Isenções dos clubes de futebol: Bundesliga ou Batalha dos Aflitos?

Junia Gouveia Sampaio, Thais de Laurentiis

É notório que o futebol passou de ócio para negócio, em razão das elevadas cifras envolvidas nas negociações com jogadores profissionais. No âmbito civil/societário, trata-se de atividade com contornos muito específicos. E no âmbito tributário, gera controvérsias sobre a fruição de isenções (artigo 15 da Lei nº 9.532/97; artigo 13 da Lei nº 11.345/06; e artigo 13, IV, da MP nº 2.158/2001), como pretendemos abordar na coluna de hoje, analisando o histórico legislativo e a jurisprudência do Carf sobre a matéria [1].

Como esclarece Álvaro Melo Filho[2], em termos concorrenciais o desporto funciona de uma forma singular:

“A lógica da concorrência no mercado de futebol é diferente da lógica de outros mercados, posto que as equipes rivais tornam-se peças fundamentais, ou seja, os competidores desportivos necessitam uns dos outros para produzirem o que eles vendem, e estão sempre ‘separadamente juntos’.”

Também do ponto de vista do direito trabalhista há especificidades, como a não aplicação do instituto da equiparação salarial (artigo 461 da CLT), uma vez que os jogadores talentosos ganham mais pelo desempenho da mesma tarefa (partida de futebol) que seus pares.

As peculiaridades são tantas que resultaram num ramo jurídico já sedimentado: o direito desportivo. Segundo Leal Amado, “o direito deve levar em conta os traços específicos do desporto quando da respectiva regulamentação, pois o desporto mesmo enquanto atividade econômica apresenta especificidades que o ordenamento desportivo não pode ignorar nem desprezar” [3].

Uma das discussões mais importantes, no âmbito do direito desportivo, versa sobre a necessidade de transparência e responsabilização dos clubes de futebol [4]. Nesse sentido a legislação desportiva procurou a aproximação do modelo de constituição dos clubes ao modelo empresarial, no contexto em que boa parte dos clubes de futebol, especialmente os mais antigos, são organizados sob a forma de associações civis.

A partir da publicação da Lei nº 8.672/93 (Lei Zico), o direito desportivo procurou, gradativamente, promover a transformação dos clubes de futebol em empresas. A referida lei, em seu artigo 11, facultava aos clubes de futebol manter a gestão de suas atividades sob a forma de sociedade com fins lucrativos.

Com a publicação da Lei 9.615/98 (Lei Pelé), o que era uma faculdade tornou-se uma obrigação. Isso porque os clubes de futebol foram compelidos a adotar uma das seguintes formas societárias: a) sociedades civis de fins econômicos; b) sociedades comerciais admitidas pela legislação; ou c) entidades de prática desportiva que constituírem sociedade comercial para administração das suas atividades. O artigo 94 da mesma lei concedeu o prazo de dois anos para que as entidades se adaptassem às alterações, prazo esse dilatado para três anos com a publicação da Lei nº 9.940/99.

A imposição do modelo empresarial pela Lei Pelé gerou forte reação da doutrina do direito desportivo, a qual entendia vulnerados diversos princípios constitucionais como o da liberdade de associação (artigo 5º, XVII e XVIII) e o da autonomia desportiva (artigo 217, I).

Antes que fosse extinto o prazo três anos estabelecido para transformação societária dos clubes de futebol, foi publicada a Lei nº 9.981/00 (Lei Maguito) que restabeleceu a facultatividade da transformação do clube em empresa.

Essa faculdade permaneceu até a publicação da Lei nº 10.672/03, a qual trouxe uma espécie de obrigatoriedade transversa. Isso porque, embora não tenha alterado o caput do artigo 27 da Lei Pelé, determinou, em seu §11, que as entidades desportivas profissionais, que não se constituíssem como sociedades empresárias, ficariam sujeitas ao regime da sociedade comum.

