O princípio da proporcionalidade e seus fundamentos tributários
Tiago Anildo Pereira
Apesar de não estar expressamente previsto na Constituição de 1988, o princípio da proporcionalidade é amplamente aceito pela doutrina e jurisprudência brasileira.
A Fazenda Pública, principalmente na seara da tributação, não pode atuar desproporcionalmente.
Cabe registrar, em sede doutrinária, o ensinamento de Luís Roberto Barroso:
“A doutrina — tanto lusitana quanto brasileira — que se abebera no conhecimento jurídico produzido na Alemanha reproduz e endossa essa tríplice caracterização do princípio da proporcionalidade, como é mais comumente referido pelos autores alemães. Assim é que dele se extraem os requisitos (a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e (c) da proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos dos cidadãos. Na feliz síntese de Willis Santiago Guerra Filho: ‘Resumidamente, pode-se dizer que uma medida é adequada, se atinge o fim almejado, exigível, por causar o menor prejuízo possível e finalmente, proporcional em sentido estrito, se as vantagens que trará superarem as desvantagens’.” [1].
A aplicação do princípio da proporcionalidade, como invocado pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, deriva de sua aplicação como critério para exame de restrições impostas aos direitos fundamentais e para a solução pela ponderação quando ocorrerem colisões entre direitos fundamentais [2].
O princípio da proporcionalidade, assim, está direcionado a inibir e neutralizar os abusos do poder público no exercício de suas funções.
Presente o contexto do princípio da proporcionalidade, o Supremo Tribunal Federal tem rechaçado meios coercitivos indiretos de cobrança que se qualifiquem como “sanções políticas”, ou seja, formas “enviesadas de constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário” [3], impedindo, cerceando ou dificultando a atividade econômica desenvolvida pelo devedor tributário.
No julgamento do RE 666.405, DJe 27/8/2012, o relator ministro Celso de Mello esclarece que:
“(…) a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos por este editados.”
As sanções políticas vêm sendo rechaçadas pela pacífica jurisprudência do STF, contando com as já consagradas Súmulas nº 70 , 323 e 547:
Súmula 70/STF – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula 323/STF – É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos [4].
Súmula 547/STF – Não é lícito a autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
Os tributos em atraso devem ser cobrados pelos meios judiciais (execução fiscal) ou extrajudiciais (protesto de CDA, inscrição no Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público) legalmente previstos.
No julgamento do Recurso Extraordinário 565.048 (Tema 31), o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a tese de que:
“É inconstitucional o uso de meio indireto coercitivo para pagamento de tributo – “sanção política” –, tal qual ocorre com a exigência, pela Administração Tributária, de fiança, garantia real ou fidejussória como condição para impressão de notas fiscais de contribuintes com débitos tributários.” [5]
Nesse contexto, demonstra-se ilegal o ato que condiciona a expedição de documentos fiscais, o deferimento de alteração contratual ou autorização de abertura de filial, ao prévio pagamento de tributos, pela Administração Fazendária, haja vista que tal exigência possui caráter coercitivo e afronta o artigo 170, parágrafo único da Constituição Federal de 1988 [6], sendo, inclusive, passível de responsabilidade civil em caso de dano, ressalvadas as hipóteses autorizadas em lei.
Surge inviável, ainda, que o Fisco, no interesse do recebimento do crédito público, tenha a prerrogativa de bloquear unilateralmente bens do contribuinte em débito, sem autorização judicial, por violação aos princípios da proporcionalidade, contraditório e ampla defesa. A Constituição estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (artigo 5º, inciso LIV).
Nesse sentido:
“Inconstitucionalidade material da indisponibilidade de bens do devedor na via administrativa. A indisponibilidade tem por objetivo impedir a dilapidação patrimonial pelo devedor. Todavia, tal como prevista, não passa no teste de proporcionalidade, pois há meios menos gravosos a direitos fundamentais do contribuinte que podem ser utilizados para atingir a mesma finalidade, como, por exemplo, o ajuizamento de cautelar fiscal. A indisponibilidade deve respeitar a reserva de jurisdição, o contraditório e a ampla defesa, por se tratar de forte intervenção no direito de propriedade” [7].
