Delação premiada não serve de fundamento para autuação tributária

Igor Mauler Santiago

Por Igor Mauler Santiago

“De boca já disse tudo
quanto soube e imaginava.”
(Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência)

Onipresente na prática judiciária, na doutrina e na imprensa, a delação premiada, vigente entre nós há menos de cinco anos, ainda é causa de perplexidade em vários aspectos: autoridade competente para a celebração, causas de rescisão, aproveitamento das declarações em tal hipótese, relação com os acordos de leniência, validade da prisão preventiva como meio para a sua obtenção, suficiência para justificar o recebimento de denúncia, etc.

Os seus reflexos chegaram ao campo tributário. De fato, a Receita Federal tem autuado os delatados para exigir-lhes IRPF sobre as quantias que os delatores afirmam ter-lhes repassado ou ter movimentado em seu nome. O exame da validade dessas autuações pressupõe um breve estudo do instituto no Direito Penal, seu ramo de origem.

Naquilo em que aponta para terceiros, a delação premiada não é confissão, porque esta alude a atos próprios, e tampouco testemunho, pois este deve proceder “de um terceiro alheio ao objeto do processo, e não de quem é um imputado nele e, portanto, sujeito interessado”[1]. No mesmo sentido, afirma o ministro Roberto Barroso que “os delatores premiados, como as pessoas em geral, movem-se estrategicamente e fazem afirmações que atendam, muitas vezes, suas próprias circunstâncias e não a busca da verdade[2].

Isso se revela ainda mais verdadeiro quando se leva em conta o desalento em que normalmente se encontra o indivíduo que recorre à delação: iminência ou estado de persecução criminal e/ou de encarceramento. Donde a qualificação da delação premiada, não como um meio de prova, mas como um meio de obtenção de prova (Lei 12.850/2013, artigo 3º, inciso I).

A diferença, segundo Gustavo Badaró, está em que “os meios de prova são aptos a servir, diretamente, ao convencimento do juiz sobre a veracidade ou não de uma afirmação fática (por exemplo, o depoimento de uma testemunha, ou o teor de uma escritura pública)”, ao passo que “os meios de obtenção de provas (por exemplo, uma busca e apreensão) são instrumentos para a colheita de elementos ou fontes de provas, estes, sim, aptos a convencer o julgador”[3].

Bem por isso, a Lei 12.850/2013 é categórica ao afirmar que “nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador” (artigo 4º, parágrafo 16), exigindo-se a sua confirmação por provas externas à delação. Isso também o que impõe o STF[4].

Essa, aliás, a razão pela qual não se reconhecem ao delatado interesse ou legitimidade para pleitear a nulidade do acordo que o menciona. Trata-se de negócio jurídico processual que, por si mesmo, só gera efeitos para quem o assinou.

Efeitos para o delatado só surgirão após a comprovação autônoma dos fatos que lhe digam respeito, em autos onde, “no exercício do contraditório”, poderá “confrontar, em juízo, as declarações do colaborador e as provas por ele indicadas, bem como impugnar, a qualquer tempo, as medidas restritivas de direitos fundamentais eventualmente adotadas em seu desfavor”[5].

As premissas acima – falta de neutralidade do delator, natureza do instituto como simples meio para a obtenção de provas e sua ineficácia contra terceiros – e a conclusão a que conduzem (imprescindibilidade de provas externas e robustas para a prolação de um juízo desfavorável) aplicam-se a todos os campos onde se queiram aproveitar os efeitos da delação premiada, inclusive no tributário, onde é lícito afirmar que esta justifica a abertura da fiscalização, mas não basta para fundamentar o lançamento.

Embora não trate de delação premiada, tem perfeita aplicação ao instituto a antiga jurisprudência segundo a qual “qualquer lançamento ou multa, com fundamento apenas em dúvida ou suspeição é nulo, pois não se pode presumir a fraude”[6]; “o lançamento tributário não pode se basear em simples indícios”, os quais devem ser confirmados “por provas eficazes”[7]; e “a atividade do lançamento tributário é plenamente vinculada e não comporta incertezas” á vista das quais “a exigência não pode prosperar”[8].

A solução seria igual ainda que, contra a lei e a jurisprudência, a delação fosse qualificada com prova. De fato, tratar-se-ia de prova emprestada, a qual – por força do contraditório – só é válida quando o processo de origem tem por parte o sujeito contra o qual ela será usada.

Segundo o STF, “a prova emprestada utilizada sem o devido contraditório (…) é vedada pelo art. 5º, LV e LVI, da Constituição”, constituindo “prova ilícita”[9]. Também o Carf condiciona a validade de auto de infração fundado em prova emprestada a “i) que a prova tenha sido originalmente produzida sob o crivo do contraditório; e ii) que o sujeito passivo da obrigação tributária, cujos interesses são postos em análise pela prova emprestada no processo administrativo, tenha participado do referido contraditório original, ou seja, seja parte no processo do qual a prova foi trasladada”[10].

