor. Se o contribuinte não concordar com o valor emitido pelo Fisco ou se o contribuinte enviar as informações erradas, é evidente que o pagamento poderá ser questionado, seja em vias administrativas ou judiciais. Entretanto, como o próprio Fisco se responsabiliza pela interpretação da legislação, não poderá questionar ele próprio posteriormente o valor já pago por erros na interpretação, como ocorre atualmente.

Dois novos projetos seguem este diagnóstico. São eles o Projeto da SEFAZ Nacional e o Índice de Transparência e Cidadania Fiscal do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas. Ambos assumem que deve ser feito um esforço para melhorar as informações disponibilizadas, seja para o contribuinte que deseja pagar corretamente os tributos mas não sabe como, seja para o cidadão que quer controlar a arrecadação e os gastos de seu Estado, mas não sabe quais critérios utilizar para fazê-lo.

O Projeto da SEFAZ Nacional, que no momento não possui figura jurídica própria e ainda está em fase de estudos, partiu da constatação de que é necessário um ente público responsável pelo processamento das informações geradas em todo o território nacional pelo SPED. Sua função será justamente unificar as informações geradas para que todos os Estados Federados possam compartilhar os mesmos dados. Por exemplo, se um contribuinte fará uma operação onde incida ICMS, todas as informações que digam respeito a esta operação já estarão disponíveis aos Estados envolvidos, acabando com a assimetria federativa, seja na aplicação da legislação seja nos dados disponibilizados. Com a concretização e evolução do projeto, novas aplicações poderão ser desenvolvidas para gerar mais eficiência e simplicidade.

O Índice de Transparência e Cidadania Fiscal do NEF/FGV, também ainda em fase de elaboração, trabalhará com as informações disponibilizadas nos portais de transparência de todos os Estados.

Ele possui a ideia central, como foi exposto em seu primeiro relatório (16), de identificar critérios que possam mensurar e difundir boas práticas entre as administrações tributárias em cinco perspectivas: (i) transparência e exposição didática (para que os cidadãos possam compreender sem dificuldade) de informações nos sites sobre arrecadação e, especialmente, gasto público. (ii) transparência de informações fiscais relevantes como legislação disponibilizada, números das receitas transferidas ao ente e pelo ente, licitações realizadas e em andamento e boas práticas (iii) transparência e inteligibilidade dos critérios de aplicação/interpretação da legalidade na orientação preventiva do contribuinte;(iv) transparência e clareza de informações (publicidade dos julgados) e grau de contenciosidade fiscal e; (v) qualidade e simplicidade da legislação tributária, em que busca valorar sistematizações, reprimir o exponencial número de benefícios fiscais, inibir reiterada prática do expediente da anistia; e motivar a participação cooperativa dos contribuintes e de outros Fiscos na atualização e produção legislativa.

Estes dois exemplos nos mostram como a tecnologia pode ser bem empregada para gerar resultados positivos. "A tecnologia não é perversa; aumenta as tendências perversas da sociedade ou as tendências positivas da sociedade. As duas coisas. Bem ou mal, ela potencializa tudo". Disse uma vez Manuel Castells na entrevista concedida ao Rova Viva em 1999. É com esta ambigüidade e com estes riscos que devemos tentar compreender a sociedade em que vivemos.

5 – Referências Bibliográficas.

BAUDRILLARD, Jean, "Simulacros e Simulação", Lisboa, Relógio d’Água, 1991.

CASTELLS, Manuel, "Sociedade em Rede, Vol 1.", São Paulo, Paz e Terra, 2000.

"Internet Galaxy", New York, Oxford University Press, 2001.

DIMOULIS, Dimitri. Uma visão crítica do neoconstitucionalismo. In LEITE, George Salomão; LEITE, Glauco Salomão (orgs.). Constituição e efetividade constitucional. Salvador: Juspodivm, 2008

FARIA, José Eduardo, "O Direito na Economia Globalizada", São Paulo, Malheiros, 1999.