Impede assinalar que o STF assentou [8], também, o entendimento de que a multa de caráter punitivo não deve ultrapassar o valor da obrigação principal, sob pena de incidir em onerosidade excessiva e imprópria sobre o contribuinte.
Por outro lado, consoante tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral, “o protesto das Certidões de Dívida Ativa constitui mecanismo constitucional e legítimo, por não restringir de forma desproporcional quaisquer direitos fundamentais garantidos aos contribuintes e, assim, não constituir sanção política” [9].
Vale lembrar o artigo 195, §3º, da CF88, segundo o qual:
“§ 3º. A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios.”
De igual modo, dispõe a Lei nº 9.069/95:
“Art. 60. A concessão ou reconhecimento de qualquer incentivo ou benefício fiscal, relativos a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal fica condicionada à comprovação pelo contribuinte, pessoa física ou jurídica, da quitação de tributos e contribuições federais.”
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 55.769, o Supremo Tribunal decidiu:
“É inequívoco, contudo, que a orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal não serve de escusa ao deliberado e temerário desrespeito à legislação tributária. Não há que se falar em sanção política se as restrições à prática de atividade econômica objetivam combater estruturas empresariais que têm na inadimplência tributária sistemática e consciente sua maior vantagem concorrencial. Para ser tida como inconstitucional, a restrição ao exercício de atividade econômica deve ser desproporcional e não-razoável” [10].
Na mesma linha, o STJ no tema repetitivo 264 firmou a seguinte tese:
“A mera discussão judicial da dívida, sem garantia idônea ou suspensão da exigibilidade do crédito, nos termos do art. 151 do CTN, não obsta a inclusão do nome do devedor no CADIN” [11].
O Superior Tribunal de Justiça, acerca da matéria, firmou entendimento segundo o qual é válida a estipulação de regime especial de controle e fiscalização aos contribuintes reincidentes na prática de infrações tributárias. É imperioso, contudo, que a medida atenda à proporcionalidade e razoabilidade.
Quanto à atenção ao princípio da proporcionalidade, consignou o STF:
“O Estado não pode legislar abusivamente, eis que todas as normas emanadas do poder público – tratando-se, ou não, de matéria tributária – devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). O postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais” [12].
Na mesma linha, Humberto Ávila afirma que revelam-se desproporcionais as condutas estatais que impõem “obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público” [13].
[1] Interpretação e aplicação da Constituição. 7ª ed. Saraiva, 2009, p. 235.
[2] Extraído do voto da exma. ministra Cármen Lúcia, STF, na ADI 6031.
[3] STF, ADI 173, rel. min. Joaquim Barbosa, DJe 20/3/2009.
[4] Se a mercadoria estiver sendo transportada sem nota fiscal, é possível apreender.
[5] Tese definida no RE 565.048, rel. min. Marco Aurélio, P, j. 29-5-2014, DJE 197 de 9-10-2014, Tema 31.
[6] Art. 170, parágrafo único. “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”
[7] ADI 5.886, redator(a) do acórdão: min. ROBERTO BARROSO, Julgamento: 9/12/2020.
[8] STF. ARE 1.122.922 AgR, relator(a): min. RICARDO LEWANDOWSKI, 2ª Turma, julgado em 13/9/2019.
[9] Tese definida na ADI 5.135, rel. min. Roberto Barroso, P, j. 9-11-2016, DJE 22 de 7-2-2018.
[10] RE 550.769, rel. min. Joaquim Barbosa, P, j. 22-5-2013, DJE 66 de 3-4-2014.
[11] REsp nº 1.137.497/CE, rel. min. Luiz Fux, em 14/4/2010, DJe de. 27/4/2010.
[12] RE 200.844 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 25-6-2002, 2ª T, DJ de 16-8-2002.
[13] Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 17ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 215.
Tiago Anildo Pereira
professor de Direito Tributário (Supremo Concursos e Fadipa) e procurador do estado de Minas Gerais.