Cassinos das notas fiscais causam prejuízos ao povo

Raul Haidar

No dia 9 de março o governador Geraldo Alckmin (PSDB) divulgou mudanças no “Programa Nota Fiscal Paulista”. Tal promoção consiste em distribuir prêmios e ainda devolver parte do imposto a pessoas que pedem comprovantes fiscais quando adquirem mercadorias no comércio.

Informa a assessoria de imprensa do governo que tais mudanças destinam-se a aumentar os estímulos para entidades assistenciais, para as quais estariam reservados 60% dos recursos.

Afirma-se ainda que serão distribuídos mais de R$ 60 milhões em prêmios por ano e que já teriam retornado em forma de devoluções ou prêmios R$ 15 bilhões desde sua criação em 2007.

A prefeitura de São Paulo também adotou programa semelhante, com o nome de “Nota Paulistana”, premiando pessoas que exigem notas fiscais relacionadas com serviços prestados. Outros estados da federação (Rio Grande do Sul, por exemplo) também seguem esses “exemplos”, com algumas diferenças.

Todavia, há nisso tudo uma série de equívocos e mesmo de ilegalidades, além de alguns inconvenientes para os cidadãos que fornecem o número de sua inscrição no CPF para anotação nos documentos.

Deve-se registrar, antes de mais nada, que tais promoções implicam no desenvolvimento de campanhas publicitárias divulgadas pela mídia, cujos custos obviamente são pagos pelos anunciantes.

Ou seja: gasta-se o dinheiro do povo para promover tais fatos e ações publicitárias não deveriam merecer tanta prioridade, especialmente com as dificuldades econômicas e financeiras do momento presente.

Todas essas medidas teriam como justificação o incentivo à arrecadação e o auxílio a entidades assistenciais, que teriam participação expressiva na distribuição da “devolução” de parte do ICMS.

Por meio de sua assessoria de imprensa, o governador afirmou que haveria um aumento para 30% “para a área cultural, livros e jornais”. Ocorreu aí grave engano, pois livros, jornais e periódicos (revistas, por exemplo) não pagam ICMS, face à imunidade garantida pelo artigo 150 da Constituição Federal.

Portanto, a pessoa que exigir nota fiscal ao comprar livros não tem qualquer direito de receber devolução ou participação, pela simples razão de que tais mercadorias não pagam ICMS.

A mesma notícia divulgada pela Secretaria da Fazenda informa que várias fraudes já foram detectadas através desse programa. Até mesmo entidades “assistenciais” foram criadas apenas para receber os créditos fiscais distribuídos pelo Estado a título de “incentivo à arrecadação”.

Há uma questão que o cidadão deveria considerar antes de ingressar nesse cassino. Refiro-me ao fornecimento indiscriminado no número do CPF. Com o atual estágio da informática, essa informação pode viabilizar diversos tipos de fraudes, com óbvios prejuízos ao cidadão.

Na verdade, a questão é simples: o estado tem o direito de arrecadar e o dever de fiscalizar o correto pagamento do imposto. Para isso já existem mecanismos suficientes de controle: nota fiscal eletrônica, informações das operadoras de cartões de crédito, cruzamento das compras e vendas do atacado para o varejo, escrituração digital etc

Ao devolver parte do imposto arrecadado ou distribuir prêmios a quem exige notas fiscais, o Estado abre mão de renda tributária. Em outras palavras: renuncia à arrecadação.

Ora, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000) estabelece normas rigorosas a respeito das finanças públicas. Veja-se, por exemplo, o que afirma logo no seu artigo 1º , § 1º :

“ § 1o A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em Restos a Pagar.”

Chega a ser preocupante a afirmação de que em cerca de 10 anos teriam ocorrido gastos, distribuição ou devolução (não importa a que título) de cerca de R$ 15 bilhões!

Se a própria nota da Secretaria da Fazenda informa a ocorrência de fraudes, parece-nos que os órgãos competentes (Ministério Público e Tribunal de Contas) deveriam investigar tais questões e, enquanto não esclarecidas, tentar suspender as atividades desse verdadeiro cassino. Afinal, se já ocorreram fraudes no passado, não é improvável ou impossível que não se repitam, especialmente agora com os valores aumentados.

O dinheiro dos impostos não pode ser distribuído em campanhas assistenciais ou mesmo de incentivo à arrecadação. Destinam-se, exclusivamente, à promoção do bem comum e à manutenção dos serviços públicos colocados à disposição dos cidadãos.

Não pode o Poder Executivo permitir tais desvios, pois, como é público e notório, há carências em quase todos os setores do Estado.

Só para dar alguns pequenos exemplos: se aqueles R$ 15 bilhões tivessem sido aplicados no Metrô, talvez a situação do transporte da capital estivesse um pouco melhor. Os hospitais públicos bem aparelhados, os professores com melhores salários etc.

O tal informe oficial diz que a “nota fiscal paulista” é considerado “um dos três maiores programas filantrópicos do Brasil” e que em 2016 “foram distribuídos mais de R$ 100 milhões para as instituições” de assistência social e até de defesa e proteção dos animais.

Esqueceu-se a Secretaria da Fazenda que imposto não se destina a filantropia e nem pode ser devolvido a título de estímulo. Fiscalização é dever, obrigação, função essencial do poder público. Para isso os servidores da área são remunerados.

Parece-nos que os nossos representantes na Assembleia Legislativa, nossos deputados, devessem estudar tais questões com atenção para, se for o caso, verificar eventuais desvios que possam ocorrer na execução desse “programa”.

Afinal, trata-se de renunciar a tributo já recolhido e distribuir prêmios em dinheiro a pessoas ou instituições que nada mais fazem do que praticar o dever de qualquer pessoa: exigir o comprovante fiscal das compras que fazem.

A Assembléia, tanto quanto a Câmara Municipal, não servem apenas para dar ou trocar nomes de ruas e avenidas, homenagear festas ou cidades ou tantas coisas irrelevantes com que ocupam o seu tempo precioso. Aliás, muito precioso, pois pago com os nossos impostos.

Raul Haidar

Jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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