Fair play e a cobrança do imposto de exportação sobre petróleo bruto

Leonardo Branco, Thales Belchior

Imagine a seguinte situação: final de jogo, o time que está perdendo tem um jogador caído no chão lesionado. O outro time joga a bola para fora para permitir o atendimento. Na reposição de bola, o time que está em desvantagem, além de não repassá-la de volta, lança-se ao ataque aproveitando a desatenção do time que vencia e faz o gol de empate. O lance é válido, não violou qualquer regra escrita do jogo, mas há confusão em campo, o time que praticou o fair play se sente prejudicado e pede ao juiz, em vão, para que anule o gol, sem ser atendido. O resultado é inevitavelmente o empate.

É com essa alegoria inicial que iniciamos a coluna de hoje para refletir a respeito do imposto de exportação (IE) instituído com efeitos imediatos pela Medida Provisória (MP) nº 1.163/2023 sobre operações com petróleo bruto.

O contexto da instituição do IE sobre tais produtos é a desoneração de tributos federais dos combustíveis, promovida inicialmente pela Lei Complementar nº 192/2022 até dezembro de 2022 e, posteriormente, prorrogada até fevereiro de 2023 pela MP nº 1.157/2023 enquanto o atual governo buscava definir a manutenção ou revogação da medida, bem como a fonte de custeio para uma prorrogação adicional. A definição veio com a MP nº 1.163/2023, que prorrogou total ou parcialmente as desonerações em questão.

Como se extrai da Exposição de Motivos nº 26/2023, essas medidas, com renúncia de receita estimada de R$ 6,61 bilhões, “têm por objetivo contribuir para a estabilização da economia, pois evita o impacto inflacionário decorrente da reoneração imediata dos combustíveis, considerada, em particular, a conjuntura internacional desafiadora, inclusive com a permanência da guerra entre Rússia e Ucrânia, que agrega incertezas ao cenário econômico, especialmente em relação à evolução dos preços internacionais de petróleo”. Parece-nos verdadeiro diante do efeito regressivo nefasto do aumento do custo dos combustíveis sobre toda a cadeia produtiva brasileira, dilapidando diretamente o poder aquisitivo dos brasileiros, especialmente os mais pobres.

A renúncia buscou ser compensada com a instituição imediata de IE sobre operações de petróleo bruto com alíquota de 9,2% até junho de 2023 por meio da mesma MP, com expectativa de arrecadação na ordem de R$ 6,65 bilhões.

Para justificar o uso extraordinário de competência legislativa originária pelo Poder Executivo, apontou-se: (a) relevância em função da importância do setor de combustíveis para a economia, sendo do interesse público a redução de tributos sobre combustíveis; e (b) urgência em razão do encerramento iminente da desoneração concedida, que teria expressivo (e igualmente imediato) impacto nos preços de combustíveis sobre os orçamentos os orçamentos das famílias e os custos das empresas, sendo que a proposta atenuaria tais impactos, protegeria os mais vulneráveis e concederia tempo hábil para a reestruturação da política de preço dos combustíveis.

Não foram feitas considerações formais sobre a relevância e urgência da instituição do IE em específico e essas são deduzidas por arrastamento, na qualidade de fonte de custeio imediato para a redução da desoneração dos combustíveis. Tampouco presente no texto, a justificativa da limitação da norma ao petróleo bruto trazida pelo ministro de Minas e Energia no anúncio da medida: um aceno ao interesse desenvolvimentista de trazer para o solo nacional a fase de refino.

A implementação do IE foi recebida de maneira negativa pelo setor de petróleo e por parte da comunidade de juristas. Comissões da Seccional do Rio de Janeiro da OAB, um dos maiores estados produtores, emitiram nota demonstrando preocupação com a criação do imposto (link) e foi impetrado um número representativo de Mandados de Segurança na Justiça Federal além das ADIs 7.359 e 7.360 no STF.

