Decisões judiciais sob o prisma do impacto econômico-financeiro

Kiyoshi HaradaJurista

Para financiar gastos ilegítimos e improdutivos, o governo vem implementando um sistema tributário caótico e inseguro, perseguindo a política de arrecadação a qualquer custo, mesmo que isso implique afastamento de direitos fundamentais e do princípio federativo.

O Sistema Tributário Nacional estruturado no Capítulo I, do Título VI da Constituição Federal de 1988 é o mais perfeito que se conhece no mundo.

Um número infindável de princípios tributários limita o poder tributário do Estado, tanto para instituir tributos, como também para cobrá-los coativamente, por conta dos direitos fundamentais enumerados no art. 5º. Esses direitos fundamentais, por resultarem da soberania popular (parágrafo único, do art. 1º da CF),  acham-se acima do poder político do Estado. E esses direitos não se limitam aos enumerados no art. 5º, pois acham-se espraiados em diversos textos de Constituição. Tudo que representa um “NÃO” contra o poder político do Estado configura direito fundamental protegido por cláusula pétrea (art. 60, § 4º, IV da CF).

Os princípios do devido processo legal em sentido material e processual, bem como o princípio do contraditório e ampla defesa limitam o poder do Estado na cobrança de tributos. E mais, o excesso de exação fiscal configura conduta tipificada § 1º, do art. 316 do Código Penal.

Todos os princípios tributários que são, em sua esmagadora maioria, autoaplicáveis asseguram a segurança jurídica aos contribuintes que se vêm livres de tributos não conformados com a ordem constitucional, afastando, ao mesmo tempo, a sua cobrança por meio de sanções políticas que não obedecem  aos princípios do devido processo legal e do contraditório e ampla defesa.

Contudo, a realidade é bem outra. Temos um Sistema Tributário caótico, complexo e mais  inseguro do mundo, por conta do habitual desprezo ao princípio da hierarquia vertical das leis por legisladores ordinários das três esferas de Poder que despejam diariamente dezenas de instrumentos normativos da mais variada espécie. E não há órgão estatal capaz de fazer cumprir adequadamente  todos os princípios constitucionais tributários proclamados na Carta Magna.

O Judiciário, sempre operando com parcos recursos financeiros, o que ofusca a sua independência, sofre pressões de toda ordem para manter os tributos inconstitucionais, bem como a forma de sua cobrança por meios de sanções políticas, apesar de nada menos que três Súmulas do STF proibindo o seu emprego.

O Executivo, além de ceder seus servidores para cargos comissionados junto aos tribunais superiores,  tem concentrado a sua pressão sobre o Poder Judiciário apregoando aos quatro ventos o perigo de rompimento do equilíbrio financeiro do Estado sempre às vésperas do julgamento de uma ação envolvendo tributos de elevada monta.[1]

Dessa forma, por vias indiretas procura-se responsabilizar o Judiciário pelo desequilíbrio das contas públicas, na verdade, resultante de fantásticos gastos com as despesas de custeio, muitas delas desnecessárias, realizadas de forma a não atender os rígidos princípios orçamentários que presidem a execução do orçamento anual.

Lamentavelmente, apesar de uma parafernália de mecanismos de fiscalização e controle da execução orçamentária, essa fiscalização e controle não estão sendo exercidos efetivamente pelos órgãos competentes.

Não se tem fiscalizado o cumprimento pelo Executivo das três esferas políticas dos dispostos nos artigos 162 e 165, § 3º da CF que exigem, respectivamente,  a apresentação do relatório mensal de toda a arrecadação tributária e o relatório resumido da execução orçamentária bimestral. Se esses relatórios estivessem sendo analisados por órgãos competentes os desvios de verbas não seriam perpetuados, mas corrigidos a tempo pelo emprego de mecanismos legais previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal. De nada adiantará constatar posteriormente, por ocasião do exame das contas anuais, aliás, sempre aprovados por critérios políticos e não técnicos, que metade dos recursos previstos para a educação, a saúde e o transporte, só para citar, não foram utilizados. A essa altura ninguém sabe e nem se descobre onde foram parar a diferenças.

