Governo desequilibra julgamentos do Carf em desfavor do contribuinte
Ives Gandra da Silva Martins
O Código Tributário Nacional, no Título II, ao cuidar do lançamento, determina no artigo 142 que:
“Art. 142. Compete privativamente à autoridade administrativa constituir o crédito tributário pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade cabível.
Parágrafo único. A atividade administrativa de lançamento é vinculada e obrigatória, sob pena de responsabilidade funcional.”
Como se percebe no lançamento decorrente de autos de infração, o agente fiscal determina toda a matéria tributável e propõe a multa, peça esta que, ofertado o prazo de impugnação ao contribuinte, poderá ser revista ou confirmada, se houver defesa ou representar a constituição definitiva do crédito tributário, se não houver.
Sempre escrevi, no curso destes 45 anos de interpretação do CTN, até mesmo nos Comentários ao CTN que elaborei pela Editora Saraiva, coordenando uma equipe de 41 professores universitários das principais universidades do país, que o lançamento no direito tributário brasileiro é declaratório da obrigação tributária, definida no artigo 113 e constitutivo do crédito tributário nos termos do artigo 139, ambos do Código Tributário Nacional e assim redigidos:
“Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
§ 1º. A obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.
§ 2º. A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos.
§ 3º A obrigação acessória, pelo simples fato da sua inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária.”
“Art. 139. O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta.”
É de se lembrar que o artigo 145 do mesmo diploma legal abre o direito à impugnação, que pode implicar um duplo grau de questionamento, nos seguintes termos:
“Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de:
I – impugnação do sujeito passivo;
II – recurso de ofício;
III – iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos previstos no artigo 149.”
No âmbito federal, o Carf é o órgão revisor derradeiro de qualquer impugnação ou recurso, sendo que sua decisão final constitui definitivamente o crédito, correndo o prazo prescricional nos termos do artigo 174 para a Fazenda entrar em juízo, se a decisão lhe for favorável e o contribuinte não a cumprir. Está o artigo 174 assim redigido:
“Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal; (Redação dada pela Lcp nº 118, de 2005)
II – pelo protesto judicial;
III – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
IV – por qualquer ato inequívoco ainda que extrajudicial, que importe em reconhecimento do débito pelo devedor.” (Grifos meus)
Verifica-se, pois, que a própria terminologia utilizada na lei com eficácia de complementar é de que a prescrição só passa a correr a partir da constituição definitiva do crédito tributário.
Desta forma, o processo administrativo corresponde ao lançamento, que pode ocorrer em duas instâncias, como no âmbito federal, não sendo senão um processo revisional “interna corporis” da administração, que ao fim poderá confirmar o lançamento como integral ou parcialmente definitivo ou, ainda, não o fazer.
Ora, o CTN é uma norma com eficácia de lei complementar, só podendo ser modificada por lei com a mesma eficácia. Sendo assim, lei ordinária que determinar a continuidade, via judicial, do processo revisional do lançamento, em verdade transformará o Poder Judiciário em revisor do lançamento, o que fere o CTN tanto formalmente, por passar a ser modificado por lei ordinária, quanto materialmente, por transformar o Poder Judiciário em lançador de tributo, já que o Carf, no processo revisional, julgou improcedente a peça fazendária.
Ainda que fosse legal — a questão é de ilegalidade direta e inconstitucionalidade indireta — traria um outro problema seríssimo. É que qualquer decisão emitida pelo Carf favorável ao contribuinte, por não ser definitiva, o faria aguardar cinco anos até a ocorrência da prescrição, permanecendo uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça, mesmo que a Fazenda concordasse em não ajuizar a execução fiscal.
A insegurança tributária seria monumental, numa violação direta a um dos cinco principais fundamentos de direitos individuais explicitados no “caput” do artigo 5º da Carta da República, que é a segurança jurídica, cuja dicção é a seguinte:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:” (Grifos meus)
Espero que o bom senso do ministro Fernando Haddad leve-o a cancelar a proposta.
Ives Gandra da Silva Martins
Professor emérito das universidades Mackenzie, Unip, Unifieo, UniFMU, do Ciee/O Estado de São Paulo, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme), Superior de Guerra (ESG) e da Magistratura do Tribunal Regional Federal – 1ª Região, professor honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia), doutor honoris causa das Universidades de Craiova (Romênia) e das PUCs PR e RS, catedrático da Universidade do Minho (Portugal), presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio-SP, ex-presidente da Academia Paulista de Letras (APL) e do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp).