Imposto cobrado pela Lei de Repatriação foge do conceito de tributo

Mônica Elisa de Lima

A Lei 13.254, de 13 de janeiro de 2016, instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), a ser usufruído pelos residentes ou domiciliados no país em 31 de dezembro de 2014 que tenham sido ou ainda sejam proprietários ou titulares de ativos, bens ou direitos, de origem lícita, em períodos anteriores a essa data.

Dita regularização cambial e tributária se materializa pela declaração voluntária dos recursos, direitos ou bens, antes omitidos do conhecimento do Fisco, ainda que, naquela data, não mais existam saldo ou a propriedade desses ativos. É necessário, ainda, o pagamento integral do imposto, à alíquota de 15%, sobre o qual se aplica multa de 100%, conforme previsto nos artigos 6º e 8º da lei.

Tal declaração específica foi regulamentada, assim como outras regras, pela Instrução Normativa RFB 1.627, de 11 de março de 2016. Desta forma, a adesão ao RERCT materializa-se na transmissão da Declaração de Regulamentação Cambial e Tributária (Dercat), acompanhada do pagamento do imposto mais multa.

Não desnaturam a origem lícita os resultados que tenham implicado as seguintes condutas penais: crimes contra a ordem tributária, sonegação fiscal, sonegação de contribuição previdenciária, falsificação de documento público ou particular, uso de documento falso, falsidade ideológica, evasão de divisas do país e lavagem ou ocultação de bens direitos ou valores.

Desta forma, nos termos do parágrafo 1º do artigo 5º da Lei 13.254/2016, uma vez cumpridos os requisitos para a adesão ao RERCT, considera-se extinta a punibilidade de quaisquer dos injustos acima, relativos aos bens regularizados. Ou seja, o Estado renuncia a seu direito de aplicar ou executar a pena pelo fato típico, ilícito e culpável.

Dentre o rol não taxativo das causas da extinção da punibilidade contidas no artigo 107 do Código Penal encontra-se a anistia (inciso II), que pode ser definida como o esquecimento da infração penal ou o perdão pelo Estado, em decorrência de lei, sendo concedido por razões de políticas e ou sociais.

É cediço, entretanto, que a extinção do jus puniendi penal não afasta o dever civil de indenizar, conforme se infere do disposto nos artigos 66 e 67, II, do Código de Processo Penal e no artigo 935, do Código Civil, que consagram a independência das esferas criminal e cível, no tocante à reparação civil, quando constatada a materialidade e autoria do delito.

Assim, nada obsta que a anistia se dê mediante condições, inclusive a contrapartida material, como ocorre, por exemplo, no caso de crimes contra a ordem tributária, quando ocorra o pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia.

Em termos tributários, pretendeu a Lei 13.254/2016 definir a contrapartida pecuniária feita pelo contribuinte como Imposto de Renda sobre ganho de capital, apontando que os ativos declarados, ainda que inexistentes em 31 de dezembro de 2014, são considerados acréscimo patrimonial auferido em tal data, na forma prevista no inciso II do caput e do parágrafo 1º do artigo 43 do Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 1966).

Pois bem, estabelecidos os conceitos acima e considerando que “a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la a denominação e demais características formais adotadas pela lei” (artigo 4º, CTN), pretende-se perquirir qual a natureza jurídica da exação condicionante à fruição do RERCT.

Inicie-se o estudo pela definição de tributo, constante do artigo 3º, do CTN:

Artigo 3º. Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

A Lei do RERCT afirma que os ativos objeto da regularização são considerados acréscimos patrimoniais, isto é, proventos de qualquer natureza, adequando-se ao fato gerador do imposto sobre a renda, especificamente, à definição contida no parágrafo 1º e inciso II, do artigo 43 do Código Tributário.

Quanto a dito imposto, assim dispõe o CTN:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I – de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II – de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Parágrafo 1º. A incidência do imposto independe da denominação da receita ou do rendimento, da localização, condição jurídica ou nacionalidade da fonte, da origem e da forma de percepção (Incluído pela Lcp 104, de 2001).

Parágrafo 2º. Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo (Incluído pela Lcp 104, de 2001).

Ainda segundo o CTN, “a base de cálculo do imposto é o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis” (artigo 44).

