Imprevisibilidade da Justiça brasileira como fator de insegurança
José Rogério Cruz e Tucci
Diante do resultado do julgamento dos Temas 881 e 885 pelo Supremo Tribunal Federal, fico me perguntando se não seria o caso de me matricular em algum curso de Direito para me atualizar acerca de novos princípios e conceitos que emergem da atual interpretação que a nossa Corte Suprema tem conferido a algumas questões transcendentes, de grande relevância social e econômica.
De fato, com o referido julgamento por apertadíssima maioria, o Brasil se torna, com certeza, o único país do mundo no qual a jurisprudência retroage ferindo de morte a coisa julgada material, que tem expresso assento constitucional.
Ora, é ressabido que a ordem se descortina essencial tanto à vida individual como ao convívio no seio da coletividade. Toda sociedade, independentemente de seu grau de evolução, pressupõe mínima organização, sem a qual de modo algum poderia subsistir. Conhecida é, a propósito, a exortação de Goethe, no sentido de que é preferível alguma injustiça à desordem, numa significativa demonstração de que ao seu sagaz espírito não passou despercebido que a existência normal do ser humano impõe uma estabilidade que só a ordem permite proporcionar. Essa exigência de ordem, que traz implícita a noção de segurança, indispensável a qualquer modelo de convivência, é de tal sorte profunda, que, ao longo do tempo, irrompe espontânea e natural.
Com o desenvolvimento da sociedade, uma das principais funções das instituições públicas é a de construir estruturas de ordem e estabilidade para regrar as relações entre os membros da comunidade. Cabe, assim, às normas jurídicas acrescentar, a essa estabilidade ordenadora das instituições sociais, uma segurança específica e própria, à qual se costuma denominar de segurança jurídica.
Como bem destaca Arthur Kaufmann, na esteira, aliás, de secular concepção, um elemento indispensável da segurança jurídica é a força da coisa julgada das sentenças judiciais, significando que um provimento judicial que adquire tal status não mais pode ser impugnado pelos instrumentos jurídicos ordinários. “O processo se encontra terminado: Roma locuta, causa finita” (Filosofía del Derecho, tr. cast. Luis Villar Borda e Ana Maria Montoya, da 2ª ed. alemã de 1997, p. 349).
Com efeito, o dogma da coisa julgada visa essencialmente a pôr um ponto final nos litígios. É famoso, a propósito, o brocardo interest rei publicae ut sit litium finis…
A imutabilidade que passa a exornar o conteúdo decisório da sentença de mérito transitada em julgado, como expressivo e peculiar fenômeno do processo de conhecimento, tem por escopo, como é curial, de um lado, obstar à eternização dos litígios e, de outro, garantir a paz social, prestigiando a previsibilidade e sobretudo a segurança jurídica, ainda que em detrimento da própria justiça.
Não obstante, a teor do artigo 505, inciso I, do Código de Processo Civil, tratando-se de relação jurídica de prestações sucessivas, é possível que, com o passar do tempo, sobrevenha novo entendimento pretoriano, cuja eficácia se projetará para o futuro (ex nunc), ainda que contrária à precedente coisa julgada.
Tal fenômeno, aliás, não é incomum, em particular, nas relações tributárias. Determinado tributo poderá passar a ser exigido, por força de norma jurídica ou de decisão em controle concentrado supervenientes, tornando insubsistente a eficácia da coisa julgada formada sobre sentença anterior que havia declarado a inexigibilidade daquele tributo. São, na verdade, situações corriqueiras de mudança do estado de direito a revogação ou a derrogação das leis objeto do controle de constitucionalidade e o advento de novos preceitos normativos, inclusive de natureza constitucional.
Desse modo, declarada, por exemplo, constitucional a lei na qual se baseou a sentença para reconhecer não tributável determinada atividade do contribuinte, a obrigação tributária, em relação ao futuro, passará a ser exigível. O efeito vinculante da declaração de constitucionalidade é, sob o aspecto temporal, logicamente posterior à eficácia dessa respectiva decisão, portanto, ex nunc.
É, pois, segundo lição de Teori Albino Zavascki, “a partir da data da publicação da decisão do Supremo, cuja eficácia erga omnes lhe outorga incontestável valor normativo, que se opera uma relevante modificação do estado de direito: a da declaração, com efeito vinculante e erga omnes, da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade do preceito normativo. Essa modificação, embora não seja apta a desconstituir automaticamente os efeitos passados e já consumados da sentença que julgou o caso concreto, terá, certamente, influência em relação aos seus efeitos futuros. Relativamente a estes prevalecerá, em substituição ao comando da sentença anterior, o efeito vinculante da decisão proferida na ação de controle concentrado” (Coisa Julgada em Matéria Constitucional: Eficácia das Sentenças nas Relações Jurídicas de Trato Continuado, Doutrina do STJ, edição comemorativa — 15 anos, 2005, pág. 129).