 Outrossim, o controle social ou privado da execução orçamentária introduzida pela Constituição de 1988 depende, de um lado, da observância do princípio da transparência orçamentária mediante disponibilização e divulgação de dados e, de outro lado, do conhecimento das noções básicas do direito orçamentário pelo cidadão.

Para financiar gastos ilegítimos,[2] improdutivos ou desnecessários o governo vem implementando um sistema tributário nebuloso, caótico, dúbio e inseguro, perseguindo a política de arrecadação a qualquer custo, mesmo que isso implique afastamento, não só de direitos fundamentais, como também do princípio federativo.

Por essas razões, a jurisprudência de nossos tribunais em matéria tributária não tem sido  estável, gerando insegurança e perplexidade entre os especialistas desse ramo do Direito. Teses tidas como pacíficas repentinamente passam a sofrer reexames pelos tribunais superiores, sempre a favor do fisco, com raras exceções.

Recentemente, estão sendo discutidas quatro teses, todas elas relacionadas com a contribuição previdenciária. A questão é a de saber definitivamente se essa contribuição social incide sobre: (a) salários maternidade e paternidade; (b) auxílio-doença pago nos primeiros 15 dias; (c) terço constitucional de férias e (d) aviso prévio indenizado. Já existem votos a favor e contra o fisco.

Tendo em vista esse cenário, setores do governo estão alardeando que haverá um rombo de R$ 5,57 bilhões caso as decisões sobre essas questões sejam contrárias ao fisco.   Trata-se, sem sombra de dúvida,  de uma pressão ilegítima, mas que sensibiliza os julgadores já que é público e notório que as necessidades da sociedade são, por si só, maiores que as possibilidades do Tesouro. E o próprio Judiciário vem enfrentando o drama da falta de recursos financeiros suficientes para o desempenho de sua missão constitucional. Daí a busca pelo Judiciário de argumentos extrajurídicos para socorrer o Poder Executivo, na verdade,  vítima de sua inaptidão para enxugar a máquina administrativa e para cumprir e fazer cumprir  as leis orçamentárias.

Registre-se, outrossim,  que o orçamento anual é, na realidade, um verdadeiro instrumento de exercício da cidadania, e não uma peça de ficção como vem sendo tratado. Urge reverter essa cultura do desprezo às leis orçamentárias, raiz dos males que acometem as finanças públicas. Afinal, se o orçamento nasce equilibrado e se no final do exercício há um desequilíbrio gritante é preciso investigar a sua causa. A inflação atinge igualmente a despesa e a receita. A LRF prevê instrumentos de fiscalização e controle da execução orçamentária exatamente para prevenir e coibir desvios de verbas.

 Em todo país em desenvolvimento há um aumento da demanda por obras e serviços públicos, que exige um volume de recursos financeiros acima das possibilidades do erário. Por isso, cabe ao governante assumir a postura de um estadista capaz de administrar as naturais pressões políticas por mais despesas públicas,  elegendo as prioridades da sociedade refletidas na Lei Orçamentária Anual, um  instrumento de execução da política governamental formulada pelo Executivo e pelo Legislativo. O Poder Judiciário não participa desse processo de formulação do programa de governo, nem do processo legislativo, salvo em caso expresso na Constituição,  incumbido que está de aplicar e interpretar de forma privativa a lei vigente no país. Daí a dupla ilegitimidade das pressões econômico-financeiras exercidas pelo Executivo nas questões tributárias submetidas à sua apreciação.


[1] Excepcionalmente, esse tipo de terrorismo foi utilizado pelos banqueiros que impetraram ADPF por intermédio da Consif, para se livrarem do pagamento das diferenças resultantes de aplicação de índices menores nas contas de poupança. Alegaram a perda da ordem de R$18 bilhões caso não sejam afastadas as decisões condenatórias pelos juízos e tribunais locais, acenando com a possível quebra de algumas das instituições bancárias gerando intranquilidade no setor financeiro do país. Na verdade, não se pode falar em prejuízo, quando os bancos forem  condenados a repor o que eles deixaram da pagar no momento oportuno.

[2] A legitimidade precede a legalidade. Nem tudo que é legal é legítimo, principalmente em um país como o nosso em que as necessidades da sociedade são infinitamente maiores do que as possibilidades do Erário.

Kiyoshi HaradaJurista

Com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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