Precedentes vinculantes no processo administrativo estadual de São Paulo

Thiago Boscoli Ferreira

Desde a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004 com a instituição da repercussão geral, nosso sistema jurisdicional deu passo decisivo na implantação de uma cultura de valorização dos precedentes, tanto na seleção de casos para julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, quanto na atribuição de uma força vinculante aos entendimentos manifestados sob determinado procedimento de julgamento.

Seguiram-se então as necessárias alterações no Código de Processo Civil, primeiro pela edição da Lei nº 11.418/2006 regulamentando o funcionamento do sistema de repercussão geral no âmbito do STF, clarificando seus requisitos e, principalmente, disciplinando a sua vinculação aos casos sob julgamento na segunda instância do Poder Judiciário que tratassem do mesmo assunto.

Posteriormente, com a edição da Lei Federal nº 11.672/2008 foi instituído o julgamento de recursos especiais repetitivos, por meio do qual diante da multiplicidade de recursos sobre um mesmo tema, caberia ao presidente do Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia, ou na sua omissão, ao relator de processo no próprio Superior Tribunal de Justiça, para que fosse julgado nesse tribunal superior, sobrestando-se os demais recursos especiais pendentes que tratassem da mesma matéria, para aplicação futura do entendimento fixado no julgamento do recurso representativo.

Esse retorno histórico é importante para que o leitor e a leitora tenham consciência de que já se encontra plenamente incorporada ao ordenamento jurídico contemporâneo a sistemática dos precedentes vinculantes, totalizando aproximadamente 16 anos de prática para a repercussão geral e 15 para os recursos repetitivos.

Mas, não temos dúvida em afirmar que foi com o Código de Processo Civil de 2015 que o sistema de precedentes vinculantes ganhou reforço, especialmente com previsões como a dos artigos 926, 927, 928, 976, 985, 1.036 e 1.040, no sentido de que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, bem como a obrigatoriedade de observância das decisões proferidas não somente no julgamento de processos em controle concentrado de constitucionalidade e enunciados de súmula vinculante, mas também dos acórdãos proferidos em incidente de resolução de demandas repetitivas, em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos, bem como decisões de plenário ou órgãos especiais dos tribunais.

O principal objetivo do legislador ao regular o sistema de precedentes vinculantes foi o de promover a racionalização e a otimização dos pronunciamentos jurisdicionais, evitando que um mesmo assunto seja julgado diversas vezes, projetando-se uma redução do número de processos e o risco de decisões contraditórias.

A partir do modelo do contencioso judicial, a Lei nº 10.522/2002 previu em seu artigo 19-A a vinculação dos auditores fiscais da Receita Federal aos julgamentos proferidos pelo Supremo e pelo STJ em sede de repercussão geral e recurso repetitivo, dispondo que referidos agentes não poderão lavrar autuações sobre estes temas.

De igual forma, o Regimento Interno do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) prevê no artigo 62, §2º, que os julgamentos proferidos pelos tribunais de cúpula em sede de repercussão geral e recurso repetitivo deverão ser reproduzidos pelos conselheiros no julgamento de recursos no âmbito do tribunal administrativo federal.

Nos dois casos, é importante atentar, o comando normativo veio no modal obrigatório, não restando aos referidos agentes opção de aplicar, ou não, os precedentes. Atribui-lhes os referidos dispositivos o dever de julgar consoante o entendimento proferido sob o rito dos precedentes vinculantes.

Trata-se de decorrência lógica e necessária para o adequado funcionamento do sistema de precedentes, analisado em seu aspecto macro, afinal, o principal traço que distingue a jurisdição administrativa tributária da jurisdição judicial é o foco ejetor da resposta à questão tributária posta, mas em ambos os ambientes o objetivo é o mesmo: solucionar o conflito que envolve a relação entre fisco e contribuinte.

Considerando que a função da jurisdição, seja a administrativa, seja a judicial, é a resolução de um conflito de interesses, é salutar que a jurisdição administrativa se submeta ao quanto decidido pelo Poder Judiciário quando já houver precedente julgado sob o procedimento da repercussão geral ou dos recursos repetitivos.