Foi nessa direção, em obséquio à garantia da coisa julgada, que, há mais de dez anos, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça fixou a tese atinente ao Tema Repetitivo 340, por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.118.893/MG, no sentido de que: “Não é possível a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade”.
Ora, todos estes fatores ao longo do tempo infundiram nos contribuintes a certeza de que não seria mais exigida a CSLL até que eventualmente tal orientação fosse modificada. Assim, como bem apontado em lúcido e preciso texto de Hamilton Dias de Souza, diante da situação jurídica então vigente, “empresas que possuíssem decisões, definitivas, que validassem o não recolhimento de determinados tributos não estavam obrigadas a reportar tais fatos em seus balanços, muito menos provisionar os valores aproveitados” (Nota a respeito do julgamento dos temas 881 e 885 de repercussão geral, inédito).
É ocioso frisar que a eficiência da justiça e a constância da jurisprudência em relação a determinadas questões de natureza empresarial trazem significativos reflexos no contexto econômico.
Na verdade, a insegurança que nasce do advento de um novo precedente, em substituição à orientação consolidada, acarreta um custo social e econômico elevadíssimo, mesmo nos sistemas que não conhecem força vinculante da jurisprudência, uma vez que a situação de incerteza gerada pela mudança somente poderá ser eliminada depois de um período relativamente considerável para que seja consolidada a nova regula.
Esse problema foi enfrentado pela Suprema Corte da Alemanha, que revelou grande perplexidade com o fato de que a mudança de rumo dos precedentes judiciais pode mesmo ensejar o “desaparecimento da base do negócio, quando as partes contratantes partiram da análise da situação jurídica que resultava da jurisprudência anterior” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, 3ª ed., tr. port. José Lamego, Lisboa, Fundação C. Gulbenkian, 1997, pág. 617).
No entanto, no indigitado pronunciamento por demais tardio, o plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar no último dia 8 de fevereiro, os Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227 (temas de repercussão geral 881 e 885), de forma absolutamente inusitada, por maioria, deixou de modular os efeitos da decisão. O ponto fulcral do debate estabelecido entre os ministros girava em torno da discussão se a exigência de recolhimento da CSLL seria a partir do acórdão ou se retroagiria a 2007, quando o Supremo reputou constitucional a cobrança da contribuição.
Deixando então de fixar um marco temporal, ou seja, de modular os efeitos do acórdão, não tenho dúvida em afirmar que o resultado da decisão colegiada vulnera expressamente a coisa julgada, para atingir ex tunc “os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado” atinentes à exigência da CSLL.
Isso significa que os contribuintes que estavam garantidos porque tinham a seu favor a eficácia da coisa julgada mesmo antes de 2007 agora passam a dever, certamente com todos os encargos incidentes, a CSLL a partir de 2007 (em muitos casos, mesmo observando-se os prazos decadencial e/ou prescricional aplicáveis)! Como se infere de exemplo fornecido em reportagem estampada no caderno Economia & Negócios, publicada no Estadão de 10 de fevereiro, o “Grupo Pão de Açúcar (GPA) estava isento da CSLL desde 1992, por decisão judicial. Agora, terá de pagar o tributo, retroagindo a 2007 — ano em que o STF definiu que essa cobrança era constitucional. A empresa estimou que terá de pagar R$ 290 milhões”. A rigor, invocando mais uma vez o experiente ponto de vista de Hamilton Dias de Souza, “o prejuízo imposto aos contribuintes, relativamente a períodos passados, tem origem na demora do próprio Judiciário, que, apenas em 2023, veio a regrar, por seu tribunal de cúpula, os efeitos de suas decisões sobre os casos transitados em julgado”.
Não se trata, à evidência, de aposta alguma, uma vez que estes contribuintes tinham assegurada a inexigibilidade da CSLL: a) pela coisa julgada; e b) pelo expressivo pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, consubstanciado na fixação do Tema Repetitivo 340. Sabe-se que esta orientação aplica-se a diversos contribuintes amparados pela eficácia da coisa julgada que lhes asseguravam a inexigibilidade de outros tributos posteriormente declarados constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como IPI na revenda de importados e Cofins de sociedades prestadoras de serviços.
Igualmente legítima e compreensível a expectativa, surpreendentemente frustrada, de que o novo entendimento somente agora adotado pudesse ser objeto de modulação. Afinal, assim se dera em situação em tudo semelhante, em que foram resguardados os interesses fazendários em razão da “interpretação até então consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, inclusive em sede de recurso repetitivo” (STF, Tema 69).
Concluo, por fim, que o referido julgamento, além de rasgar a Constituição Federal, que consagra, no artigo 5º, inciso XXXVI, a garantia fundamental da coisa julgada, produz inequívoca incerteza e insegurança às relações negociais, em detrimento do prestígio ao Supremo Tribunal Federal.
José Rogério Cruz e Tucci
sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.