Já o ganho de capital conceitua-se como a diferença positiva entre o custo de aquisição e o valor de alienação de determinado bem (artigo 138, do Regulamento do Imposto de Renda, Decreto 3.000/99). Ou, ainda que não haja a efetiva alienação, considera-se ganho de capital a diferença positiva entre o custo de aquisição do bem (normalmente o valor declarado na declaração de ajuste anual) e sua atualização a valor de mercado.

Segundo o artigo 6º da Lei 13.254/2016, a regularização dos ativos sujeita a pessoa física ou jurídica ao Imposto de Renda, a título de ganho de capital, à alíquota de 15%, conforme abaixo:

Artigo 6º. Para fins do disposto nesta Lei, o montante dos ativos objeto de regularização será considerado acréscimo patrimonial adquirido em 31 de dezembro de 2014, ainda que nessa data não exista saldo ou título de propriedade, na forma do inciso II do caput e do § 1º do art. 43 da Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), sujeitando-se a pessoa, física ou jurídica, ao pagamento do imposto de renda sobre ele, a título de ganho de capital, à alíquota de 15% (quinze por cento), vigente em 31 de dezembro de 2014.

Assim, nos termos da lei: os ativos objeto de regularização são considerados acréscimo patrimonial; o fato gerador é o ganho de capital; a data do fato gerador é 31 de dezembro de 2014 e a alíquota aplicável será de 15%.

A questão frágil no Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária diz respeito à base de cálculo que é descrita como o montante desses ativos em 31 de dezembro de 2014, ainda que não existisse mais saldo ou título de propriedade.

Uma leitura superficial poderia levar à conclusão de que, quando aponta um suposto saldo inexistente, a lei estaria adequada ao conceito de base de cálculo constante do artigo 44, do CTN, quer dizer, o montante real, presumido ou arbitrado da renda ou proventos.

Ocorre que a presunção ou arbitramento da renda parte do pressuposto ditado no caput do artigo 43, qual seja, a disponibilidade jurídica ou econômica. Com efeito, não há que se falar em disponibilidade, em 31 de dezembro de 2014, de um valor inexistente naquela data.

Ou seja, para se presumir ou arbitrar a base de cálculo, é necessário que exista o fato gerador naquela data específica, que, no caso do IR, é a disponibilidade jurídica ou econômica.

Com efeito, a lei tributária só se aplica a fatos pretéritos, quando expressamente interpretativa ou relativa a ato não definitivamente julgado. Assim, não cabe entender que um fato gerador ocorrido em 31/12/2014 alcance uma situação inexistente em tal momento.

O parágrafo 2º do artigo 43, do CTN tampouco dá guarida à pretensão de se alterar a cronologia do fato gerador. Assim, quando a Lei Complementar 104/2001 instituiu que, no caso de rendimentos oriundos do exterior, a lei pode estabelecer o momento em que se dá sua disponibilidade, não foi dada ao legislador ordinário a prerrogativa de tumultuar o sistema, distorcendo o âmago do fato gerador, que é a própria disponibilidade.

Em harmonia com a constatação acima, é a manifestação do ministro Ayres Brito, acerca do indigitado parágrafo 2º, em voto proferido no bojo da ADI 2.588/DF:

“(…) a cabeça do art. 43 baliza a interpretação do seu § 2º, ora impugnado, ao dispor que o fato gerador é a ‘aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica’ de renda ou de proventos de qualquer natureza. Donde a intelecção de que, se a lei ordinária vier a dispor de modo apartado da autorização do referido § 2º, padecerá do vício de inconstitucionalidade. O que me leva a não ter por inconstitucional esse questionado § 2º do CTN, pois o sistema jurídico permanece na posse da sua virtualidade de impedir que a lei ordinária venha a cobiçosamente artificializar o momento da aquisição da disponibilidade de renda para o efeito de incidência do imposto e da contribuição em exame”.

De fato, não parece cabível um tributo incidir sobre fato fictício, qual seja, a propriedade de valores não mais existentes em 31/12/2014. Até porque viola o princípio da capacidade contributiva.