Analisando a questão sob a ótica da racionalidade do ordenamento jurídico, parece não fazer sentido que um tema já decidido pelo Poder Judiciário com repercussão geral ou sob a sistemática do recurso repetitivo possa ser decidido de forma diversa no processo administrativo tributário, afinal, encerrado essa etapa, pode o contribuinte vencido postular no Poder Judiciário, âmbito no qual o precedente deverá ser obrigatoriamente aplicado.

Sob o primado constitucional da duração razoável do processo, a não aplicação do precedente apenas traz como resultado a postergação da solução do conflito para a jurisdição judicial.

Mas não é sob esse enfoque apenas que se deve considerar valiosa a vinculação do processo administrativo aos julgamentos vinculantes do Poder Judiciário.

Há que se considerar também os custos da rediscussão judicial, sejam os operacionais de tramitação de um processo fadado ao insucesso, ou dos honorários sucumbenciais e das despesas processuais, atentando contra o princípio da eficiência e, em última análise, contra o interesse público.

Se no âmbito federal houve a adesão ao sistema de precedentes vinculantes, o mesmo não se pode afirmar do que se dá no âmbito do Tribunal de Impostos e Taxas, vinculado à Secretaria de Estado da Fazenda de São Paulo, o qual exerce a jurisdição administrativa tributária em relação aos tributos de competência do estado de São Paulo.

A Lei Estadual Paulista nº 13.457/2009 que rege o contencioso administrativo tributário não contém disposição determinando a aplicação, no seu âmbito de jurisdição, dos precedentes firmados sob o rito de julgamentos pela sistemática de repercussão geral e recurso repetitivo.

Dispõe apenas, em seu artigo 28 [1], que no julgamento é vedado afastar a aplicação de lei sob alegação de inconstitucionalidade, ressalvadas as hipóteses em que a inconstitucionalidade tenha sido proclamada em ação direta de inconstitucionalidade, por decisão definitiva do STF objeto de resolução do Senado para atribuição de efeito erga omnes a tal pronunciamento, ou ainda, em enunciado de Súmula Vinculante.

Desditosamente, esse dispositivo vem sendo utilizado em determinadas decisões do TIT de São Paulo para não aplicar precedentes firmados pelo STF e pelo STJ, sob o entendimento de que não pode o Tribunal deixar de aplicar a legislação sob alegação de inconstitucionalidade.

Contudo, ousamos discordar desta posição, pois, entendemos que a redação do artigo 28 da Lei Estadual em análise não foi criada para esta finalidade. A jurisdição administrativa tributária é instância cuja função é o controle de legalidade do ato administrativo, e em assim sendo, deve estar vinculada à norma jurídica tal como definida em julgados do Poder Judiciário que ostentem força vinculante.

Aplicar precedente firmado em recurso repetitivo e repercussão geral também é exercer controle de legalidade do ato administrativo.

A ausência de previsão no processo administrativo tributário paulista de regra da vinculação ao sistema de precedentes da jurisdição judicial não obsta o dever institucional dos julgadores de observá-los diante do que dispõe o artigo 15 do Código de Processo Civil: na ausência de normas que regulem processos administrativos, as disposições do Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

Corrobora essa assertiva a premissa de que o contencioso administrativo tributário é tema que se situa no âmbito do direito tributário e, por isso, sujeito à competência legislativa concorrente prevista no artigo 24, inciso, I e parágrafos da Constituição [2], competência esta em que as leis federais se sobrepõem às leis estaduais sobre o mesmo tema.

Considerando esta premissa, e o fato de que a União legislou por meio do Código de Processo Civil a aplicação supletiva e subsidiária de suas disposições ao contencioso administrativo, então, pode-se concluir pela impossibilidade de num processo administrativo deixar de ser aplicado precedente firmado em sede de julgamento de recurso repetitivo ou com repercussão geral.

______________________________________

[1] Artigo 28 – No julgamento é vedado afastar a aplicação de lei sob alegação de inconstitucionalidade, ressalvadas as hipóteses em que a inconstitucionalidade tenha sido proclamada:
I – em ação direta de inconstitucionalidade;
II – por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, em via incidental, desde que o Senado Federal tenha suspendido a execução do ato normativo.
III – em enunciado de Súmula Vinculante;

[2] Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
(…)

1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.

Thiago Boscoli Ferreira

Advogado, mestrando em Direito Tributário pelo Ibet. Especialista em Direito Tributário pelo Ibet. Juiz do TIT (Tribunal de Impostos e Taxas) de São Paulo.

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