O mencionado dispositivo, no entanto, foi revogado com a publicação da Lei nº 12.395/11, que deixou explícita a facultatividade na adoção do modelo jurídico pelos clubes, sem qualquer restrição ou sanção para aqueles que não se transformassem em sociedade empresária.

Tal histórico legislativo é importante porque a discussão central sobre a revogação da isenção dos clubes, de que trata o artigo 15 da Lei nº 9.532/97, está relacionada à natureza jurídica destes.

De acordo com a Receita Federal do Brasil (Soluções Consulta 78, de 14 de agosto de 2002; e 76, de 25 de outubro de 2004) e a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (Parecer PGFN/CAT/Nº 2567/2012), a natureza empresarial dos clubes de futebol determinaria a revogação da isenção, pois, independente da constituição formal como sociedade civil sem fins lucrativos, os clubes não poderiam gozar da isenção aplicável a tais associações.

Nesse contexto, as autuações fiscais lavradas contra clubes de futebol argumentam que:

a) a isenção que os clubes de profissional desfrutaram no período de 1943 a 1997 foi expressamente revogada, a partir de 1998, pelo artigo 18 da Lei 9.532/1997;

b) como sociedades em comum dedicadas à prática desportiva de caráter profissional, em pleno exercício da atividade econômica na exploração e gestão do futebol, os clubes não se enquadram literalmente entre as entidades elencadas nos artigos 12 e 15 da Lei nº 9.532/97, de vez que não são “instituição de caráter filantrópico, recreativo, cultural ou científico”, ou “associação civil que preste os serviços para os quais houver sido instituída e os coloque à disposição do grupo de pessoa a que se destina, sem fins lucrativos”, não fazendo jus, portanto, à isenção àquelas concedidas;

c) somente têm direito à isenção prevista no artigo 13 da Lei nº 11.345/06 (Timemania) os clubes de futebol profissional transformados, ou constituídos, como sociedade empresária (empresa), segundo um dos tipos regulados nos artigos 1.039 a 1.092 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil;

d) independentemente da forma jurídica adotada, os clubes de futebol profissional, equiparando-se à sociedade empresária, sujeitam-se à incidência do PIS e Cofins sobre o faturamento.

Ao analisar as decisões do Carf é possível constatar posicionamentos divergentes quanto ao tema. É importante destacar, no entanto, que existem decisões, como por exemplo o Acórdão nº 108-08.859, que mantiveram a suspensão da isenção diante da comprovação, por parte da autoridade fiscal, de que o clube de futebol teria descumprido alguns dos requisitos do artigo 12, §2º da Lei nº 9.532/97. Nesse tipo de caso não se discute a questão jurídica sobre o direito à isenção por parte dos clubes de futebol, mas o cumprimento das obrigações necessárias à sua fruição.

Já noutros casos é possível verificar que, em momento algum, a autoridade fiscal suscitou ou comprovou o descumprimento dos requisitos para fruição da isenção. Nessas situações, o fundamento utilizado no trabalho fiscal é de índole estritamente jurídica, qual seja, a revogação da isenção tendo em vista que a atividade desempenhada pelos clubes de futebol caracterizarem-se como verdadeiro exercício de atividade econômica.

No Acórdão nº 1402.002.182 foi dado provimento ao recurso de ofício interposto em face da decisão da DRJ, a qual deu razão à impugnação do clube por entender que mesmo tendo o artigo 18 da Lei nº 9.532/97 revogado a isenção do imposto de renda para os clubes de futebol (originalmente prevista no artigo 30, da Lei 4.502/64), este se caracterizava como associação civil e, sob essa modalidade, enquadrava-se no parágrafo único do referido artigo, uma vez que ele alberga a isenção com base no artigo 15 da mesma lei. A turma ordinária do Carf, no entanto, reformou a mencionada decisão por entender que não haveria que se falar em prestação de serviço por parte do clube, além de que a autonomia das entidades esportivas para definir sua organização e funcionamento não pode ser usada para se eximir da incidência tributária.