Cabe trazer à discussão orientação prestada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, a título de “perguntas e respostas” sobre a DERCAT. Por meio de mencionado instrumento o esclarece que, se o contribuinte quiser regularizar-se criminalmente, está obrigado a declarar os bens não mais existentes e recolher o “imposto” sobre o respectivo valor. É o que se verifica:

4) Posso declarar bens e direitos remetidos ao exterior mas que não tenha mais saldo ou a propriedade, posse ou titularidade em 31 de dezembro de 2014?
Sim. Neste caso o declarante deverá descrever as condutas praticadas que se enquadrem nos crimes previstos no § 1º do art. 5º da Lei nº 13.254, de 2016, além de descrever os respectivos recursos, bens ou direitos de qualquer natureza.

39) Como declarar bens que foram parcialmente consumidos previamente a 31 de dezembro de 2014?
Quem desejar estender integralmente os efeitos da lei aos bens e às condutas a eles relacionadas, deverá informar tanto a parte do bem remanescente em 31/12/2014 como a parte consumida.

Desta forma, serão declarados: o saldo do valor do bem existente em 31/12/2014 e o montante consumido na condição de “Ausência de saldo ou titularidade em 31/12/2014” com a descrição das condutas praticadas.

(Arts. 4º, §1º, V; 5º, §1º e 6º §4º da Lei nº 13.254, de 13/01/2016, e Arts. 7º, VIII e 13 da IN SRF nº 1.627, de 11 de março de 2016)

Nota 1: A inclusão no RERCT de recursos não mais existentes em 31 de dezembro de 2014 está prevista no art. 4º da Lei nº 13.254, de 2016, e sua inclusão estende os efeitos da adesão às condutas diretamente relacionadas a esses bens e direitos. (Nota incluída em 7/6/2016)

Nota 2: Para a extensão dos efeitos do RERCT a todas as condutas relacionadas aos bens e direitos havidos em 31 de dezembro de 2014 e em períodos anteriores, é necessário declarar a totalidade dos recursos diretamente relacionados às condutas, o que inclui os bens de que não tenha mais saldo ou propriedade, posse ou titularidade em 31 de dezembro de 2014, e recolher o tributo e multa sobre estes valores. (Nota incluída em 7/6/2016)

Ou seja, só a declaração e o pagamento são aptos a extinguir a punibilidade do rol de crimes declinados no artigo 5º da Lei 13.254.

Não é a finalidade deste artigo, mas caberia indagar até que momento passado o contribuinte teria de retroagir para fazer jus aos efeitos da anistia. A falta de precisão da lei e da respectiva regulamentação pode levar à conclusão de que o contribuinte estaria obrigado a buscar bens dentro de um período que comportasse a prescrição penal. Nesse caso, seria factível a hipótese de até 16 anos, considerando que, no rol de ilícitos declinados no artigo 5º, encontram-se penas em abstrato de até 12 anos (cf. inciso II, do artigo 109, do Código Penal). Contudo, apesar de esta ser uma conclusão em tese cabível dada a imprecisão da lei, não se haveria de tê-la como aceitável, vez que, em se tratando de um tema inserido na seara tributária, não se há de falar em prazo superior a cinco anos. Essa observação se faz apenas para corroborar a precariedade do texto legal.

Na medida em que a lei está arbitrando data de fato gerador e base de cálculo para fins de incidência da exação, nada mais faz do que “cobiçosamente artificializar o momento da aquisição da disponibilidade de renda para o efeito de incidência do imposto”, conduta essa não amparada em nosso sistema jurídico (com as devidas homenagens ao autor dessas palavras, o ministro Ayres Brito, na ADI 2.588/DF).

Na medida em que o Estado cria um regime especial, cujo cumprimento implica a extinção da punibilidade de crimes, sob condição de pagamento de uma prestação pecuniária, devida vênia, está-se diante de uma sanção de ato ilícito. Ou seja, ocorre uma anistia penal, condicionada ao dever civil de indenizar.

Revestindo-se da natureza de sanção de ato ilícito, tanto o suposto imposto, quanto a respectiva multa, previstos no RERCT não se adequam ao conceito primevo de tributo, menos ainda, de Imposto de Renda e, particularmente, de imposto sobre ganho de capital.

Mônica Elisa de Lima

Advogada, sócia do escritório Lima e Oliveira Brito Advogados e mestre em Direito pela Universidade Cândido Mendes.

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