As prestações pecuniárias compulsórias no sistema constitucional brasileiro

Eugenio Nunes Silva

Pretende-se enfrentar a questão das prestações pecuniárias compulsórias no sistema constitucional à luz dos objetivos e fundamentos da República, bem como dos valores de um Estado dualista do desenvolvimento econômico e bem estar social.

Sumário: 1 Introdução. 2 Teoria das prestações pecuniárias compulsórias na Constituição de 1988. 3 Tributos sinalagmáticos: regime constitucional. 4 A inteligência do artigo 149 e dos §§ 4º, 6º e 7º do artigo 195 da Constituição. 5 As funções da lei complementar no sistema constitucional brasileiro das prestações pecuniárias compulsórias. 6 Conclusões. 7 Referências.

RESUMO: O presente artigo pretende analisar aspectos dogmáticos e científicos das prestações pecuniárias compulsórias no sistema constitucional brasileiro. Para tanto buscará na teoria das prestações coativas, de Edvaldo Brito, o marco teórico para desenvolvimento da pesquisa. Inicialmente será contextualizada a teoria das prestações pecuniárias compulsórias na Constituição Federal de 1988. Posteriormente, se voltará para uma análise crítica do problema, confrontando-se a dogmática jurídica com o conhecimento científico já produzido, mormente quanto ao estudo do sinalagma em tais prestações. Será, ainda, abordado o papel da lei complementar no sistema constitucional brasileiro de prestações pecuniárias coativas. Por fim, serão apresentadas as conclusões e indicado o enfoque se entende adequado a um enfrentamento científico da questão.

Palavras-chave: Prestação pecuniária compulsória. Estado dualista. Assistência vital.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo busca investigar as prestações pecuniárias compulsórias no sistema constitucional brasileiro. Aqui, o enfoque dado às prestações coativas perpassará por um cotejo entre as posições doutrinárias antagônicas da tipologia tributária. É dizer, será feita uma contraposição entre os argumentos que entendem que tributos são aqueles escandidos no artigo 145 da Constituição Federal de 1988 e aqueles que enxergam nos empréstimos compulsórios e demais contribuições sua natureza tributária.

Passo seguinte, será discutido, num enfoque crítico, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca dos temas aqui versados, confrontando os julgados com o conhecimento científico já produzido sobre a matéria.

O recorte epistemológico do trabalho se voltará especificamente para o papel das prestações administrativas incumbidas ao Poder Público, em consonância com o desenho do Estado dualista do desenvolvimento econômico do bem-estar social e sua relevância para compreensão da essência das prestações pecuniárias compulsórias. Será, então, feita uma explanação acerca do caráter sinalagmático das prestações coativas de molde a situar o leitor na dogmática jurídica objeto de investigação.

Após, se iniciará uma abordagem detalhada sobre as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico e de interesse de categoria econômica e profissional, ainda no intuito de lançar as bases científicas da discussão. Neste momento, se utilizará da tese apresentada pelo catedrático Edvaldo Brito ao concurso para Professor Titular do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Universidade de São Paulo – USP, posteriormente publicada pela Editora Atlas, Direito tributário, como marco teórico do trabalho para cotejar as suas ideias, mormente no que tange à compreensão do sistema constitucional de prestações pecuniárias coativas.

Será, então, apresentada uma explanação crítica acerca do papel desempenhado pela lei complementar no regime constitucional de prestações pecuniárias compulsórias, identificando os momentos em que a Constituição a exige e buscando uma compreensão teleológica para tanto.

Por fim, serão destacadas as conclusões dos argumentos desenvolvidos no corpo do trabalho, prestigiando a construção de uma razão crítica sobre a matéria e indicando o enfoque que se entende por ajustado para enfrentar o problema.

2. TEORIA DAS PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS COMPULSÓRIAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Desde o momento em que o homem passou a se organizar em coletividade, ainda nos primórdios, quando se instituíam clãs para garantir a autodefesa e subsistência, restou configurada necessidade de utilização de recursos coletivos no atingimento do fim de perpetuação.

Essa fundamental característica da união do homem em sociedade – necessidade de utilização de recursos coletivos em prol do interesse da coletividade – transcorreu por todas as eras da vida humana a partir dali. Assim foi na formação das cidades-estados, na existência do feudalismo, nos Estados Absolutistas, até mesmo no nascimento do Estado Liberal e no Estado do Bem-Estar Social.

Sem adentrar nas peculiaridades de cada momento histórico, especificamente acerca da arrecadação, utilização e natureza dos recursos necessários à proteção do bem comum, que não compõe o objeto do presente trabalho, soa legítimo aduzir ser este ponto uma característica fundamental da organização humana em Estado.

Discorrendo sobre a embriogenia do Estado, BECKER1 aduz que a reunião do homem em sociedade só se alcança em função de um proveito coletivo que chama de centro de referência comum. Segundo ele, “este agrupamento humano é organizado de modo estável para melhor obtenção daquela finalidade, então existe um ser social, especificamente social e irredutível à pluralidade dos indivíduos agrupados”. É justamente em função da existência autônoma do ser social voltado à consecução do centro de referência comum que o Estado necessita da arrecadação de recursos.

Não por outro motivo a doutrina afirma que “a existência de um Estado implica a busca de recursos financeiros para sua manutenção”2 (SCHOUERI, 2014).

