Empresas podem recuperar tributos exigidos de elétricas e telefônicas
Diego Caldas Rivas de Simone e Fernanda Ramos Pazello
Por Diego Caldas Rivas de Simone e Fernanda Ramos Pazello
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresentou no dia 3 de março parecer favorável aos contribuintes nos autos do RE 714.139/SC em que se discute, em sede de repercussão geral, a constitucionalidade da previsão de alíquotas de ICMS para serviços de energia elétrica e telecomunicações superior às alíquotas gerais usualmente aplicadas (que, normalmente, são estabelecidas em 17 ou 18%, conforme o Estado), notadamente em face do princípio da seletividade.
A esse respeito, é inicialmente importante notar que o princípio constitucional da seletividade exige a distinção de cargas tributárias em função da essencialidade do produto. Embora a seletividade possa ser alcançada mediante o emprego da quaisquer técnicas de alteração quantitativa da carga tributária (sistema de alíquotas diferenciadas, variações da base de cálculo etc.), o objetivo constitucional é mais facilmente atingido por intermédio da manipulação de alíquotas, motivo pelo qual as alíquotas do IPI e do ICMS deverão variar, para mais ou para menos, em razão da essencialidade dos produtos.
Enquanto a imperatividade do princípio da seletividade para o IPI não encontra maiores dissonâncias na doutrina e jurisprudência, dada a redação cogente da Constituição Federal a esse respeito (artigo 153, § 3º, inciso I, da CF: o IPI “será seletivo, em função da essencialidade do produto”), a sua aplicabilidade ao ICMS sempre foi objeto de acaloradas discussões, especialmente considerando a aparente facultatividade indicada pelo artigo 155, § 2º, inciso III, da CF quanto à sua aplicação (o ICMS “poderá ser seletivo, em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços”).
No entanto, vozes de peso no cenário tributário brasileiro sempre defenderam que a indicação constitucional ao “poderá” equivaleria, na verdade, a um peremptório “deverá”, de modo que o princípio da seletividade seria, também no campo do ICMS, de observância obrigatória pelo legislador (entre outros, CARRAZZA, Roque. ICMS, pp. 322 e 323).
Ignorando esse entendimento e valendo-se da ambígua redação constitucional, ao longo dos anos os Estados da federação estabeleceram a carga tributária do ICMS sem considerar o princípio da seletividade, gerando distorções nas alíquotas do imposto estadual que permitiram a tributação de produtos essenciais (energia elétrica, telecomunicações, produtos da cesta básica etc) em patamares superiores à tributação de produtos considerados supérfluos. Tal prática, no entanto, pode estar com os dias contados.
Enquanto se aguarda o desfecho do julgamento do RE 714.139/SC, que deverá apresentar posicionamento definitivo do STF sobre o tema, é relevante notar que no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 634.457/RJ, em agosto de 2014, a Segunda Turma do STF concluiu que a aplicação da alíquota de 25% de ICMS para o fornecimento de energia elétrica e serviço de telecomunicação pelo Estado do Rio de Janeiro ofenderia o princípio da seletividade.
Naquela ocasião, restou reconhecido à unanimidade que “não obstante a possibilidade de instituição de alíquotas diferenciadas, tem-se que a capacidade tributária do contribuinte impõe a observância do princípio da seletividade como medida obrigatória, evitando-se, mediante a aferição feita pelo método da comparação, a incidência de alíquotas exorbitantes em serviços essenciais”. Na hipótese, comparou-se a alíquota incidente sobre o fornecimento de energia elétrica e comunicação (25%) às alíquotas aplicadas para serviços de transporte e distribuição de alimentos (12%) e concluiu-se que, em sendo serviços relacionados à dignidade humana, seria inconstitucional a incidência da alíquota de 25% sobre tais serviços. A ação transitou em julgado em setembro de 2014.
