Desmistificando e desmitificando o Carf
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira e Mariel Orsi Gameiro
Nesses poucos dias de um ano cujos acontecimentos — para o bem e para o mal — receberam destaque na história deste país, ganhou o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) reflexa luz dos holofotes. Nesta coluna, diversamente do que sói ocorrer, não cotejaremos precedentes do Tribunal Administrativo, e sim o abordaremos numa perspectiva histórico-institucional, especialmente quanto a sua basilar prerrogativa e alterações relativas ao voto de qualidade. Daremos dois passos atrás para, oxalá, andar um para frente.
Muito salutar para uma nação que se pretenda deveras republicana que conheçam os administrados não só os órgãos que compõem a estrutura de cada um dos Poderes, como também suas respectivas formas de atuação. Justamente por isso, necessário que enfrentemos a difícil tarefa de desmistificar e desmitificar o órgão responsável pelo julgamento em segunda instância de todo o contencioso administrativo fiscal federal.
Embora as expressões eleitas pareçam sinônimas, até mesmo porque exibem grafia quase idêntica, não o são. Ambas, entretanto, por ostentarem o prefixo latino des-, denotam o desfazimento de algo. Se é verdade que toda reconstrução é precedida de uma desconstrução, parece ser bem este o caminho a ser trilhado. O verbo desmistificar carrega como significado desmascarar, aclarar uma situação repleta de mistérios; por outro lado, desmitificar é retirar o caráter de mito atribuído a algo ou a alguém.
No próximo dia 14 de setembro, o Carf, órgão que sucedeu os antigos Conselhos de Contribuintes, completará 98 anos de história, sendo responsável por realizar o controle de legalidade do lançamento tributário. Ou seja, ao Carf cabe averiguar a conformidade da autuação com a legislação aplicável, não gozando de competência para declarar a ilegalidade ou a inconstitucionalidade da lei, tarefa esta atribuída exclusivamente ao Poder Judiciário [1].
Do artigo 1º do Anexo I do Regimento Interno do Carf (RICarf), extraímos que “o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) (…) tem por finalidade julgar recursos de ofício e voluntário de decisão de 1ª (primeira) instância, bem como os recursos de natureza especial, que versem sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB)”. O Carf, portanto, embora integre a estrutura do Ministério da Fazenda, desempenha atípica função judicante.
Urge desmistificar a atribuição de uma suposta finalidade arrecadatória ao Carf. Quando uma julgadora (esteja ela em âmbito administrativo, esteja ela na seara judicial) analisa um auto de infração podem ocorrer as seguintes situações: 1) o lançamento ser considerado procedente, mantendo-se a integralidade da exigência tributária; 2) a exigência fiscal ser tida como parcialmente procedente, permanecendo incólume apenas uma fração do crédito tributário; ou, 3) o lançamento ser declarado insubsistente, com o afastamento da integralidade da exigência tributária. Ora, o fato de a julgadora aferir a (in)subsistência do lançamento, decidindo, em última análise, sobre se verterá ou não dinheiro aos cofres públicos, não a torna uma autoridade fazendária [2].
O RICarf determina, no inciso I do seu artigo 41, serem deveres dos conselheiros, dentre outros, “exercer sua função pautando-se por padrões éticos, no que diz respeito à imparcialidade, integridade, moralidade e decoro, com vistas à obtenção do respeito e da confiança da sociedade”. Portanto, quando uma auditora fiscal deixa seu posto na Receita Federal e passa integrar os quadros do Carf, há que se desincumbir da tarefa de obter recursos financeiros ao Estado, passando a desempenhar, com imparcialidade, seu papel de julgadora. Sob uma perspectiva institucional, é essa a atuação que o Carf espera de suas conselheiras e de seus conselheiros, sejam eles servidores da Receita Federal, sejam eles indicados pelas entidades sindicais e confederações patronais que têm assento no órgão.
Da leitura do RICarf é possível extrair elementos para livrar de mistificação suposta discrepância entre precedentes emanados do Carf e aqueles proferidos pelos tribunais pátrios. Como dito, o escopo de atuação do Carf é infinitamente mais limitado do que o do Poder Judiciário, porquanto não se pode, em esfera administrativa, afastar lei com base em argumentos de ilegalidade e de inconstitucionalidade.
Tal vedação é excepcionada em algumas hipóteses, todas trazidas no artigo 62 do RICarf, que, em suma, versam sobre declarações de inconstitucionalidade em decisão definitiva proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, súmulas vinculantes, teses firmadas sob a sistemática de recursos repetitivos, bem como no caso de dispensa legal de constituição ou ato declaratório da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, parecer do advogado-geral da União aprovado pelo presidente da República e súmula da Advocacia-Geral da União.
