Limites da imunidade do ITBI nos casos de sociedades com atividades imobiliárias

Heleno Taveira Torres

Operações societárias com a aquisição total de patrimônios, ou seja, de universalidades, não limitadas à mera transferência de bens imóveis ou direitos reais específicos, por promover incremento real de patrimônios societários, amoldam-se à finalidade da imunidade tributária geral do artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF. O presente estudo visa demonstrar a vigência e a função normativa do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN, no regime das normas que incidem sobre transferências onerosas de bens imóveis ou de direitos reais sobre bens imóveis, excetuados os de garantia, para demarcar sua aplicação.

Bem examinadas as normas de competência, verifica-se que o texto da Constituição de 1988 reservou para os municípios a competência do imposto sobre transmissão “inter vivos”, retirando-o da competência estadual do artigo 9º da EC 18/1965, dantes aplicável a qualquer transmissão, sem distinguir entre “inter vivos” ou “causa mortis”, o que foi continuado pelo artigo 24, I, da Constituição de 1967 e pelo artigo 23, I, da Emenda Constitucional 1, de 17/10/1969.

De outra banda, tem-se também as normas de limitações constitucionais ao poder de tributar (imunidade), como previsto no artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF, que assim prescreve:

“§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.

Para dar concretude ao disposto na regra imunitária acima, em quaisquer das ordens constitucionais, o artigo 37 do CTN, na função de lei complementar (como recepcionado pelo parágrafo 1º do artigo 18 da Constituição de 1967, juntamente com os demais conteúdos típicos de “normas gerais”), estabelece os critérios que devem ser atendidos para definir a noção de “atividade preponderante” (como definida em lei complementar) para realização de “venda ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição”[1].

Desse modo, o parágrafo 4º do artigo 37 do CTN apresenta-se com típica função de regra especificadora da competência material ao declarar a não incidência sobre bens do patrimônio alienado como “universalidade”, nos limites da noção de “atividade preponderante”, excludente da imunidade, a saber:

“Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição. (…)

§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante”.

Como se pode concluir da simples leitura do texto, o referido parágrafo 4º do artigo 37 do CTN vai além da regra constitucional de imunidade, igualmente contemplada no artigo 36 do CTN, ao ter papel de regra especificadora do campo de não incidência da competência, quando diante de transmissão de bens ou direitos realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.

Portanto, ao tempo em que o parágrafo 4º, do artigo 37 do CTN trata de assunção de patrimônio com universalidade de bens, deveras, sobressai o reconhecimento induvidoso da função de norma declaratória da “não incidência” no caso de transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante. Com isso, sempre será imprescindível a presença do parágrafo 4º no artigo 37 do CTN para destacar que a tributação dos casos de atividade preponderante, como definida em lei complementar, não alcança a aquisição de universalidades de patrimônio.

Diante da ausência de norma excludente de incidência do ITBI sobre universalidades na legislação local, constrói-se duplo questionamento, a saber se: i) o texto do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN seria norma de “isenção heterônoma”, vedada pelo artigo 151, III, da CF, o qual não vincula o Distrito Federal; ou ii) se o regime do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN foi recepcionado pela Constituição de 1988, mesmo pelas anteriores, por ser mais abrangente do que a “imunidade” ora prevista no parágrafo 2º, I, do artigo 156 da CF.

A competência do ITBI somente autoriza a tributação de bens ou direitos identificados de modo individualizado. Não incide sobre universalidades de bens, como ocorre com o ITCMD ou com o Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ).

Por força dos princípios de hierarquia do ordenamento e da segurança jurídica, a ausência de inclusão de regra veiculada pelo CTN nas leis ordinárias locais, deveras, não retira a eficácia de autoaplicabilidade da lei complementar exigida pelo artigo 146, II e III, “a” da CF, na definição do fato gerador do imposto. Vigente que está o parágrafo 4º do artigo 37 do CTN, na condição de norma geral de legislação tributária, impõe-se o dever de obediência do legislador ordinário, assim como da administração fazendária municipal ou distrital, ao seu conteúdo, independentemente de “incorporação” ao direito municipal.

Desse modo, temos bem definidos os requisitos de parametricidade da competência do artigo 156, II, da CF, relativamente ao ITBI, sobre o tema em análise.

Primus. O conceito de transmissão de titularidade de bens imóveis ou direitos sobre bens imóveis (exceto os de garantia), materialidade constitucional possível do ITBI (artigo 156, II e parágrafo 2º da CF), deve obedecer ao regime típico do Direito Privado. Assim, os conceitos, tipos e formas do Direito Privado devem ser preservados segundo seus significados de base, nos termos do artigo 110 do CTN.

