Empréstimos compulsórios não são tributos, são empréstimos
Fernando Facury Scaff
Existem temas que são quase um tabu, em face da esmagadora concordância da doutrina e da jurisprudência sobre seu entendimento. Debater o assunto se torna mais exótico quando se verifica que não é objeto de aplicação prática há mais de 36 anos — que me lembre, foi em 1986 a última vez que foi aplicado no Brasil, durante o Plano Cruzado (Decreto-lei 2288/86), embora tenha havido certa discussão durante o Plano Collor, envolvendo o bloqueio de cruzados novos (Medida Provisória 168, de 15/03/90). O tema diz respeito aos empréstimos compulsórios, previstos no artigo 148 da Constituição de 1988, e que felizmente andam esquecidos pelo governo federal — espero que assim permaneçam.
Essa introdução é apenas para dizer que cometerei a ousadia de discordar da esmagadora maioria da doutrina sobre o tema, arriscando-me a tomar umas pauladas doutrinárias dos amigos — mas assim é a vida. Não pretendo convencer a ninguém, apenas expor o assunto sob meu ponto de vista.
Não discutirei se a classificação das espécies tributárias é dupla (impostos e taxas), tripla (acrescendo as contribuições de melhoria), quadrupla (incluindo as contribuições), quíntupla (somando os empréstimos compulsórios) ou as diversas variações existentes, que tanto empolgam os colegas tributaristas. Vou me cingir apenas a discutir a natureza jurídica dos empréstimos compulsórios.
Como é conhecido por todos, os empréstimos compulsórios se caracterizam por serem um instituto pelo qual a União, através de lei complementar, estabelece uma cobrança compulsória, para atender a uma de duas finalidades específicas: 1) ou para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; 2) ou para investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional. Entendo não ter sido recepcionada pela CF/88 a hipótese prevista no CTN, artigo 15, III, associada à “conjuntura que exija absorção temporária de poder aquisitivo”. Em qualquer dos casos, a aplicação desses recursos será sempre vinculada à despesa que fundamentou sua instituição.
Os empréstimos compulsórios, são, como o nome indica, empréstimos que o governo obtém dos contribuintes de forma compulsória, cujo valor necessariamente deve ser devolvido na forma que vier a ser estabelecida pela lei complementar que o instituir, sendo necessário que tal norma determine o prazo do empréstimo e as condições de seu resgate (CTN, artigo 15, parágrafo único). Parece óbvio que, sendo o empréstimo obtido pela União em dinheiro, deve ser pago também em dinheiro, corrigido e acrescido de juros.
Dito isso, deve-se dividir em dois momentos distintos essa operação de empréstimo, como é feito com qualquer outra semelhante: a débito e a crédito. Na instituição do empréstimo ocorre o débito sobre os contribuintes, sendo que surge ao mesmo tempo um crédito para estes, aguardando sua devolução/pagamento. Para o governo federal a operação é a mesma, com os sinais trocados, pois esta se encontra no outro polo da relação creditícia.
Aqui reside a sutileza da distinção que proponho: empréstimo compulsório não “é” tributo, mas, na operação a débito do contribuinte (e a crédito do Fisco), “se aplicam” as normas tributárias. Observem que uma coisa é dizer que algo “é”; outra coisa é dizer que tais ou quais normas “se aplicam” a esse algo — aqui reside a diferença que busco salientar: à operação de arrecadar empréstimos compulsórios se aplicam as normas de direito tributário, mas, em sua essência, empréstimos compulsórios não são tributos.
O atento leitor ou leitora certamente usará o artigo 4º do CTN para me contraditar, pois nele consta que “a natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la 1) a denominação e demais características formais adotadas pela lei, e 2) a destinação legal do produto da sua arrecadação”.
Tal argumento não altera em nada a exposição acima, pois a natureza jurídica dos empréstimos compulsórios é composta por duas partes, uma a débito e outra a crédito, e afirmo que “se aplicam” as regras de direito tributário à primeira parte dessa operação, a que retira dinheiro do contribuinte para o Fisco por empréstimo — afinal, não esqueçamos, trata-se de uma operação de empréstimo, embora compulsória. Logo, nessa primeira fase, em que o dinheiro sai do bolso do contribuinte em direção aos cofres públicos, “são aplicadas” as regras tributárias protetivas aos contribuintes. Todavia, na segunda fase, em que o dinheiro sairá dos cofres públicos, as regras aplicáveis serão outras, de direito financeiro.
É extremamente importante considerar que o instituto “empréstimo compulsório” é uno, embora constituído necessariamente de duas operações: a débito e a crédito. Jamais se poderá imaginar um empréstimo dessa natureza que apenas debite do contribuinte, sem estabelecer a forma pela qual ocorrerá sua devolução à crédito do mesmo contribuinte. Se a devolução não ocorrer, poderá o Fisco ser processado judicialmente para que realize o pagamento, ocasião em que o contribuinte se tornará credor do Fisco, e não seu devedor (ou seja, deixou de ser contribuinte, isto é, aquele indivíduo que contribui, mas se tornará credor do Fisco, o qual estará inadimplente).
Apenas para marcar a diferença: tributos acarretam operações apenas a débito para os contribuintes, jamais a crédito, porém, é da natureza jurídica dos empréstimos compulsórios a necessária existência de duas operações: a débito e a crédito, pois tais empréstimos não se caracterizam como receita pública, mas como ingressos que devem ser devolvidos e remunerados. Receita pública são os tributos.
Visando afastar mal-entendidos, reitero que a distinção que exponho é sutil, e não afasta nem um milímetro as garantias tributárias dos contribuintes que vierem a ser objeto de empréstimos compulsórios, mas contesta a natureza jurídica dessa operação complexa como sendo integralmente tributária, uma vez que é composta por partidas dobradas — a débito e a crédito.
Pode-se até dizer que a primeira parte da operação de empréstimo compulsório “é” tributo, mas isso cindirá o incindível, motivo pelo qual opto por afirmar que sobre essa primeira parte “aplicam-se” as normas de direito tributário, embora não sejam aplicadas na segunda parte, que obriga sua devolução. Cindir essa operação será dizer que o direito tributário não está no mundo, mas apenas em laboratórios que isolam os fenômenos jurídicos em partes que são dissecadas para caber em lâminas de microscópio — ocorre que o direito tributário faz parte do direito, e está no mundo.
Peço desculpas ao caro leitor ou leitora que acompanhou a exposição até aqui, pois, na verdade, o que se está discutindo nesta coluna é quase que o “sexo dos anjos” ou uma “ponta de lenço” doutrinária — mas é inegável que esta posição diverge da esmagadora maioria dos qualificados e queridos amigos doutrinadores desta matéria.
Fernando Facury Scaff
professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.