PIS/Cofins sobre o hold back no mercado de automóveis

Carlos Augusto Daniel Neto

os quase três anos escrevendo para esta coluna sobre a jurisprudência do Carf, sempre me surpreendeu a capacidade de algumas questões técnicas ficarem entrincheiradas no meio de lançamentos ou glosas de créditos mais amplos, sem que sejam detalhadas eventuais diferenças entre figuras distintas, as quais acabam sendo tratadas de maneira análoga (ou, como dizem, “caem na vala comum”).

No último dia 28, ocorreu uma interessante mesa de debates para discutir o conceito jurídico de receita, promovido pela Associação Paulista de Estudos Tributários (Apet)[1], com intermediação do seu presidente e com a participação de grandes especialistas no tema. Mais precisamente, foi discutida a natureza jurídica de “bonificações de concessionárias de veículos” e se elas seriam redutoras de custo ou receitas tributáveis pelo PIS/Cofins.

De acordo com a Lei 10.485/2002, a tributação de veículos automotores está sujeita ao regime monofásico de PIS/Cofins, com uma alíquota mais alta saída do fabricante ao concessionário, e alíquota zero na venda ao consumidor, concentrando-se economicamente a carga tributária em uma única etapa da operação. Essas contribuições incidem sobre a receita bruta, definida pelo STF, ao julgar o RE 606.107, como “o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo, sem reservas ou condições”.

Nas práticas mercantis entre as fabricantes e concessionárias são firmados diversos ajustes, em comum acordo, que implicam o pagamento de valores[2]. Dentre esses montantes pagos, sempre após a aquisição dos veículos pelas concessionárias, três grupos se destacam: i) pagamentos como prêmio por performance de vendas; ii) pagamentos destinados ao emprego em publicidade, propaganda e demais estratégias publicitárias; e iii) pagamentos destinados a auxiliar as operações da rede e sustentar a competitividade dos preços praticados pela marca.

O cerne da discussão jurídica que se desenvolveu no âmbito do Carf gira em torno do enquadramento dos valores referidos supra como hipótese de exclusão da base de cálculo do PIS/Cofins (especificamente, como descontos incondicionais concedidos).

Adianto, até mesmo para que nos dirijamos ao recorte do artigo, que quanto aos pagamentos decorrentes de prêmios pela performance, isto é, condicionado ao atingimento de metas de vendas, ou pela intermediação de contratos de financiamento de veículos (pagos pelas instituições financeiras), não vejo como desvinculá-los da hipótese de incidência das contribuições, por agregarem todas as características de receita mencionadas acima e nos termos do entendimento vaticinado pelo STF. Quanto aos pagamentos destinados às estratégias publicitárias e de marketing, há duas possibilidades, a depender do caso concreto: ou a concessionária age como um simples mandatário do fabricante, contratando por sua conta e ordem, e os valores recebidos serão receita de terceiros (mero ingresso), ou será uma receita da concessionária, em havendo prestação do serviço de divulgação da marca da fabricante (com a consequência de atrair a incidência normal de PIS/Cofins não cumulativos, inclusive com apuração de créditos sobre os insumos desse serviço).

Parece-nos interessante, entretanto, o terceiro montante, denominado de verbas de hold back pagas (ou será “devolvidas”?) pelas montadoras às concessionárias.

O hold back, definem Pimenta e Cruz, é um valor agregado ao custo do veículo faturado, cujo montante é dirigido para um fundo de aplicação administrado pela montadora (normalmente controlado por meio de contas correntes individuais para cada concessionária) e posteriormente devolvido às empresas concessionárias, usualmente acompanhado dos juros que remuneram esse capital[3], após a venda do veículo. Ele não se confunde, por exemplo, com o bônus pago para compensar eventuais descontos que foram necessários no preço final de venda ao consumidor, como forma de viabilizar a operação.

É, em suma, um sobrevalor pago no momento da aquisição do veículo, inclusive indicado de forma destacada, que compõe uma espécie de fundo e é objeto de aplicação financeira, sendo posteriormente devolvido à concessionária. A sua lógica original se relacionava à seguinte situação: na compra dos veículos na montadora, é destacado e incluído no preço esse hold back, que após a venda ou após determinado prazo é devolvido ao concessionário, como uma maneira de compensar os juros suportados na manutenção do seu inventário de veículos, tendo como efeito econômico uma redução no custo do produto para o concessionário, ampliando sua margem de lucro e negociação[4]. Em regra, o direito de a concessionária reaver o montante de hold back subsiste até que ocorra determinado termo, que faz perecer esse direito, tornando definitivo o valor nos cofres da montadora.