A referida decisão foi reformada, pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), no julgamento do Acórdão nº 9101-003.648, a qual adotou as razões de decidir esposadas pela DRJ [5]. A decisão destaca que é fato incontroverso que a entidade autuada, além de um time de futebol, é um clube sócio recreativo que disponibiliza múltiplos serviços para seus associados e que, no caso, foram tributadas apenas as receitas ligadas ao clube de futebol, o que permitiria a conclusão de que a autoridade fiscal teria reconhecido que, na essência, o clube seria uma entidade intrinsecamente isenta. Sendo assim, a autoridade fiscal teria descumprido a orientação constante do item 30 do “Perguntas e Respostas do ano de 2012” o qual estabelece que não é possível a convivência de rendimentos isentos com não isentos, tendo em vista não ser possível o gozo de isenção pela metade, ou todos os rendimentos são isentos, se cumpridos os requisitos da Lei nº 9.532, de 1997, ou todos são submetidos à tributação se descumpridos os requisitos.

A decisão da CSRF menciona ainda que o artigo 18 da Lei nº 9.532/97 remete à revogação da isenção concedida com base no artigo 30 da Lei nº 4.506, de 1964, e que o parágrafo único do referido artigo 18 determina a manutenção da isenção das entidades previstas nos arts. 12 ou 15 da mesma lei, dentre as quais, estariam as sociedades civis sem fins lucrativos. Sendo assim, para tais entidades, o parágrafo único do artigo 18 seria inoperante, porque não existe necessidade de assegurar benefício que a entidade já dispõe. Nesse sentido, o objetivo da regra legal foi permitir que as entidades ali mencionadas conservassem a isenção, quando exercessem as atividades econômicas listadas nos seus incisos.

Dessarte, o julgamento da CSRF refuta a alegação da autoridade fiscal de que não é possível considerar os clubes como associação civil, uma vez que não prestam nenhum serviço. Afinal, tanto o associado quanto o torcedor pagam para frequentar os estádios. Haja vista que o que recebem em troca (o jogo de futebol) não pode ser qualificado como “produto”, trata-se de um serviço, comparável ao serviço que uma sala de cinema presta ao espectador pagante.

Aponta também que a fiscalização confunde “finalidade” e “atividade” lucrativa, pois é possível o exercício de atividade lucrativa sem que se perca a característica de uma entidade sem fins lucrativos, uma vez que o §3º da Lei nº 9.532/97 estabelece que se considera entidade sem fins lucrativos a que não apresente superávit nas suas contas ou, caso o apresente em determinado exercício, destine o resultado, integralmente à manutenção e ao desenvolvimento das suas atividades essenciais. Como o trabalho fiscal, naquele caso concreto, não apontou a existência de qualquer distribuição dos resultados positivos por parte do clube, o fato de obter lucro com a exploração da atividade não impediria a fruição da isenção.

Quanto ao argumento utilizado pela fiscalização de que o §13º do artigo 27 da Lei Pelé teria determinado a equiparação das entidades de prática desportiva às sociedades empresárias para efeitos tributários e fiscais, a decisão conclui que essa equiparação existe para fins do disposto naquele ato legal (Lei Pelé), não produzindo efeitos em outras leis como, por exemplo, a lei tributária.

Podemos encontrar no Carf outros julgamentos a respeito dessa temática.

No Acórdão 1201-002.073, a turma negou provimento, por voto de qualidade, ao recurso voluntário do contribuinte com base nos mesmos fundamentos utilizados no Acórdão 1402.002.182, expostos acima.