Os principais argumentos apresentados por aqueles que entendem pela ilegitimidade da implementação do IE são os seguintes:

1. Violação à natureza extrafiscal do IE e à vedação de “exportação de tributos”, mediante a ponderação de que a cobrança do IE só poderia ocorrer em razão de algum desequilíbrio no comércio exterior, vedado seu uso com fins arrecadatórios;

2. Violação à previsão de que a arrecadação do IE visa a formação de reservas monetárias a cargo do Bacen, já que a exposição de motivos deixa claro o ingresso de recursos aos cofres públicos de maneira livre;

3. Violação à separação dos poderes, pois a majoração não teria sido motivada como previsto na regra de delegação à modificação de alíquotas pelo Executivo;

4. Impossibilidade de instituição de novo tributo via MP diante da reserva de lei complementar para tanto (mediante construção de que esse IE não se amoldaria ao arquétipo constitucional constante do artigo 153, inciso II da CF/88);

5. Desatendimento aos requisitos previstos no artigo 62 da CF/88 para uso extraordinário de capacidade legislativa originária via edição de MP;

6. Violação à livre concorrência e à vedação ao confisco já que com o novo IE a arrecadação estatal sobre o petróleo extrapolou a razoabilidade comercial; e

7. Necessidade de observância da anterioridade, já que a exceção prevista no art. 150, §1º da CF/88 seria restrita ao uso extrafiscal do IE, devendo prevalecer no caso concreto a não-surpresa ao contribuinte.

Até o presente momento, s.m.j., todas as medidas liminares solicitadas foram rejeitadas [1], com o Judiciário ponderando não ter enxergado qualquer mácula, nessa fase preliminar e precária, na implementação do IE via MP.

Antes de avançar nos pontos controversos, cabe uma breve explanação sobre o IE. Trata-se de imposto de competência federal (artigo 153, inciso II da CF/88) ressalvado da observância: (a) a ambas as formas de anterioridade (artigo 150, §1º); e (b) à legalidade para fins de alteração de seus aspectos quantitativos (artigo 153, §1º), desde que feito com base nas condições e limites estabelecidos em lei.

As normas gerais do IE são estabelecidas desde o regime constitucional anterior pelo Código Tributário Nacional (artigos 23 a 28). No que é relevante para o presente artigo: (a) o artigo 26 estabelece que o Poder Executivo pode, nas condições e nos limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas ou bases de cálculo do IE, a fim de ajustá-los aos objetivos da política cambial e do comércio exterior; e (b) o artigo 28 que a receita líquida do imposto destina-se à formação de reservas monetárias, na forma da lei.

A instituição do IE foi feita pelo DL nº 1.578/77 (novamente no regime constitucional anterior), cujo artigo 3º determinou que a alíquota base do imposto seria de 30% para todas as exportações, facultando ao Poder Executivo reduzi-la ou aumentá-la (até o teto de 150% no caso de aumento) em linha com os objetivos trazidos no CTN. Já a previsão do artigo 28 do CTN foi refletida no artigo 9º, que novamente apontou que a arrecadação do IE constituiria reserva monetária administrada pelo Bacen e que só poderia ser aplicada na forma estabelecida pelo CMN.

Feito isso, podemos seguir à análise jurídica da higidez do novo IE. Em primeiro lugar, a regra de destinação da arrecadação dos artigos 28 do CTN e 9º do DL nº 1.578/77 não produz mais efeitos por ser incompatível com o regime constitucional trazido pela CF/88, que estabeleceu a vedação de vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa (artigo 167, inciso IV). A arrecadação do IE deve se agregar à arrecadação tributária de uso livre (resguardadas as reservas mínimas constitucionalmente previstas para saúde e educação direcionadas à arrecadação global).

Em segundo lugar, inexiste qualquer regra vigente que vede o uso do IE com fins arrecadatórios. Não se pode ter tamanho apego à divisão dos tributos entre aqueles com destinação “fiscal” ou “extrafiscal” já que qualquer um deles traz consigo, naturalmente, ambas as facetas, vez que a simples existência de tributação já desestimula determinada atividade econômica pelo aumento do ônus financeiro e gera ingresso de recursos aos cofres públicos [2]. O fato de um tributo ser usado mais de determinada forma não impede que ele o seja de outra, à míngua de vedação específica.