Pois bem, dos casos analisados no CARF, apenas um parece ter caracterizado com precisão a figura do hold back. O Acórdão nº 3802-00.494[5] foi acertado em distinguir a figura contratual de um bônus, pois o valor retido não pertence ao fabricante, mas ao concessionário, que tem direito subjetivo de exigir a restituição, acrescida de juros. Não haveria, nesse sentido, qualquer pagamento, mas sim devolução dos valores do hold back, havendo a incidência de PIS/Cofins apenas sobre a receita financeira da remuneração desse capital retido.

Em alguns casos, discute-se a forma como o hold back foi contabilizado pelas empresas. Não iremos entrar nesse ponto, todavia, por uma razão bastante simples: a contabilidade deve refletir a substância dos atos realizados, e não o contrário, tanto que a própria legislação dessas contribuições estabelece a incidência deles sobre as receitas “independentemente de sua denominação ou classificação contábil”, evidenciando uma preponderância do conteúdo jurídico e econômico sobre a forma como foi registrado contabilmente.

Analisando os demais precedentes sobre o caso, parece, em nossa opinião, que há alguma obscuridade na distinção entre a “lógica econômica” do hold back, de redutor de custo, e a sua “configuração jurídica”.

Em razão do seu caráter econômico de redutor de custo, a jurisprudência passou a orbitar sobre a sua qualificação como uma espécie de desconto incondicionado ou bonificação, que teria o efeito de reduzir o custo da transação, afetando a base de cálculo das contribuições sociais em análise.

Nesse sentido, o Acórdão nº 3403-002.521[6] aduz que o preço pago pelos veículos à montadora não é alterado. O valor de aquisição é o valor pago à montadora e é este valor que é contabilizado como custo da mercadoria vendida. Desse modo, o valor seria retido na aquisição do veículo, e seria pago à concessionária como uma bonificação, não seria redutor de custo, mas uma receita nova.

Na mesma linha, os Acórdãos nº 3301-002.738[7] e 3301-004.810[8] entenderam que o valor do hold back seria um desconto sobre o preço pago pela concessionária na compra do veículo, um desconto concedido a posteriori, após a efetivação da venda e do recebimento de seu preço, rechaçando assim a possibilidade do seu enquadramento como bonificação redutora de custo do veículo adquirido da montadora. Percebe-se nos acórdãos que a verba de hold back é tratada como um bônus concedido posteriormente à concessionária. Nos Acórdãos nº 1201-001.425[9], 3301-003.438[10] e 3302-005.691[11], discutiu-se novamente se o hold back creditado pelas montadoras de veículos às suas respectivas concessionárias teria a natureza de desconto incondicional, confrontando essa verba com a regulamentação da IN nº 51/1978 sobre o tema, que estabelece que “descontos incondicionais são parcelas redutoras do preço de vendas, quando constarem da nota fiscal de venda dos bens ou da fatura de serviços e não dependerem de evento posterior à emissão desses documentos.”.

Por fim, no julgamento pela 3ª CSRF (Acórdão nº 9303-007.848[12]), o voto vencido aborda a questão do hold back configurar uma devolução, e não um pagamento, sem esclarecer, entretanto, que o efeito “redutor de custo” é eminentemente econômico. O voto vencedor, não obstante reconheça que o programa visava devolver um valor que fora pago pela concessionária, entendeu que esse importe não seria uma restituição, mas um bônus de adimplência, devendo ser tributado como receita nova.

Ao analisar a figura jurídica em comento, não nos parece adequado, com todas as vênias, discutir se ele configura ou não um desconto ou bonificação incondicional, dada pela montadora. Rigorosamente, ao adquirir o veículo, a concessionária paga duas coisas diferentes, destacadamente, quais sejam, o valor do bem adquirido e o hold back, sendo que este último obrigatoriamente será devolvido posteriormente, salvo o implemento de condição ou termo, remunerado por juros. Ora, caso se tratasse do pagamento de um bônus, que sentido se faria remunerar esse capital ao devolvê-lo ao concessionário?

Em se tratando de um valor entregue pela concessionária à montadora para posterior devolução, dentro de um determinado prazo, a problemática se coloca em uma etapa anterior à discussão de haver ou não um desconto incondicional, ou mesmo se esse valor já fora tributado na concessionária. A questão aqui é se há, efetivamente, receita auferida nessas duas operações.

