Reflexões a partir do Balanço Aduaneiro de 2022: desafios e interesses
Onofre Alves Batista Júnior; Filipe Piazzi Mariano da Silva
A aduana existe em função de uma ampla gama de interesses públicos e privados que se interpenetram no Estado e na sociedade civil, consubstanciando-se no princípio da supremacia do interesse nacional, que rege o Direito Aduaneiro. Como temos defendido, a finalidade precípua da aduana não é o controle, sendo este apenas um instrumento assecuratório da verdadeira finalidade depreendida da Constituição e dos tratados firmados pelo Brasil: a garantia do interesse nacional [1].
Guimarães Rosa, nosso grande escritor e diplomata mineiro, disse que “não há nada de mais terrível que uma literatura de papel”, pois “a literatura só pode nascer da vida” [2]. Dizemos, semelhantemente, sobre área tão mais árida que a literatura, que uma aduana de papel é terrível, pois a vida de qualquer aduana é o interesse nacional, visto que é deste interesse que ela nasce e é nele que se justifica. É também sobre isso que dissertaremos aqui.
Em fevereiro, a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil disponibilizou o Balanço Aduaneiro referente a 2022. O levantamento reúne os principais resultados da aduana brasileira em matéria de importação; exportação; remessas internacionais; controle aduaneiro de bens e viajantes; gerenciamento de riscos; fiscalização e repressão, bem como apresenta resultados do Programa Operador Econômico Autorizado (OEA). O balanço divulgado não aponta uma realidade idílica no âmbito do comércio exterior brasileiro. Ao contrário, indica grandes desafios, que não podem ser ignorados e que, de fato, não ignoramos.
De acordo com o documento da RFB, as importações brasileiras, em 2022, totalizaram US$ 355,09 bilhões, ao passo que, em 2021, o montante importado foi de US$ 302,07 bilhões. Foram 2.585.378 declarações de importação (DI) registradas, totalizando um crescimento de 3,36% em 2022, em comparação ao ano anterior. O Balanço Aduaneiro também apresenta o Grau de Fluidez na Importação, que indica o número de DIs na modalidade normal desembaraçadas em menos de 24h. Em 2022, o Grau de Fluidez foi de 91,96%, uma variação negativa de -2,37% em relação a 2021; já o Tempo Médio Bruto do despacho de importação, que engloba o tempo entre o registro da DI e o seu desembaraço, foi de 22,25 horas, em média. Já em 2021, esse tempo foi de 15,3 horas e, em 2020, de 18,5 horas.
O primeiro alerta reside no aumento do tempo entre o registro da DI e a liberação das mercadorias no ano passado, quando comparado a 2020 e 2021. É sabido que o incremento da facilidade e da rapidez desse processo de importação reduz custos e aumenta a eficiência das operações comerciais, o que incrementa a competitividade do Brasil no mercado internacional. A diminuição do grau de fluidez na importação pode indicar também um aumento dos atrasos nas entregas de mercadorias e outros prejuízos decorrentes de multas, indenizações como o demurrage e despesas adicionais com armazenamento, em desfavor das empresas nacionais e do interesse nacional.
Além disso, o tempo médio de despacho de importação foi o maior, desde 2019, em todos os modais. O tempo aumentou destacadamente no modal aéreo, que, em 2022, foi de 17,14 horas, representando 8,28 horas a mais do que em 2021. No modal marítimo, os despachos levaram, em média, 28,54 horas, ao passo que, em 2021, levavam 20,89 horas, representando aumento de 7,65 horas. Já no modal terrestre, a média foi de 11,8 horas, e, desde 2019, nunca fora maior que 6,65. O problema maior parece residir no aumento do tempo no modal marítimo, que é um dos pilares do comércio internacional e da economia global. A diminuição desses valores é mais um grande desafio.
Em 2022, as exportações brasileiras totalizaram US$ 355,09 bilhões e o número de declarações únicas de exportação (DU-E) registradas foi de 2.100.885, respectivamente, isso representou um crescimento de 17,55% e 5,38%, se comparado ao mesmo período em 2021. As informações sobre as exportações no Balanço Aduaneiro de 2022 não são tão detalhadas como aquelas sobre as importações. Mesmo assim, merece realce a redução em 5,0% do tempo médio bruto do despacho de exportação, que se refere ao tempo entre a Apresentação da Carga para Despacho (ACD) e o embarque efetivo da carga. Contudo, comparado a 2021, o tempo médio bruto de despacho de exportação, no modal marítimo, aumentou em 22,3%, ao passo que o tempo diminuiu em 20,6%, no aéreo, e em 3,7%, no terrestre.