Assim, numa interpretação conforme a Constituição, o conteúdo de norma geral em matéria de legislação tributária, nos termos do artigo 146, II e III, alínea “a” da CF, deve seguir máxima identidade com os conceitos de direito privado utilizados expressa ou implicitamente na designação da competência ou para definir limitações ao poder de tributar, como as imunidades.

Secundus. O Constituinte de 1988 atribuiu aos municípios, no artigo 156, II, da CF, a competência para tributar operações de transmissão com bens imóveis e direitos reais (exceto os de garantia), previamente especificados. Não se autorizou aos municípios a tributação de patrimônios, como universalidades.

Logo, o ITBI não alcança qualquer transmissão genérica ou universal de bens ou direitos. Somente aqueles expressamente individualizados, vedadas equiparações, por analogias. Ou seja, unicamente a “transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física” (i), ao lado dos “direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição” (ii), devidamente individualizados. Essa medida é relevante, pois do contrário poder-se-ia abranger até mesmo bens de alheia competência, como automóveis, objeto de incidência do IPVA (artigo 155, III).

Tertius. As normas gerais de legislação tributária, como todas aquelas do CTN, podem demarcar os conceitos de Direito Privado para afastar conflitos de competências (i) e regular as limitações ao poder de tributar (ii), conforme prescrevem os incisos I e II do artigo 146 da Constituição. Pois bem, este é exatamente o papel do artigo 37 do CTN, ao dispor sobre a “atividade preponderante do adquirente”. Ainda que o artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF não traga a exigência de previsão em lei complementar, a existência deste artigo do CTN, fiel às funcionalidades do artigo 146 da CF, atende ao requisito da sua caracterização quanto às especificações da imunidade, como medida para regular limitações ao poder de tributar e evitar eventuais conflitos de competência.

Quartus. Na aplicação do ITBI, quando a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos (a), locação de bens imóveis (b) ou arrendamento mercantil (c), tem cabimento tributar a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital (iii) e a transmissão de bens ou direitos mediante fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica (iv)[2].

Para a norma imunitária do artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF, típica limitação da competência, as situações excepcionais de tributação dos bens transmitidos — no caso de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica — dependem da prova de atividade preponderante do adquirente e só admitem equiparação com aquilo que mantenha plena identidade com as hipóteses ali definidas.

Quintus. Só podem ser tributadas pelos Municípios as hipóteses admitidas na regra do parágrafo 2º, I, do artigo 156 da CF, ou seja, o ITBI só poderá incidir na transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, quando a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

No caso de incorporação de patrimônio de terceiros, com bens imóveis inclusos na universalidade, das duas, uma: (I) ou bem esta situação equivale a hipótese alheia à competência do ITBI, conforme o artigo 156, II, da CF (campo de não incidência), como especifica a regra do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN; ou bem (II) restará equiparada à “incorporação” da competência excepcional da imunidade do artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF, quando ausente a atividade preponderante do adquirente.

A transferência da titularidade dos bens imóveis, para fins do ITBI, será aquela jurídica, não bastando a mera alteração da posse destes imóveis. E isto em função do princípio de individualização dos bens imóveis ou direitos sobre bens imóveis que vierem a ser transmitidos, para que se autorize a cobrança do ITBI.

Em suma, o âmbito de incidência do ITBI alcança somente a transmissão de titularidade de propriedade imobiliária objetivamente especificada, mediante o ato de registro, com valor definido pelo respectivo bem ou direito. Destarte, resta no âmbito da “não incidência” a transmissão de bens ou direitos quando realizada em conjunto com a totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.

A sutileza hermenêutica da compreensão do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN como regra especificadora de “não incidência” requer cautelas técnicas. Não equivale a norma que afasta algum conteúdo do âmbito material da competência. Se assim atuasse, deveras, ter-se-ia caso de norma de isenção, na qualificada teoria de José Souto Maior Borges, que a define como “hipótese de não incidência legalmente qualificada”[3].

Entretanto, o parágrafo 4º do artigo 37 do CTN especifica típico campo de não incidência, porquanto a materialidade da competência do artigo 156, II e parágrafo 2º da CF recai sobre bens imóveis ou direitos reais sobre bens imóveis individualizados.

Na sua função especificadora, o teor do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN não assume a condição de norma de “isenção tributária”, e tanto menos a de “isenção heterônoma”, ao tempo que explicita matéria do campo de “não incidência” do ITBI, confirmando a delimitação de competência do artigo 156, II, da CF.