Nesse sentido, considerando a premissa de que a devolução do hold back deverá ocorrer, sendo um direito subjetivo da concessionária (ainda que sujeita à perda desse direito pelo implemento de condição ou termo), não há como se reconhecer receita na fabricante, por carecer do atributo de definitividade do ingresso (a entrada sem reservas ou condições), e tampouco na concessionária, na devolução, por não se tratar de elemento novo e positivo. Caso o hold back estipule alguma cláusula na qual a concessionária perca o direito à restituição, por exemplo, pelo transcurso de X dias após a aquisição do veículo, há que se reconhecer que apenas nesse momento, com o implemento dessa condição que faz decair o direito à restituição dos valores, é que nascerá uma receita para a montadora, e uma perda para a concessionária.

De um modo ou de outro, parece-nos que o hold back é um valor que passa ao largo do real custo de aquisição do veículo pela concessionária, independente da sua inclusão ou não no valor da nota fiscal, mas desde que previsto contratualmente e mantido o seu controle segregado. É, em rigor, a entrega de valores para restituição futura, sujeito a eventual condição decadencial desse direito do concessionário: em se implementando a condição, tratar-se-ia de reconhecer uma receita na montadora, nesse momento. Por outro lado, quando da devolução desses valores à concessionária, não há que se falar, como afirmado acima, em receita nem para a montadora, quando houve o ingresso dos valores, nem para a concessionária, quando houve o seu retorno.

Essa conclusão tem impacto sobre um dos argumentos mais invocados nesses casos, de que esses valores não poderiam ser tributados no recebimento pela concessionária, porque já teriam sido tributados pelo PIS/Cofins monofásico pela fabricante. Na verdade, na esteira do que argumentamos, em regra esse valor sequer poderia ser incluído na base de cálculo desses tributos pagos pela montadora, não compondo o custo do veículo, no momento da aquisição do veículo pela concessionária. Posteriormente, caso implementada alguma condição que implicasse a perda do direito à restituição desses valores, o seu reconhecimento contábil, pela montadora, deveria se dar a título de receita, e tributado conforme.

Naturalmente, as conclusões acima pressupõem que o hold back seja estabelecido na forma típica que ele possui, e com a estrutura com a qual ele se disseminou nesse setor, no âmbito nacional e internacional, como foi anteriormente explanado. Chamar de “hold back” um bônus (ou outro tipo de receita financeira paga pela montadora) não tem o condão de magicamente transmutá-lo em outra coisa. Como advertira Montaigne, “il y a le nom et la chose” – o exame concreto dos termos contratuais é essencial à identificação da figura jurídica presente.

Portanto, revisitando os precedentes do CARF sobre o tema, verifica-se a necessidade de que esses casos, e outros análogos, sejam minuciosamente analisados, para que se depure o que é bônus, independente do fundamento, do que é o hold back. A análise dos principais argumentos enfrentados nos acórdãos, quais sejam, de se tratar de um desconto incondicional ou de que os valores já teriam sido tributados pelo PIS/Cofins monofásico, evidenciam um atropelo de questão anterior, que nos parece fulcral: a sua não caracterização como receita da montadora, enquanto carente de definitividade do ingresso, e a não caracterização de receita da concessionária, quando da sua devolução.

Trata-se de um tema complexo, que evidencia a complexidade dos arranjos contratuais construídos setorialmente, e a necessidade de uma compreensão profunda dos aspectos técnicos, para na definição da incidência tributária, separar o joio do trigo.

[1] A íntegra está disponível nesse link: https://www.youtube.com/watch?v=C_YNoDbhby8&t=4506s

[2] Há uma exposição bastante elucidativa, conquanto não concordemos com tudo lá exposto, feita pela Receita Federal em uma reunião com o setor, disponível em https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/conformidade-coletiva/setor-automotivo/rct-reuniao-de-conformidade-tributaria-13-05-2021.mp4

[3]PIMENTA, Luiz José; CRUZ, Rossine. A Crise Da Rede De Concessionárias De Automóveis No Brasil. Disponível em: http://www.luizjosepimenta.com.br/files/artigos/Artigo%20- %20A%20CRISE%20DA%20REDE%20DE%20CONCESSIONARIAS.pdf

[4] https://www.findthebestcarprice.com/what-is-dealer-holdback/

[5] Julgado em 01/06/2011.

[6] Julgado em 22/10/2010.

[7] Julgado em 25/01/2016.

[8] Julgado em 24/07/2018.

[9] Julgado em 03/05/2016.

[10] Julgado em 25/04/2017.

[11] Julgado em 26/07/2018.

[12] Julgado em 22/01/2019.

Fonte Conjur

Carlos Augusto Daniel Neto

Sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor em cursos de pós-graduação.

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