Tal decisão, que contou com o voto favorável de todos os Ministros que participaram do julgamento na Segunda Turma (Ministros Teori Zavaski, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Carmen Lúcia), além de indicar o entendimento de 5 dos 11 ministros que deverão julgar o RE 714.139/SC, representa importante precedente no sentido de que a seletividade é de caráter cogente também no campo do ICMS e que, portanto, não se podem admitir a aplicação de alíquotas superiores para produtos essenciais.
Caminho semelhante seguiu o procurador-geral da República em seu parecer no RE 714.139/SC, indicando a necessidade imperiosa de estipulação das alíquotas de ICMS de acordo com a essencialidade, o que culmina com a inconstitucionalidade das alíquotas de ICMS aplicadas sobre energia elétrica e telecomunicações em alguns Estados (a depender de análise específica).
Ademais, além do argumento de que o princípio da seletividade não seria obrigatório no campo do ICMS (posição que, como vimos, não foi acolhida pela Corte Suprema ao avaliar o tema), é importante registrar que os Estados buscam indicar dois outros óbices para tentar obstar a pretensão dos contribuintes, quais sejam, (i) a alegada impossibilidade de o judiciário estabelecer outras alíquotas após a declaração de inconstitucionalidade, sob pena de estar legislando positivamente; e (ii) a inviabilidade de restituição dos valores indevidamente pagos pelos contribuintes com base na alíquota superior, na medida em que o contribuinte de direito deveria respeitar o disposto no artigo 166 do CTN (o que inviabiliza, na prática, a restituição) e o contribuinte de fato (consumidor final) não estaria legitimado a requerer a repetição.
Quanto ao suposto primeiro óbice, o procurador-geral da República corretamente indicou em seu parecer que“eliminada a regra especial que estipula alíquota majorada para energia elétrica e telecomunicações, tem-se que o ICMS de ambas cairá automaticamente na regra geral do Estado-membro (hoje sob alíquota de 17%).”
Isso porque o próprio STF já reconheceu em diversas oportunidades a possibilidade de o Judiciário atuar mediante um juízo de exclusão, visando expurgar do direito positivo as normas que não encontrem correspondência com os preceitos constitucionais, o que o legitima, por exemplo, para afastar as alíquotas baseada em critério estranho ao constitucionalmente previsto (capacidade X essencialidade) e, como consequência, determinar a aplicação das alíquotas gerais estipuladas na legislação. Ao assim proceder, o Judiciário estará operando negativamente (e não positivamente) para adequar a Lei à CF.
Por sua vez, no que se refere à suposta (e improcedente) alegação de que a restituição dos valores indevidamente recolhidos não seria possível, vale lembrar que embora a regra geral seja de que o contribuinte de fato não possui legitimidade para requerer a repetição do indébito, a jurisprudência já reconheceu que, no caso que envolve concessão de serviço público, tal restrição seria inaplicável em razão da relação existente entre o Estado-concedente, a concessionária e o consumidor.
Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de afirmar – em sede de recurso repetitivo e em situação em tudo e por tudo análoga à presente, envolvendo a incidência do ICMS sobre demanda contratada e não utilizada – que, nesta situação, o consumidor final, na condição de contribuinte de fato, teria legitimidade para discutir a incidência e requerer a repetição de indébito do ICMS incidente sobre energia elétrica (RESP 1.299.303/SC).
Sendo assim, diante do cenário favorável descrito acima, entendemos que há boas chances de as empresas, na condição de contribuintes de fato, obterem êxito em discussão judicial questionando a alíquota majorada que é exigida por alguns Estados de concessionárias de energia ou empresas de serviço de telecomunicação, na condição de contribuinte de direito, para (i) recuperar os valores indevidamente recolhidos nos últimos 5 (cinco) anos; e (ii) não se sujeitar a esta alíquota para os fatos geradores futuros. Revista Consultor Jurídico
Diego Caldas Rivas de Simone e Fernanda Ramos Pazello
Diego Caldas Rivas de Simone é associado da área Tributária de Pinheiro Neto Advogados.
Fernanda Ramos Pazello é advogada da área tributária do Pinheiro Neto Advogados.