GRECO, Marco Aurélio. Crise do formalismo no Direito Tributário Brasileiro In: Nas fronteiras do Formalismo. (orgs.) José Rodrigo Rodriguez, Carlos Eduardo Batalha da Silva, Samuel Rodrigues Barbosa. São Paulo, Saraiva, 2010.

HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo, Loyola, 2010

JAMESON, Fredric. "Pós-Modernidade e Sociedade de Consumo".

In São Paulo, "Novos Estudos CEBRAP" no. 12, junho de 1985.

LYOTARD, Jean-François Lyotard, "O Pós-Moderno", Rio de Janeiro, José Olympio, 1986.

OLLER, Newton, "Coleção SPED", São Paulo, IOB, 2010.

WITTGENSTEIN, Ludwig, "Investigações Filosóficas", Em "Os Pensadores, São Paulo, Nova Cultural, 1999.

Notas

(01) BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo, Editora 34, 2010. p. 11.

(02) CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999. P. 42.

(03) Idem, ibidem.

(04) HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo, Loyola, 2010. p. 140.

(05) CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999. p. 141.

(06) Idem. p. 469.

(07) GRECO, Marco Aurélio. Crise do formalismo no Direito Tributário Brasileiro In: Nas fronteiras do Formalismo. (orgs.) José Rodrigo Rodriguez, Carlos Eduardo Batalha da Silva, Samuel Rodrigues Barbosa. São Paulo, Saraiva, 2010. p. 230.

(08) WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas, São Paulo, Os Pensadores, 1999. §23.

(09) "Fluxo não representam apenas um elemento da organização social: são a expressão dos processos que dominam nossa vida econômica, política e simbólica(…) Por fluxos, entendo as sequências intencionais, repetitivas e programáveis de intercâmbio e interação entre posições fisicamente desarticuladas, mantidas por atores sociais nas estruturas econômica, política e simbólica da sociedade."

CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999. p. 501.

(10) Uma pesquisa recente elaborada pela Fiscosoft com o levantamento da opinião de executivos de 1.181 empresas de médio e grande porte em todo o país apontou que 79,3% dos entrevistados já admitem que o SPED trouxe maior qualidade gerencial das informações e dos controles internos, com a redução de erros, que podem acarretar multas. Além disso, 70% dos participantes acreditam em uma redução da sonegação fiscal e, consequentemente, da concorrência desleal.

Em: http://www.aasp.org.br/aasp/imprensa/clipping/cli_noticia.asp?idnot=11010.

(11) HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo, Loyola, 2010. p. 160

(12) Para uma discussão profunda sobre o tema ver: DIMOULIS, Dimitri. Uma visão crítica do neoconstitucionalismo. In LEITE, George Salomão; LEITE, Glauco Salomão (orgs.). Constituição e efetividade constitucional. Salvador: Juspodivm, 2008. p. 43-59.

(13) O art. 48 da LC n. 131 diz: "A transparência será assegurada também mediante: II – liberação ao pleno conhecimento e acompanhamento da sociedade, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira, em meios eletrônicos de acesso público".

(14) Ver o relatório elaborado pelo Núcleo de Estudos Fiscais em:

http://nucleodeestudosfiscais.com.br/files/upload/2011/09/27/indice-de-transparencia-e-cidadania-fiscal-setembro.pdf

(15) FISCOSoft é uma empresa cujo principal serviço é oferecer a seus clientes informações simplificadas sobre a legislação fiscal. Ver: http://www.Fiscosoft.com.br/empresa

(16) Ver nota 14.

(17) A transcrição desta entrevista está disponível em: http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/141/entrevistados/manuel_castells_1999.htm

Guilherme Villela de Viana Bandeira

Pesquisador do NEF e Graduando em Direito pela Escola de Direito de São Paulo - FGV.

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