Anote-se, por fim, que não servem para corroborar as declarações constantes de delação premiada (a lista, exemplificativa, decorre do que temos visto em autuações fiscais baseadas em delações):

● outras delações premiadas: na lição do ministro Celso de Mello, “o Estado não poderá utilizar-se da denominada ‘corroboração recíproca ou cruzada’, ou seja, também não poderá impor condenação ao réu pelo fato de contra este existir, unicamente, depoimento de agente colaborador que tenha sido confirmado, tão somente, por outros delatores”[11];

● condenações de terceiros em razão dos fatos delatados: como já visto, garante-se ao delatado contestar pessoalmente em juízo os fatos descritos pelo delator, mesmo porque o artigo 504 do CPC, aplicável por analogia ao processo penal, evidencia que os fatos reconhecidos como verdadeiros em um processo podem ser rediscutidos em outro, com conclusão distinta[12];

● inquéritos ou ações penais contra o delatado: a simples existência dos procedimentos destinados à verificação dos fatos delatados não constitui prova da ocorrência destes, por imperativo lógico insuperável;

● documentos unilaterais produzidos pelo delator: como adverte o ministro Dias Toffoli, “se o depoimento do colaborador necessita ser corroborado por fontes diversas de prova, evidente que uma anotação particular dele próprio emanada não pode servir, por si só, de instrumento de validação”[13];

● declarações de terceiros colhidas sem contraditório (“circularização”): a prova testemunhal só tem validade quando produzida em contraditório (CPP, artigos 202 a 225; CPC, artigos 442 a 463). Bem por isso a Câmara Superior de Recursos Fiscais entende que “não prevalece o auto de infração baseado unicamente em prova testemunhal produzida na fase de inquérito policial”[14];

● depósitos em dinheiro na conta bancária do delatado ou de pessoas a ele ligadas, ainda que não explicados, quando de valor ínfimo face às quantias supostamente recebidas ou anteriores aos fatos narrados na delação (o que, por incrível que pareça, já ocorreu). Oportuno lembrar que na semana passada a 2ª Turma do STF absolveu, por falta de provas, parlamentar acusado em delação de ter recebido R$ 4 milhões em espécie (embora o tenha condenado por outros fatos)[15];

● infrações fiscais atribuídas ao delatado, quando não conducentes a um cenário de lavagem de dinheiro (isto é, de simulação de uma origem lícita para os valores ilícitos supostamente movimentados).

Esses elementos, descritos com tintas fortes e entrelaçados com habilidade, mascaram a inanidade das autuações, que continuam baseadas na palavra do delator. Isso sem falar que mesmo esta é tomada de forma seletiva pela Receita, que dá por provado o recebimento dos recursos, mas despreza a afirmação do mesmo delator – quando é o caso – de que estes constituíram doação eleitoral. Não contabilizada, é certo (a dar-se crédito irrestrito ao teor da delação, como quer o Fisco), mas nem por isso menos infensa ao imposto de renda das pessoas físicas.

Não surpreenderá se essas autuações, acaso referendadas pelo Carf, forem apresentadas em ações penais como corroborações externas das delações que justificaram o recebimento das denúncias, num moto contínuo cujo impulso inicial e único são as acusações – quiçá verdadeiras, quiçá não – feitas por criminosos confessos.

O contexto faz lembrar a insistente advertência de Lenio Streck – antecipada na seara tributária por Alberto Xavier – de que os agentes públicos não podem agir estrategicamente, comportando-se como partes que buscam vencer a todo custo (ou os seus poderes seriam privilégios odiosos), pois o seu único compromisso é com a aplicação impessoal da lei.

* Esta coluna foi produzida com a colaboração de Marco Antonio Cintra Gouveia.

[1] Manuel Quintanar Díez. La justicia y los denominados “arrepentidos”. Madrid: Edersa, 1996, p. 315.

[2] Voto na QO no Inq. 3.815/SP; STF, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 06.04.2015.

[3] Processo Penal [livro eletrônico]. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, item 10.1.4.

[4] Pleno, AP 465/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 30.10.2014; 1ª Turma, AP 676/MT, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 05.02.2018.

[5] STF, Pleno, HC 127.483/PR, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 03.02.2016; na mesma linha: STJ, 5ª Turma, RHC 69.988/RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, DJe 07.11.2016.

[6] TFR, Apelação Civil nº 24.955, DJ 09.05.69.

[7] CARF, Acórdão 101-95.066, j. 24.09.2005.

[8] CARF, Acórdão 2102-003.100, j. 09.09.2014.

[9] STF, Pleno, Rcl 11.243/Itália, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 05.10.2011.

[10] Acórdão 3402004.290, j. 17.07.2017.

[11] Voto no Inq. 3.982/DF; STF, 2ª Turma, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 05.06.2017.

[12] “Art. 504. Não fazem coisa julgada:
I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;
II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença.”

[13] Ementa do Inq. 3.994/DF (2ª Turma, Rel. para o acórdão Min. Dias Toffoli, DJe 06.04.2018).

[14] CSRF, Acórdão 9202­01.720, j. 28.09.2011.

[15] Ação Penal 966, Rel. Min. Edson Fachin, acórdão ainda não publicado.

Igor Mauler Santiago

Sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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