A restrição de acesso ao Carf é inconstitucional

Hugo de Brito Machado Segundo

Sob o discurso de que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) é um órgão altamente especializado, que não pode ficar a perder tempo com questões banais, aliado ao argumento de que há um elevado “estoque” de dívida a ser cobrado, há poucos dias editou-se a Medida Provisória 1.160, que levou a efeito algumas modificações no processo administrativo tributário federal. É preciso atenção quando a leitora for procurá-la, pois há outra MP 1.160, de mesmo número mas editada em 1995, que trata de outra coisa. Esta que comento é de 12 de janeiro de 2023.

Neste artigo será abordada apenas uma das modificações, que pretende restringir a competência do Carf às questões “mais complexas”, assim entendidas aquelas que envolvem quantias superiores a 1.000 salários mínimos. Questões que discutam valores inferiores a isso serão equacionadas em “instância única”.

Muitos estão a comentar a referida medida provisória, dando ênfase apenas ao retorno do “voto de qualidade”, por ela também levado a efeito. Mas é preciso atenção ao que decorre da seguinte disposição, que, pela técnica de remissões que faz, talvez não seja suficientemente clara e esteja passando despercebida:

“Art. 4º A Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, passa a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 27-B. Aplica-se o disposto no art. 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos.” (NR)

Para entender o que isso significa é preciso conferir o artigo 23 da Lei 13.988/2020, que passa agora a ser aplicado a todo “contencioso cuja controvérsia não supere mil salários mínimos”. Seu parágrafo único dispõe:

“Parágrafo único. No contencioso administrativo de pequeno valor, observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o julgamento será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, aplicado o disposto no Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, apenas subsidiariamente.”

Isso significa, por outras palavras, a pretensão de fazer com que se submetam integralmente aos termos do Decreto 70.235/72, incluindo o direito de recorrer ao Carf e, eventualmente, à Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), apenas os processos administrativos que girem em torno de quantias superiores ao citado valor de alçada, que hoje ultrapassa um milhão de reais. Todas as demais questões tributárias, que correspondem à imensa maioria, serão resolvidas no âmbito das Delegacias de Julgamento.

Existem, contudo, incontáveis problemas nessa medida.

O primeiro deles, mais evidente, é a violação ao disposto na Súmula Vinculante 21, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.

Entre os fundamentos usados pelo STF para julgar as questões que culminaram com a edição da Súmula, estavam a necessidade de respeito ao devido processo legal substantivo, ao direito de defesa, e direito de interposição de recursos, malferidos quando se exige um depósito de 30% do valor da exigência como condição para admissibilidade do recurso. Vista como um embaraço, ou uma dificuldade, de acesso ao Carf, a exigência de garantias recursais foi declarada inconstitucional. Nesse contexto, a fortiori, uma vedação absoluta (para quem discute menos de mil salários mínimos) afigura-se, se é que isso é possível, ainda mais inconstitucional.

Só pelo valor envolvido, notadamente quando o parâmetro supera um milhão de reais, não se pode dizer que uma causa é mais, ou menos, complexa. O valor por certo é um dos elementos, a indicar inclusive maior responsabilidade para quem lida com o conflito, mas, quanto à complexidade da matéria, muitas vezes é reflexo apenas do porte do contribuinte. Uma mesma discussão sobre insumos de PIS ou Cofins, ou sobre a dedutibilidade de despesas na apuração do IRPJ ou da CSLL, pode ou não ultrapassar esse valor, a depender, tão somente, de se tratar de um grande contribuinte, que lucra e fatura muito, ou de um contribuinte de porte médio. Não será a complexidade, ou a relevância, mas a capacidade econômica do contribuinte que permitirá, ou cerceará, o acesso a um importante órgão de controle interno da legalidade, em clara quebra da igualdade.

Recorde-se que as Delegacias de Julgamento, diversamente do Carf, acham-se vinculadas a todas as normas infralegais editadas pela administração tributária. Decretos, portarias, instruções normativas, ordens de serviço, pareceres normativos, soluções de consulta etc. Isso torna quase inexistência a sua capacidade para realizar controle de legalidade, quanto a questões de direito, vinculadas que estão justamente às normas cuja invalidade é o cerne da controvérsia.

A inconstitucionalidade da medida, nesses termos, é bastante clara.

Mas não só. Ela é, além de tudo, inconveniente. Inclusive para o Fisco, que não deve agir como se a solução para a superlotação dos hospitais fosse fechar suas portas a fim de que os pacientes morram do lado de fora. Não se deve pensar que, para obter maior arrecadação, a solução é amesquinhar o devido processo legal, pois isso, quando muito, aumenta uma arrecadação que de outro modo seria considerada indevida, algo incompatível com a ideia de Estado de Direito.

Isso remete à derradeira questão, que talvez já tenha passado pela mente da leitora enquanto lia o parágrafo único do artigo 23 da Lei 13.988/2020: Mas por que essa irresignação contra a medida? Nela não se afirma “observados o contraditório, a ampla defesa e a vinculação aos entendimentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais”? Se os precedentes do Carf serão observados, qual o problema?

O problema é justamente esse: a forma como os precedentes do Carf (não) são observados. Nem pela fiscalização, nem pelas próprias delegacias, inclusive as de julgamento. São seguidos, naturalmente, mas só quando favorecem o Fisco. Neste caso, nem precisam ter força vinculante, qualquer acórdão serve. Mas, se favorecem a tese defendida pelo contribuinte, as autoridades tributárias, de lançamento ou de revisão em primeira instância, afirmam que, à luz do artigo 100 do CTN, só são obrigadas a cumprir os que tiverem força vinculante. E o Fisco só dá força vinculante aos precedentes do Carf que o favorecem. Os que desfavorecem são motivo para pressão às vezes explícita junto aos conselheiros do órgão para que sejam revertidos, ou para modificações legislativas como a que se comenta neste artigo.

É esse comportamento que faz com que o Carf seja assoberbado de processos. Se as DRJs seguissem os entendimentos da segunda instância favoráveis aos sujeitos passivos, simplesmente os sujeitos passivos não recorreriam, e, nas questões cujo valor fosse inferior a dois milhões de reais, tampouco haveria recurso de ofício. Caso o Fisco — todo ele — seguisse os precedentes do Carf de modo coerente, portanto, chegar-se-ia ao mesmo resultado que se alega pretender com a restrição aqui comentada, sem a necessidade de qualquer mudança legislativa, ou de qualquer violação ao direito de defesa.

Aliás, a lamentável medida irá aumentar, sem dúvida, a quantidade de processos levados ao Poder Judiciário, contrariando uma lógica, presente sempre nas palavras mas raramente nos atos das autoridades fiscais, de desjudicialização, de redução de conflitos, de “superação da cultura do litígio”. Reduzir cultura do litígio não pode ser confundido com simplesmente tolherem-se os instrumentos de defesa e de controle, para que o Fisco faça com o contribuinte o que quiser. É o caso: em vez de reconhecer na via administrativa uma ilegalidade, fecha-se ao contribuinte a via de acesso ao órgão que minimamente ainda faz isso, fazendo-se com que essas mesmas questões sejam desnecessariamente levadas ao Judiciário. E este, depois, logo começa a realizar julgamentos em massa, adotar a jurisprudência defensiva para se livrar de processos, e culpar advogados, um suposto excesso de recursos e o CPC de 2015 em geral pelo problema que, como se vê, é bem outro.

Hugo de Brito Machado Segundo

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFCE) — de cujo programa de pós-graduação (mestrado/doutorado) foi coordenador (2012/2016) —, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität, em Viena (Áustria).

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