Já afirmamos em outra oportunidade, que os principais desafios da administração aduaneira são: (1) a necessidade de investir em tecnologia para processar as transações de forma mais eficiente e automática, buscando a eficiência e excelência operacional; (2) a implementação de medidas efetivas para desburocratizar os processos e reduzir os custos, tornando as operações mais ágeis e atraentes; e (3) a manutenção da segurança e conformidade dos processos, com a implementação de procedimentos adequados de gerenciamento de riscos internacionais, a fim de concentrar o controle nos casos que possam realmente prejudicar o comércio internacional [3]. Todos esses desafios podem ser extraídos das informações selecionados do Balanço Aduaneiro de 2022.
Para não dizer que não falamos das flores, o levantamento também registra que a Aduana promoveu diversas melhorias no processo de importação de mercadorias, incluindo ações para a simplificação do despacho com entrega fracionada, do despacho antecipado e da descarga direta de granéis. Tal simplificação ocorreu por intermédio das alterações da IN SRF 680/2006 empreendidas pelas INs 2.072/2022 e 2.104/2022. As mudanças geraram uma redução de 50% no tempo médio entre o registro e o desembaraço das operações, em comparação com o ano de 2021.
Além disso, foi aprimorado o despacho antecipado, que é uma autorização especial concedida pela aduana para que algumas mercadorias (e.g. inflamáveis, perecíveis e granéis) passem pela fronteira com mais rapidez. Anteriormente, todas essas mercadorias passavam por um controle aduaneiro rigoroso na zona primária. Todavia, com a melhoria dos procedimentos e ferramentas de gerenciamento de riscos, em 2022, foi possível agilizar o processo e o fluxo de cargas na fronteira, mantendo o efetivo exercício do controle aduaneiro, como aponta o levantamento de 2022. Para isso, a IN RFB 680/2006 também foi alterada, de modo a unificar as normas sobre o tema e permitir descargas diretas, visando a desburocratização e a maior eficiência do processo de despacho antecipado.
O Balanço Aduaneiro também destaca a criação do Programa BR do Mar. Instituído pela Lei 14.301/2022, o programa suscitou a alteração da IN RFB 1.471/2014 e a criação de um nova hipótese de incidência para o Adicional de Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM). Isso até se pode questionar, mas ainda falamos aqui sobre flores, pois foi afastada a incidência da Taxa de Utilização do Mercante (TUM) sobre a navegação de cabotagem e interior quando os portos de origem ou destino estiverem situados nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. A regulamentação do AFRMM e da TUM foi harmonizada e consolidada em um único instrumento pela RFB, a IN RFB 2.102/2022.
Já muito bem explorado na coluna Território Aduaneiro, da Consultor Jurídico, pelo querido Fernando Pieri (aqui), o Programa Operador Econômico Autorizado (OEA), em 2022, incluiu novos benefícios para os operadores que possuem a certificação ativa. Com a Portaria RFB nº 228/2022, os OEA passaram a ter prioridade no julgamento de processos administrativos fiscais nas Delegacias de Julgamento da Receita Federal do Brasil (DRJ). Ademais disso, os OEA-Conformidade ganharam prioridade na análise de consultas sobre a interpretação da legislação tributária e aduaneira, conforme a Portaria RFB 239/2022, que entrou em vigor em novembro de 2022.
Em dezembro, por conseguinte, o percentual de mercadorias exportadas por OEA selecionadas para canais de conferência foi de apenas 0,36%. Ou seja, 99,64% dessas declarações de exportação foram automaticamente liberadas em canal verde. Já na importação, o benefício é concedido somente aos importadores certificados como OEA-Conformidade Nível 2. Também em dezembro, somente 0,61% das importações dos OEA foram selecionadas para canais de conferência, de modo que 99,39% das importações foram automaticamente liberadas em canal verde. Desburocratização de processos redução de custos, agilidade e atratividade!
O controle fronteiriço é uma das mais antigas e fundamentais formas defesa da soberania nacional. Por essa razão, o núcleo do Direito Aduaneiro reside nas normas que regulam a entrada e saída de mercadorias nos territórios aduaneiros, bem como nas normas que regulam o exercício do poder de polícia aduaneira, que é responsável pelo controle dessas operações. Nesse sentido, é fundamental destacar que a aduana, em 2022, adotou medidas de combate à fraude em três áreas principais: 1) interposição fraudulenta, 2) fraudes na importação e 3) fraudes em procedimentos gerais e específicos.
Nessa linha, o resultado para a RFB decorrente da apreensão de mercadorias, no ano de 2022, foi de impressionantes R$ 3,1 bilhões. Mais de 3.800 operações foram empreendidas contra o descaminho, a importação irregular e o contrabando de mercadorias estrangeiras no Brasil, contra a sonegação fiscal, a entrada de produtos fora dos padrões mínimos de segurança e a concorrência desleal desses produtos em relação à indústria nacional. Tudo isso só elucida como o poder de atuação da aduana é instrumental e não um fim em si mesmo.