Destacamos ainda que o §2º do artigo 62 do RICarf impõe aos seus conselheiros e às suas conselheiras a reprodução das decisões definitivas de mérito, proferidas tanto pelo Supremo Tribunal Federal quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, quando firmadas na apreciação de recursos extraordinário e especial repetitivos. A sanção aplicada em caso de inobservância do disposto no artigo 62 do RICarf é das mais graves: a perda de mandato — ex vi do inciso VI do artigo 45 do RICarf. Torna-se, dessa forma, remota, para não dizer impossível — exceto pelo exercício do distinguishing —, o julgamento contrário às teses tributárias judicialmente sedimentadas naqueles termos, tão menos a utilização de quaisquer critérios de desempate para sua reversão em âmbito administrativo.
Se até o momento tratamos de mistificações, chegada a hora de, sem a intenção de exaurir a temática, tecermos algumas linhas sobre o que nos parece ter sido alçado à categoria de mito: o impacto do critério de desempate adotado no Carf. Antes disso, façamos uma brevíssima digressão histórico-comparativa.
O Carf, como já pontuamos, é órgão quase secular. Isso, contudo, não o isenta de receber críticas, tampouco aprimoramentos. O modelo de composição paritária, inicialmente previsto no Decreto nº 20.305/1931, que perdura até o momento, de fato, não guarda similaridade com o paradigma de nenhum outro país. Tal constatação, por si só, não significa ser o formato aqui edificado equivocado, tampouco atenta para a realidade além-mar na fase pré-contenciosa, que é bastante diversa da brasileira, conforme sinaliza minudente estudo realizado por pesquisadores do Núcleo de Tributação do Insper (aqui, aqui e aqui) [3]. De bom alvitre lembrar que transplantes acríticos de normas e modelos costumam apresentar falhas, caso não sejam levadas em consideração as particularidades de cada jurisdição.
Como já alertamos (aqui), vez e outra contada a lenda de que a primeira e a segunda instâncias do contencioso administrativo federal apenas replicariam os achados das autoridades fiscalizadoras, falhando ainda em resguardar os princípios da ampla defesa e do contraditório. O Tribunal de Contas da União, ao analisar o período compreendido entre 2012 e 2019, anterior à modificação da regra de desempate estabelecida pela Lei nº 13.988/20, demonstrou que “em termos quantitativos, 47% das autuações tributárias objeto de litígio foram canceladas total ou parcialmente nas DRJ e 45%, no Carf” [4].
As disputas se acirraram com a controversa alteração do critério de desempate em 2020: se antes quem dava o voto de minerva era o presidente de cada Turma, cadeira sempre ocupada por julgadora oriunda dos quadros da Receita Federal, até o dia 12 de janeiro p.p. a resolução do impasse se dava a priori em desfavor da Fazenda Pública [5].
Contra a modificação do critério de desempate favorável aos contribuintes interpostas três ações diretas de inconstitucionalidade [6]. A despeito de já se ter formado maioria no Supremo Tribunal Federal pela constitucionalidade da norma, superando-se até mesmo as alegações de vício de natureza formal, o julgamento ainda não teve seu fim. A excrescência causada pelo desempate pró-contribuinte é o que parece, inclusive, ter motivado o ministro Barroso propor a tese de que, malgrado constitucional a extinção do voto de qualidade do presidente das turmas julgadoras do Carf, no caso de empate em decisão favorável ao contribuinte, poderia a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário.
Ora, a atividade exercida pelos órgãos julgadores em âmbito administrativo, por ser função atípica, não pode ser confundida com a atividade judicante. Por ser o Carf um revisor de atos administrativos, em franca manifestação do exercício do poder de autotutela estatal, deve o processo administrativo fiscal guardar compatibilidade com a presunção dos atos administrativos, vedando que, em caso de afastamento do lançamento pela Carf, possa a Fazenda Pública socorrer ao Poder Judiciário. Daí o porquê de o critério de desempate pró-contribuinte ter deturpado a lógica do contencioso administrativo fiscal federal.
Como já antecipado em coluna (aqui) escrita em coautoria pelos colegas CARLOS AUGUSTO DANIEL e DIEGO DINIZ RIBEIRO, “[a] defesa da existência do voto de qualidade, por outro lado, não significa que o processo administrativo-fiscal federal não necessite de ajustes: o que se critica aqui é uma alteração isolada e oportunista que deturpa todo um sistema existente há quase 90 anos, ao invés de um debate democrático, técnico e dialético, essencial para mudanças coerentes e vocacionadas a se perpetuarem”.
Em que pese o restabelecimento do voto de qualidade pela Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023 melhor se coadunar com a estrutura do processo administrativo fiscal em terras brasileiras, mitos ainda o circundam.