A norma do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN não se interpõe, como sugere parcela da doutrina, como norma restritiva da “imunidade” do artigo 9º da EC 18/1965 (original) ou do artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF/1988. E isso porque imunidade prescreve impedimento de tributar os fatos integrantes das hipóteses de “incidência”. Tampouco assume a condição de “isenção heterônoma”, por igual motivo.

O parágrafo 4º do artigo 37 do CTN é norma especificadora das competências atribuídas aos municípios e ao Distrito Federal, ao designar conteúdo do seu âmbito de não incidência, que não pode alcançar, sob a égide da Constituição de 1988, bens imóveis e direitos reais sobre bens imóveis enquanto “patrimônio”, a serem objeto de transmissão universal, realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante, dado que a norma do artigo 156, II, da CF reduz-se a bens imóveis determinados, objetos específicos, ou direitos reais sobre estes bens imóveis (exceto os de garantia).

Destarte, o parágrafo 4º do artigo 37 do CTN não é equivalente de mera regulamentação da “imunidade” do artigo 9º, parágrafo 2º, da EC 18/1965. Tanto é assim que o disposto no artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF, adota maior abrangência de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, ao afastar da tributação do ITBI:

a “transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital” (exige bens especificados);
a “transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica” (exige bens especificados).
Numa síntese, a norma do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN tem contornos típicos, a saber:

é regra especificadora da não incidência do ITBI sobre operações com transmissão de bens ou direitos realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante, na medida que o artigo 156, II e parágrafo 2º, I, da CF, somente abrange a tributação da transmissão de titularidade, a título singular, envolvendo bens imóveis e direitos reais sobre bens imóveis determinados objetivamente, isto é, especificados;
não integra a norma de imunidade prevista no artigo 9º da EC 18/1965, no artigo 24, I, da CF/1967, no artigo 23, I, da EC 1/1969, ou no artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF/1988, porque não se trata de hipótese de incidência alcançada pelas regras de competência, ou pelas regras dos artigos 36 e 37 do CTN;
não se confunde com isenção heterônoma porque cuida de materialidade do campo material de não incidência do ITBI;
foi recepcionada pela Constituição de 1988, que apenas alterou a regra de atribuição de competência dos estados para os municípios;
sempre esteve em plena conformidade com as regras de competência e respectivas normas de imunidade do artigo 9º da EC 18/1965, do artigo 24, I, da CF/1967 ou do artigo 23, I, da EC 1/1969;
exclui a eficácia do critério de “atividade preponderante” do disposto nos parágrafos 1º a 3º do artigo 37 do CTN, no que diz respeito à delimitação da imunidade do artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF, quando se trata de incorporação de bens em conjunto com a totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante, isto é, promovida a título universal;
atende às exigências materiais da reserva de lei complementar do artigo 146, II e III, alínea “a”, da CF.
Com isso, tem-se que o programa normativo do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN apenas reconhece a não incidência da alienação do patrimônio, objeto inconfundível com bem imóvel determinado ou direitos reais sobre este bem imóvel. E como somente os dois últimos conceitos de direito privado foram contemplados no artigo 156, II, da CF, a disposição do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN apresenta-se como comando infraconstitucional que demarca o espaço de não incidência tributária. Logo, em nada este regime de não incidência vê-se em conflito com a imunidade do aludido artigo 156, parágrafo 2º, I, da CF.

[1] Hugo de Brito Machado também considera recepcionada a norma do parágrafo 4º do artigo 37 do CTN recepcionada. Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: Atlas, v. I, 2003, p. 404.
[2] Essa oposição mereceu destaque na doutrina de Arnoldo Wald. Cf. WALD, Arnoldo. ITBI – SISA – Imposto de transmissão – Não incidência do imposto sobre transmissão de bens imóveis na operação e “Sale-Sale Back” (venda à vista com revenda a prazo). São Paulo, Revista de Direito Tributário, ano VIII, jul./dez., n. 29-30, 1984, p. 105.
[3] Como diz José Souto Maior Borges: “O poder de isentar apresenta certa simetria com o poder de tributar. Tal circunstância fornece a explicação do fato de que praticamente todos os problemas que convergem para a área do tributo podem ser estudados sob o ângulo oposto: o da isenção. Assim como existem limitações constitucionais ao poder de tributar, há limites que não podem ser transpostos pelo poder de isentar, porquanto ambos não passam de verso e reverso da mesma medalha” (BORGES, José Souto Maior. Isenções tributárias. 3ª. ed. SP: Malheiros, 2007, p. 6). Fonte: conjur

Heleno Taveira Torres

Professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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