O poder aduaneiro é um suporte para a ação do Estado na realização do interesse nacional. Demonstra isso o fato de que, no ranking das maiores apreensões, o cigarro corresponde a 26,56% do total de apreensões; seguido por eletroeletrônicos (21,66%); veículos (7,39%); vestuário (4,09%); bens de informática (2,74%); bebidas (2,36%); brinquedos (1,96%); relógios (1,06%); inseticidas, fungicidas, herbicidas e desinfetantes (0,90%); e bolsas e acessórios (0,88%). O princípio da supremacia do interesse nacional reclama, nesses casos, a defesa da salubridade e da segurança nacional, por exemplo.
O levantamento da RFB sobre o ano passado demonstra a complexidade e a efetividade do trabalhado realizado pela aduana brasileira, que tem incorporado diversas tecnologias de ponta, tais como a o Sistema de Seleção Aduaneira por Aprendizagem de Máquina (Sisam), em prol da agilização do comércio exterior e da efetiva consecução de compromissos internacionais firmados pelo Brasil para a facilitação do comércio.
No entanto, como já demonstrado, é preciso ir além das flores. Essas novas tecnologias não estão isentas de problemas e críticas, razão pela qual o balanço de 2022 não deveria ter prescindido de detalhar os critérios e métodos que o Sisam e outros sistemas algorítmicos têm utilizado no exercício do controle aduaneiro brasileiro. É imperativo questionar como os algoritmos operam na prática, quais as bases de dados os alimentam e como e quem realiza os feedbacks necessários para o machine learning. Somente a partir das respostas a essas questões (e outras também de ordem técnica) será possível garantir a transparência e o melhor uso das novas tecnologias no comércio exterior, destacadamente no que se refere ao gerenciamento de riscos. Esse é um dos grandes desafios da aduana no século. 21.
Não deveria ser necessário destacar que a aduana não pode ser leônica. Entretanto, no Balanço Aduaneiro consta que as práticas de gerenciamento de riscos, que originalmente foram estruturadas para coibir ilícitos aduaneiros de alta gravidade (e.g. fraudes), foram utilizadas para aumentar a arrecadação federal. Em 2022, o esforço arrecadatório, a partir do aumento da seleção aleatória de DIs para conferência física de mercadorias, prejudicou a eficácia das seleções e diminuiu a apreensão de mercadorias, no curso do despacho de importação. É isto o que demonstra o próprio levantamento da aduana brasileira. Contudo, o princípio da defesa do interesse nacional não traduz a ideia de supremacia do interesse fazendário.
Nos termos da própria RFB, “globalmente se recolheu mais porque a quantidade selecionada aumentou, mas a efetividade da seleção por DI diminuiu e houve prejuízo às ações mais complexas/estruturadas de combate à fraude, reduzindo o volume de apreensões” [4]. Isso exemplifica como afãs arrecadatórios podem gerar prejuízos aos contribuintes e denota que o controle aduaneiro não é um fim em si mesmo, mas um instrumento para que se garanta o melhor interesse nacional possível. A aduana não pode ser uma trava ao comércio. Ao contrário, deve facilitá-lo, mediante o exercício coerente e eficaz do poder de polícia aduaneira, impedindo, assim, a sonegação de tributos, o contrabando e o descaminho de mercadorias. É em favor disso que o controle existe.
O maior desafio da aduana “está em abrir as trancas e saber como guardar os portões não apenas como sentinela, mas também como agente indutor do desenvolvimento nacional” [5]. Nem todos os resultados do Balanço indicam a busca pela superação desse salutar desafio. O interesse da aduana deve ser o interesse nacional, não o interesse fazendário. Este é bem mais restrito que aquele, ao passo que a atuação da aduana é bem mais ampla do que a da Fazenda.
Retornando às flores, Guimarães Rosa também disse que a “a literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que ele escreve” [6]. Ora, é semelhante, em certo sentido, ainda que nada poético, o que dizemos: o Direito Aduaneiro se sustenta no princípio da supremacia do interesse nacional e a aduana deve ter isso como sustentáculo. Por isso, a aduana “deve ser” o interesse nacional da forma que lhe prescreve a legislação, nada além, nada menos que isso.
[1] Cf. FLORIANO, Daniela; BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. Reflexões sobre autonomia do Direito Aduaneiro e seus Princípios Informadores. In: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; SILVA, Paulo Roberto Coimbra Silva. Direito aduaneiro e direito tributário aduaneiro. Belo Horizonte: Letramento, Casa do Direito, 2022. p. 17-58.
[2] LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa, in COUTINHO, Eduardo F. (org.). Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1983.
[3] FLORIANO; BATISTA JÚNIOR, opus citatum.
[4] Cf. RFB. Balanço Aduaneiro de 2022. p. 31.
[5] Ibidem.
[6] LORENZ, opus citatum.
Onofre Alves Batista Júnior; Filipe Piazzi Mariano da Silva
Onofre Alves Batista Júnior é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal), doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal), professor associado do Quadro Permanente da Graduação, Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra, Chaves & Batista Advogados.
Filipe Piazzi Mariano da Silva é doutor e mestre em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP), professor do Unasp e sócio-sênior do Coimbra, Chaves & Batista Advogados.