Incidência da contribuição previdenciária na distribuição antecipada de lucros

Alexandre Evaristo Pinto

Nesta semana, trataremos dos precedentes do Carf acerca da contribuição previdenciária sobre lucros distribuídos antecipadamente aos sócios ou acionistas, isto é, a questões tributárias controversas de contribuição previdenciária relativas aos lucros distribuídos antes do encerramento do ano-calendário.

Como regra geral, a distribuição de lucros ou dividendos configura uma forma de remuneração do capital investido, não tendo ligação com a existência ou não de uma relação de trabalho entre a sociedade e seu sócio.

Assim, a princípio, não haveria que se falar em incidência de contribuição previdenciária sobre valores distribuídos aos sócios a título de lucros.

Vale notar que a contribuição previdenciária patronal possui previsão legal específica no artigo 22 da Lei n. 8.212/91[2], que estabelece a incidência de contribuição de 20% sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho.

Como se observa, é fundamental que haja uma remuneração paga ou devida destinada a retribuir o trabalho.

Ocorre que a distribuição de lucros nada tem a ver com a remuneração do trabalho, mas sim com a remuneração do capital investido.

Todavia, alguns problemas começam a surgir quando a sociedade não possui saldos de lucros acumulados ou de lucro do exercício a serem distribuídos aos sócios.

Tal situação pode acontecer na hipótese em que uma sociedade começa a distribuir lucros do próprio exercício antes do encerramento deste mesmo exercício, ou seja, há uma distribuição antecipada dos lucros.

Considerando que a formação do lucro contábil se dá ao longo de todo ano, sempre haverá o risco de que um lucro contábil que existia de janeiro até a data de distribuição do lucro não exista mais naquela mesma quantidade ao final do ano (na pior das hipóteses, a sociedade pode até apurar um prejuízo contábil).

Eis que surge a situação controversa: diante da inexistência de lucro contábil igual ou superior ao que foi efetivamente distribuído de forma antecipada aos sócios, é possível qualificar os montantes distribuídos como se fossem remuneração paga pelo trabalho, passíveis de tributação pela contribuição previdenciária patronal.

O Decreto nº 3.048/99, que instituiu o Regulamento da Previdência Social, estabelece em seu artigo 201, §5º, II[3], que incide a contribuição previdenciária patronal sobre os valores totais pagos ou creditados aos sócios por sociedade civil de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissões legalmente regulamentadas, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a proveniente do capital social ou tratar-se de adiantamento de resultado ainda não apurado por meio de demonstração de resultado do exercício.

Como se observa, no caso específico de sociedade civil de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissões legalmente regulamentadas, o dispositivo infralegal acima mencionado possibilita a requalificação dos lucros distribuídos pela pessoa jurídica sem amparo contábil como remuneração pelo trabalho sobre a qual incidirá a contribuição previdenciária.

O referido dispositivo foi praticamente transcrito no artigo 57, §5º, da Instrução Normativa RFB n. 971/09[4], no entanto, houve a atualização de “sociedade civil de prestação de serviços profissionais” para “sociedade simples de prestação de serviços”, uma vez que a partir do Código Civil de 2002, foi instituída a sociedade simples, ao passo que foi extinto tipo societário de sociedade civil.

O artigo 57 da Instrução Normativa RFB nº 971/09 traz ainda o §6º[5], que estabelece que o valor a ser distribuído a título de antecipação de lucro poderá ser previamente apurado mediante a elaboração de balancetes contábeis mensais, devendo, nessa hipótese, ser observado que, se a demonstração de resultado final do exercício evidenciar uma apuração de lucro inferior ao montante distribuído, a diferença será considerada remuneração aos sócios.

Mais uma vez, nota-se que a própria norma infralegal aponta que na hipótese em que o resultado final do exercício for inferior ao montante distribuído, a diferença será qualificada como remuneração aos sócios e sobre ela incidirá contribuição previdenciária patronal.

O entendimento constante tanto no Regulamento da Previdência Social quanto na Instrução Normativa RFB nº 971/09 já foi reafirmado pela Administração Tributária por meio das Soluções de Consulta nº 46/2010 e 76/2010, sendo que a última se referia explicitamente a uma sociedade empresária.