A referida decisão também foi reformada pela CSRF, ao ser proferido o Acórdão nº 9101-003.648, de relatoria do Conselheiro Fernando Brasil. O fundamento central do voto do relator foi o de que a Lei n° 10.672/03, ao introduzir o §13 do artigo 27 da Lei Pelé, estabeleceu que a entidade desportiva que se equiparasse a uma sociedade empresária para fins de fiscalização e controle no disposto naquela lei — notadamente para efeitos tributários, fiscais, previdenciários, financeiros, contábeis e administrativos, independente da forma que estivesse constituída —, construiu uma ficção jurídica e, ao estabelecer tal ficção, também regulou expressamente o alcance do seu regime jurídico. Sendo assim, à equiparação dos clubes de futebol às sociedades empresariais valeria apenas para fiscalização e controle do disposto na Lei Pelé.

Já na decisão proferida por meio do Acórdão 9202-010.589, foi analisada a alegação fiscal de que a publicação do artigo 13 da Lei nº 11.345/06 (Timemania) instituiu a isenção aos clubes de futebol constituídos como entidades empresárias, não sendo extensivo, portanto, aos clubes constituídos sob a forma de associações civis. A mencionada decisão concluiu que o dispositivo estendeu aos clubes de futebol organizados sob a forma de sociedade empresária a isenção já existente para os demais clubes.

Por fim, a isenção de clubes de futebol também foi objeto de análise no âmbito da 3ª Seção de Julgamento do Carf, conforme se verifica pela no Acórdão nº 3301-010.908. Numa síntese, a decisão rejeitou a isenção do clube com base nos seguintes fundamentos: a) o clube de futebol não é uma entidade de assistência social; b) os clubes de futebol não têm caráter filantrópico, científico, cultural ou recreativo, nem podem ser classificados como associações civis prestadoras de serviço; c) a Lei Pelé teria determinado o caráter econômico das entidades que desenvolvem o desporto profissional; d) a isenção prevista nos artigo 13 da Lei nº 11.345 aplicar-se-ia apenas às entidades desportivas administradas por sociedade empresária.

Diante da mencionada decisão, o clube apresentou recurso especial, o qual foi admitido, mas ainda não foi julgado pela 3ª Turma da CSRF.

Do exposto, verificamos que existe uma tendência no âmbito da 1ª Turma da CSRF em reconhecer a isenção dos clubes de futebol, embora a matéria ainda seja controversa no âmbito das turmas ordinárias e esteja pendente de apreciação pela 3ª Turma da CSRF. Assim, resta saber se a jurisprudência administrativa da CSRF sobre o tema seguirá firme como o Bayern de Munique vencendo a Bundesliga, ou se representará uma Batalha dos Aflitos, como aquela vivida por Grêmio e Náutico em 2005.

[1] O tema foi tratado na presente coluna em 2019 (https://www.conjur.com.br/2019-jun-05/direto-carf-carf-reconhece-isencao-tributaria-clubes-futebol), de modo que aqui apresentaremos novas considerações e perspectivas a seu respeito.

[2] FILHO, Álvaro de Melo – Nova Lei Pelé — Avanços e Impactos, ed. Maquinária, p.17/23

[3] Apud FILHO, Álvaro de Melo — Nova Lei Pelé — Avanços e Impactos, ed. Maquinária, p. 25.

[4] FILHO, Álvaro de Melo — Nova Lei Pelé — Avanços e Impactos, ed. Maquinária, p. 70/87.

[5] No mesmo sentido, citamos os Acórdão nº 1301-003.869, 1402-001.311, 1401-000.838 e 9101-006.133.

Junia Gouveia Sampaio, Thais de Laurentiis

Junia Gouveia Sampaio é mestre em Direito Tributário pela UFMG, professora de Direito Tributário e Previdenciário, diretora da Abradt, vice-presidente da 2ª Turma Ordinária, da 4ª Câmara da 1ª Seção de julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Thais de Laurentiis é conselheira titular do Carf, vice-presidente da Turma 1.201, árbitra no CBMA, doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP — com período na Sciences Po/Paris —, especialista pelo Ibet, graduada pela Faculdade de Direito da USP, associada do IBDT e professora de Direito Tributário e Direito Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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