A análise dos dados fornecidos pelo próprio Conselho fragiliza as fábulas sobre a determinabilidade da aplicação dos critérios de desempate para a definição do resultado do julgamento [7]. Nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 foram decididos pelo voto de qualidade 7,2%, 6,8%, 5,3% e 1,9% dos casos, respectivamente. Além de baixo o percentual, sequer possível precisar se o desempate foi contra ou a favor do contribuinte. O presidente de Turma, no exercício de sua imparcialidade, não tem qualquer impedimento para desempatar em prol do provimento do recurso apresentado pelo autuado. A título exemplificativo, confira-se os seguintes julgados, todos proferidos pelo Carf no período acima mencionado, em que dado provimento ao recurso voluntário pelo voto de qualidade: Acórdãos nºs 2001-000.799, 2001-000.965, 2001-000.562, 2002-003.742, 3301-000.742, 1301-004.759, 1402-003.829, 2202-005.728 [8].
Registramos que, no banco de dados disponibilizado pelo Carf, tampouco é possível saber qual o valor dos créditos tributários mantidos pela aplicação do voto de qualidade. Acostada à ADI nº 6.415, que sustenta a inconstitucionalidade da lei que pôs fim ao voto de qualidade, consta uma série de esclarecimentos oferecidos pelo Serviço de Informações ao Cidadão do antigo Ministério da Economia. Quando indagado qual seria o valor do crédito tributário e quantitativo de processos decididos pelo voto de qualidade no Carf nos últimos três anos, respondido o seguinte:
“Nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020 (até março) foram julgados, por voto de qualidade, 4026 recursos, correspondente a R$ 248.093.219.299,54. Vale ressaltar que os créditos tributários informados acima correspondem ao valor total cadastrado no processo, não significando, portanto, valores mantidos ou exonerados, haja vista que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais — CARF não liquida decisões. Em virtude do acima exposto, e pelo fato de a votação ser por recurso, o valor total do processo foi utilizado por cada recurso cuja votação tenha sido por qualidade.”
No que tange aos processos decididos pelo critério de desempate pró-contribuinte, o percentual é ainda menor: 0,4%, 1,6% e 1,9%, em cada ano de sua vigência. Tampouco existem dados oficiais disponibilizados acerca do montante exonerado e estudos que apontem como formado o empate — teriam todos os “conselheiros dos contribuintes” votado pelo cancelamento da autuação e todos os “conselheiros fazendários” pela manutenção da exigência? Ou parte dos “conselheiros dos contribuintes” se convenceram pela higidez da cobrança e parcela dos “conselheiros fazendários” não? São perguntas carentes de respostas.
A despeito das espinhosas dúvidas, além dos necessários ajustes à utopia do modelo ideal de um tribunal administrativo federal tributário, nesses tempos de mudança é essencial desmistificar — e também desmitificar — o papel e a forma de atuação do Carf. Mirando para o futuro, chegada a hora de reconstruir, unificar, dinamizar e modernizar o processo administrativo fiscal [9]. Os novos ventos são mais do que aguardados e bem-vindos. Só há de se acautelar para “não jogar fora o bebê junto com a água do banho”.
Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
[1] O Carf editou súmula, a de nº 02, justamente para asseverar que “não é competente para se pronunciar sobre a inconstitucionalidade de lei tributária”. Em mesmo sentido, o art. 62 do RICarf prevê que “fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade”.
[2] Vale advertir que, com o término do contencioso administrativo, não vertem os recursos automaticamente ao erário, eis que dependerá do adimplemento voluntário do contribuinte administrativamente derrotado ou de um processo de cobrança judicial que seja eficaz.
[3] Prestamos agradecimentos ao integrante do grupo de pesquisadores do Insper, professor Breno Vasconcelos, pelo compartilhamento de informações e documentos imprescindíveis para a elaboração desta coluna.
[4] Cf. Acórdão nº 336/2021 do TCU.
[5] Cf. Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023.
[6] Cf. ADIs nºs 6.399, 6.403 e 6.415.
[7] Os Dados Abertos do Carf podem ser consultados em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/dados-abertos-202212-final.pdf. Acesso em: 17 jan. 2023.
[8] São inúmeros acórdãos, o que inviabiliza a transcrição. Foi utilizado como parâmetro de pesquisa “voto de qualidade” e “dar provimento ao recurso voluntário”, aplicando-se o filtro correspondente aos julgados proferidos nos anos de 2017, 2018, 2019 e 2020. Disponível em: https://acordaos.economia.gov.br/solr/acordaos2/browse/. Acesso em: 17 jan. 2023.
[9] Calha mencionar, nesse sentido, a atuação da Subcomissão de Processo Administrativo, órgão fracionário da Comissão de Juristas presidida pela ministra Regina Helena Costa, bem como da Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, encabeçada pela professora Misabel Abreu Machado Derzi.
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira e Mariel Orsi Gameiro
Ludmila Mara Monteiro de Oliveira é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University, conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.
Mariel Orsi Gameiro é conselheira do Carf, professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e graduação, responsável executiva do GT de Direito Aduaneiro da FGV-SP, mestre em medicina pela Unesp e doutoranda em Direito Tributário na UFMG.