Embora os artigos 26 do CTN e 3º do DL nº 1.578/77 ainda estejam vigentes, o requisito de motivação para mudanças na alíquota se aplica apenas para mudanças feitas por meio de ato infralegal, cenário no qual não se enquadra o ajuste via MP tal como o aqui realizado.

Ainda que aplicável, forçoso seria reconhecer que a motivação foi atendida no caso concreto, já que (a) ainda se está abaixo da alíquota base de 30% (e nunca se exigiu rigor motivação nos ajustes dentro deste limite); e (b) há dois legítimos objetivos de comércio exterior subjacente (1) desincentivar a exportação de petróleo bruto e incentivar o refino em solo nacional e (2) obter recursos para custeio estatal a partir das exportações realizadas (que são manifestações de riqueza constitucionalmente previstas como aptas a atrair a tributação). Não nos parece existir a condicionante de que o aumento ou cobrança do IE só poderia ocorrer por desequilíbrio, já que a norma menciona “objetivos de comércio exterior” de forma ampla.

Em terceiro lugar, a desoneração da tributação da cadeia exportadora baseada no destino e na neutralidade tributária do fluxo das correntes comerciais internacionais[3] não nos parece implicar “vedação à exportação de tributos”.

De fato, a Magna Carta imunizou as exportações de quase todos os tributos, forte no conceito de que é mais interessante à economia nacional o aumento da competividade dos produtos brasileiros e o ingresso de divisas do que a arrecadação direta. Só que o IE ficou de fora da imunidade (e sem qualquer condicionante), o que permite concluir que o Constituinte autorizou que a União instituísse tal tributo para (a) intervir no domínio econômico; e (b) efetivamente obter recursos para seu custeio, mediante a opção pela arrecadação direta em detrimento dos beneplácitos acima descritos.

Em quarto lugar, parece-nos que a opção pela edição da MP foi não apenas adequada, como republicana. Não entendemos que se está diante de um “novo tributo” (já que todos os elementos distintivos do IE tal como previsto na CF/88 e CTN estão presentes) e avaliamos que os requisitos de urgência e relevância (no contexto da obtenção de recursos para viabilizar a desoneração dos combustíveis) estão ao menos minimamente presentes no caso concreto para autorizar o uso da MP. Tampouco podemos deixar de considerar que a União poderia ter feito o ajuste por ato infralegal, mas optou por fazê-lo via MP suscetível crivo do Congresso.

Em quinto lugar, avaliamos que não restaram comprovados os argumentos de violação à livre concorrência e à vedação ao confisco, que demandariam a demonstração, por exemplo, de que a tributação tornou a operação deficitária (ou próximo disso). A mera redução na lucratividade não é suficiente para impedir a tributação, ainda que o “take” brasileiro sobre o petróleo esteja acima da média dos outros países (valendo ponderar que se trata de um recurso mineral estratégico finito, de maneira que nos parece natural que o Estado brasileiro busque a máxima compensação financeira possível). Não cabe a intervenção judicial nesses cenários, inclusive para resguardar o princípio da separação dos poderes e da autonomia do governo eleito para a tomada de decisões.

Se, até aqui, não tivemos grandes dúvidas acerca da inexistência de mácula jurídica quanto ao IE, a situação ganha em complexidade quando passamos à questão da produção de efeitos imediatos à tributação, utilizando-se da regra constitucional que excepciona o IE da anterioridade.

Apenas os seguintes tributos são excepcionados de ambas as anterioridades: (a) Empréstimo Compulsório; (b) Imposto de Importação; (c) IE; (d) IOF; e (e) Imposto Extraordinário de Guerra Externa. A lista restrita permite compreender que a ressalva de ambas as anterioridades se justifica pela existência de situações que possam colocar em risco a economia ou soberania nacional e que poderiam ser combatidas mediante o uso destes tributos — o que se confirma com a sujeição da Cide a ambas as anterioridades, tributo com vocação extrafiscal por excelência.

Por outro lado, a falta de consignação explícita também abre margem para pontuar que bastaria a preservação dos interesses nacionais considerados relevantes através da tributação, tal como o controle do comércio exterior e da balança comercial externa (II e IE) e/ou da circulação de valores e títulos através do IOF.