Feitas as observações gerais sobre o tema, verificaremos os precedentes do Carf que tratam do assunto.

No Acórdão 2402-003.821 (de 19/11/13)[6], a turma decidiu por unanimidade pelo provimento do recurso voluntário de sociedade simples de advogados.

No voto, o relator apontou que no caso em tela havia discriminação entre a remuneração do trabalho e a remuneração do capital, no entanto, a fiscalização indiciou que haveria uma característica de remuneração do trabalho nos valores distribuídos, uma vez que eles não guardavam correspondência com a proporção de quotas de cada sócio.

Assim, o relator manifestou o entendimento de que esse indício de falta de proporcionalidade é insuficiente para afastar a autonomia da vontade da sociedade nos limites conferidos pela lei, uma vez que inexiste “norma proibitiva de uma desproporção eleita pelos sócios entre a remuneração do trabalho a título de pro-labore e a remuneração do capital a título de lucros distribuídos”.

Diz ainda o relator que o capital investido em uma sociedade simples costuma ser baixo, de forma que é natural que os lucros apurados superem mensalmente o valor do capital social, sendo que “não há nada que desabone seu funcionamento a opção de remunerar sócios a título de pro-labore com valores reduzidos”.

No Acórdão 2302-002.892 (de 21/11/13)[7], a turma decidiu de forma unânime pela manutenção do auto de infração de contribuição previdenciária lavrado contra uma sociedade limitada.

No voto, o relator indicou expressamente as normas infralegais supracitadas, bem como as Soluções de Consulta também referidas neste artigo. No caso em tela, o contribuinte era optante pelo Lucro Presumido e não possuía uma contabilidade devidamente escriturada, sendo que alegou inclusive não ter uma escrituração contábil mais completa em virtude do seu regime de imposto de renda.

O relator do voto apontou que no caso concreto há exigência específica da legislação previdenciária impondo que haja segregação dos valores pagos a título de remuneração do trabalho e de remuneração do capital, bem como há que se ter apuração do resultado do exercício para que haja qualificação dos montantes distribuídos como lucro antecipado.

Nesse sentido, constou no voto que: “a legislação previdenciária determina não somente a escrituração de livros fiscais, mas, igualmente, a elaboração de demonstrativos contábeis e balanços fiscais, documentos estes indispensáveis à apuração do lucro contábil”.

No Acórdão 2401-003.436 (de 18/03/14)[8], a turma julgou por unanimidade pela manutenção do auto de infração lavrado contra uma sociedade limitada.

No caso concreto, não havia qualquer comprovação na escrituração contábil acerca da existência de lucros, sendo que havia registro contábil tão somente dos valores pagos a título de pró-labore. A falta de uma escrituração contábil adequada acabou sendo o principal motivo para a manutenção do auto de infração.

No Acórdão 2201-004.102 (de 05/02/18)[9], a turma decidiu de forma unânime pela manutenção do auto de infração, no qual foi lançada contribuição previdenciária sobre o montante dos lucros distribuídos antecipadamente ao longo do ano aos sócios por uma sociedade limitada.

No caso em tela, a fiscalização constatou que a então recorrente não auferiu lucros no exercício em questão e tampouco possuía saldo de lucros acumulados, de modo que os pagamentos foram qualificados como pagamentos a título de remuneração dos sócios enquanto contribuintes individuais que recebiam pró-labore.

No voto, constou expressamente o entendimento de que haverá a incidência da contribuição previdenciária quando: (i) não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a proveniente do capital social; ou (ii) tratar-se de adiantamento de resultado ainda não apurado por meio de demonstração do resultado do exercício.

Além disso, constou no voto o entendimento de que o artigo 201, §5º do Regulamento da Previdência Social se aplica também às sociedades empresárias, não se limitando às sociedades civis de profissão regulamentada.

Por fim, a documentação contábil apresentada nos autos não foi suficiente para demonstrar a existência dos lucros da sociedade, havendo inclusive mês com prejuízo contábil em que houve distribuição de lucros.

Nos Acórdãos 2401-007.308 e 2401-007.309 (ambos de 15/01/20)[10], a parte relativa a requalificação dos lucros distribuídos antecipadamente para remuneração pelo trabalho foi mantida pelo voto de qualidade em caso envolvendo uma sociedade limitada.