Nesse contexto: (a) é possível exigir que o tributo esteja sendo usado com viés extrafiscal para aplicar a ressalva da anterioridade ou basta estar listado na regra de ressalva; (b) caso positivo, (1) qual é o escopo (simples interesse nacional ou apenas a preservação da nação) e abrangência (existência, prevalência ou exclusividade) da extrafiscalidade a ser exigida; e (2) na situação concreta, configurou-se ou não a extrafiscalidade exigida?

A questão não é simples já que a regra escrita não traz qualquer condicionante ao ressalvar da anterioridade. Ela se limita apenas a excluir os tributos da anterioridade, sem impor qualquer limitação relacionada à motivação da tributação ou mesmo ao uso exclusivamente extrafiscal do imposto. As interpretações ampliativas ou restritivas são sensíveis na medida em que flertam com o temor da atuação desmedida do Judiciário, para mais ou para menos.

Diante da impossibilidade de se denotar uma “prevalência ontológica” arrecadatória ou diretiva/indutora nos tributos, parece-nos ser possível entender que a ressalva do artigo 150, §1º da CF/88 só pode ser aplicada quando o tributo vier a ser utilizado com algum viés deliberadamente extrafiscal. Entretanto, a imposição de rigor elevado quanto à exigência de extrafiscalidade, tal como ocorreria se avançássemos para a prevalência, exclusividade ou vinculação à preservação absoluta da economia ou soberania nos parece entrar na zona cinzenta de apropriação indevida do poder constituinte sobre a qual alertamos linhas acima.

In casu, ainda que não tenha constado na exposição de motivos, o conteúdo indutor pode ser abduzido tanto sob o viés de pura intervenção no domínio econômico quanto da limitação da norma ao óleo bruto, mantendo-se a desoneração do produto refinado, em prestígio ao desenvolvimento.

Para o futuro, precisamos corrigir a fragilidade da regra da ressalva da anterioridade que permitiu a implementação de tributação imediata com forte viés arrecadatório (e que já havia sido utilizada no passado recente quanto ao IOF) para evitar que os contribuintes sofram com falta de fair play.

A medida surpreendeu a iniciativa privada, mas nenhuma regra vigente foi desrespeitada. O Poder Executivo se valeu de um instrumento de controle de fronteira para a promoção de um desígnio arrecadatório, e o drible à anterioridade, ao seguir o roteiro formalista da legalidade “step by step”, tão criticado em planejamentos tributários considerados agressivos, possibilitou o gol amargo de empate.

[1] A título de exemplo, as decisões nos Mandados de Segurança 5014114-78.2023.4.02.5101 (Dommo Energia); 5014108-71.2023.4.02.5101 (Petro Rio) e 5015567-11.2023.4.02.5101 (Equinor, Petrogal, Repsol, Shell e Total).

[2] SCHOUERI, Luís Eduardo, Normas tributárias indutoras e intervenção econômica, 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2005. p. 50.

[3] BEVILACQUA, Lucas. Incentivos fiscais às exportações – desoneração da tributação indireta na cadeia exportadora e concorrência fiscal internacional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, passim.

Leonardo Branco, Thales Belchior

Leonardo Branco é conselheiro titular e vice-presidente de Turma no Carf, doutorando, mestre e especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP, com estágio doutoral na Westfälische Wilhelms-Universität (WWU-Münster) como bolsista DAAD, coordenador do curso "Direito Aduaneiro e Tributação do Comércio internacional" no IBDT e do curso "Tributação do Mercado Financeiro e de Capitais" no IBDT e na Apet, professor de Direito Tributário e Aduaneiro no IBDT, Ibet, FGV, FIA, Fipecafi, Inova e IDP (pós-graduação) e FK-Partners (exame CFP). Pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV-Direito/SP.

Thales Belchior é membro da Comissão de Política Fiscal e Proteção aos Contribuintes da OAB-RJ, especialista em Direito Tributário pela FGV/Direito-RJ, professor de Direito Tributário e Aduaneiro convidado na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj) e advogado especializado em Direito Aduaneiro.

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