No voto vencido, o relator expressamente se manifestou acerca da ilegalidade quanto à requalificação de lucros distribuídos para pró-labore com a consequente incidência da contribuição previdenciária.

Nessa linha, constou no voto vencido do conselheiro relator: “em relação às irregularidades dos registros contábeis e comerciais da empresa, alega que nenhuma delas pode subsistir, contudo, ainda que se admita a divergência de entendimento, não tem o condão de transformar lucros em pró-labore”. “Aliás, em se tratando de matéria de conteúdo eminentemente fático, pontua que nenhuma irregularidade formal teria essa faculdade.”

Como se observa, o relator manifestou o entendimento de que ainda que a escrituração contábil possua irregularidades, tais falhas não teriam o condão de alterar a natureza jurídica dos pagamentos para pró-labore.

Por outro lado, no voto vencedor, o relator designado seguiu a orientação das normas infralegais no sentido de que a demonstração de lucros insuficientes frente aos montantes distribuídos já bastaria para a requalificação de tais montantes como pró-labore.

Diante do exposto, a partir da maior parte dos precedentes analisados, verifica-se que a distribuição de lucros antecipados ao longo do exercício sem que haja lucro suficiente ao final do exercício tem como consequência a requalificação do excesso de lucros distribuídos para remuneração do trabalho passível de tributação pela contribuição previdenciária patronal.

*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

[2] Lei n. 8.212/91: “Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:

I – 20% sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa”.

[3] Decreto n. 3.048/99: “Art. 201. (…) § 5º No caso de sociedade civil de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissões legalmente regulamentadas, a contribuição da empresa referente aos segurados a que se referem as alíneas “g” a “i” do inciso V do art. 9º, observado o disposto no art. 225 e legislação específica, será de vinte por cento sobre:

I – a remuneração paga ou creditada aos sócios em decorrência de seu trabalho, de acordo com a escrituração contábil da empresa; ou

II – os valores totais pagos ou creditados aos sócios, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a proveniente do capital social ou tratar-se de adiantamento de resultado ainda não apurado por meio de demonstração de resultado do exercício”.

[4] Instrução Normativa RFB n. 971/09: “Art. 57. As bases de cálculo das contribuições sociais previdenciárias da empresa e do equiparado são as seguintes:

§ 5º No caso de Sociedade Simples de prestação de serviços relativos ao exercício de profissões legalmente regulamentadas, a contribuição da empresa em relação aos sócios contribuintes individuais terá como base de cálculo:

I – a remuneração paga ou creditada aos sócios em decorrência de seu trabalho, de acordo com a escrituração contábil da empresa, formalizada conforme disposto no inciso IV do caput e no § 5º do art. 47;

II – os valores totais pagos ou creditados aos sócios, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a proveniente do capital social, ou tratar-se de adiantamento de resultado ainda não apurado por meio de demonstração de resultado do exercício ou quando a contabilidade for apresentada de forma deficiente”.

[5] Instrução Normativa RFB n. 971/09: “Art. 57. (…) § 6º Para fins do disposto no inciso II do § 5º, o valor a ser distribuído a título de antecipação de lucro poderá ser previamente apurado mediante a elaboração de balancetes contábeis mensais, devendo, nessa hipótese, ser observado que, se a demonstração de resultado final do exercício evidenciar uma apuração de lucro inferior ao montante distribuído, a diferença será considerada remuneração aos sócios”.

[6] Conselheiro relator Julio Cesar Vieira Gomes.

[7] Conselheiro relator Arlindo da Costa e Silva.

[8] Conselheiro relator Rycardo Henrique Magalhães de Oliveira.

[9] Conselheiro relator Rodrigo Monteiro Loureiro Amorim.

[10] Conselheiro relator Matheus Soares Leite e conselheiro redator designado Cleberson Alex Friess.

Alexandre Evaristo Pinto

Conselheiro titular da Câmara Superior de Recursos Fiscais da 1ª Seção do Carf, ex-conselheiro titular da 2ª Seção do Carf, doutorando em Controladoria e Contabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, mestre em Direito Comercial pela USP, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e presidente da Associação dos Conselheiros Representantes dos Contribuintes no Carf (Aconcarf).

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