Hodiernamente, como já assinalado, os recursos utilizados na consecução do próprio fim do Estado são de natureza financeira, sendo incomum a existência de prestações outras que não o dinheiro. BALEEIRO3 ensina que os Estados, desde há muito, utilizam-se de meios comuns para a obtenção de recursos financeiros a fim de fazer frente à despesa pública, tais quais: “a) realizam extorsões sobre outros povos ou deles recebem doações voluntárias; b) recolhem as rendas produzidas pelos bens e empresas do Estado; c) exigem coativamente tributos ou penalidades; d) tomam ou forçam empréstimos; e) fabricam dinheiro metálico ou de papel.”

Vê-se, pois, que o interesse comum, cuja tutela é atribuída ao Estado, justifica a existência de prestações pecuniárias coativas impostas aos particulares de forma a transferir parcela de seu patrimônio à coletividade. Não se descura, contudo, que num Estado de Direito, tal transferência só possui legitimidade se tomada nos contornos do quanto estabelecido pela lei.

Registre-se, por pertinente, que o signo lei acima indicado não se refere exclusivamente à lei em sentido jurídico-formal, mas à própria ordem jurídica como um todo, sobretudo à ordem constitucional, donde se pode extrair a competência e legitimidade para a instituição de cobrança das mais variadas prestações coativas.

Nesse passo, cabe assinalar, a prestação pecuniária compulsória mais conhecida e destrinchada nos ordenamentos contemporâneos é, por excelência, o tributo. O professor Edvaldo Brito4, discorrendo sobre o tema, assevera que:

O fenômeno tributário é uma das manifestações culturais, por ser objeto típico do conhecimento referente às relações sociais (exclusividade da sociedade humana) e, em linhas gerais, consiste na atividade estatal operadora da transferência do patrimônio do particular para o coletivo, conforme um conjunto de princípios que forma um núcleo de normas sistematizado na lei maior do sistema jurídico.

Aqui, merece destacar, conquanto o tributo seja, por excelência, a mais emblemática das prestações pecuniárias compulsórias, não é a única. Tampouco é o caráter compulsório sua marca identificadora.

Com efeito, reduzir a essência do tributo à sua natureza compulsória é incorrer em erro crasso e desconhecer o atual papel do Estado na sociedade contemporânea.

Decerto, a Constituição Federal de 1988, estabelece como fundamentos da República Brasileira, em seu art. 1º, III e IV, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (BRASIL, 1988). Em consonância, o art. 3º da mesma Carta Política estatui como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade justa, livre e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e a marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; e a promoção do bem de todos sem qualquer forma de discriminação.

Vê-se, portanto, que a Constituição Federal de 1988 instituiu um modelo dualista de Estado do Desenvolvimento Econômico e do Bem-Estar Social (BRITO, 2015, p. 62). Consagrou-se conjuntamente, pois, modelos que historicamente estiveram dissociados. De um lado a liberdade franqueada à iniciativa privada mas, de outro, os temperos da diretividade estatal pelo bem-estar social. Assim assevera BRITO5:

Olhando, portanto, sob esse ângulo, o Brasil é um Estado Intervencionista moderado poque, lodo de saída, encontram-se na ordem econômica e financeira, ou seja, encontram-se na organização da economia, claramente, o s seus fundamentos em dois pilares: o da democracia liberal com a valorização do trabalho humano e a livre-iniciativa, mitigados pelos temperos da democracia social, tomados como princípios oda justiça social: a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a busca do pleno emprego e a redução das desigualdades regionais e sociais.

Este trabalho adota o mesmo posicionamento acima escandido acerca da posição intervencionista moderada do Estado Brasileiro. Assim, se reconhece um dirigismo estatal no campo da economia tendente a atingir os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil.

Tal intervenção, contudo, não se operacionaliza por uma única via. Antes, se dá de diversos modos. Com efeito, o dirigismo estatal na economia pode vir a partir de uma postura persuasiva ou de estímulo, quando a ordem jurídica induz a atuação do particular num ou noutro sentido; coativa, quando o Estado impõe ao particular a prática ou abstenção de uma dada conduta no meio econômico; ou mesmo prestativa, quando o Estado atua diretamente na economia, fornecendo uma utilidade ao particular.

Resta patente, pois, que a feição atual do Estado não limita sua atuação à consecução das ações inerentes à soberania como, por exemplo, a defesa do território ou a representação na ordem internacional. O atual modelo de Estado vai muito além, ganhando legitimidade para interferência na esfera privada de modo a alcançar uma sociedade livre, justa e solidária e erradicação da pobreza e marginalização, por exemplo, para usar os termos da própria Constituição Federal de 1988.

Como exemplo de ingerência na vida privada para além dos atos de soberania tome-se a atuação do Estado no campo da infortunística. Decerto, aqui, a potestade estatal impõe ao particular a adesão obrigatória a um fundo contributivo visando salvaguardar condições dignas de sobrevivência em caso de doenças, invalidez ou mesmo limitações ao autossustento advindas com a idade, além de outras.

Trata-se, pois, de intervenção estatal na vida privada de modo a prover a assistência vital (BRITO, 2015, p. 63) ao particular que, num Estado cuja proteção do bem-estar social lhe é incumbida, dota-a de caráter compulsório.

Claro está, portanto, que o atual plexo de atuação do Estado frente aos particulares legitima um igualmente variado conjunto de prestações pecuniárias compulsórias não restrita aos tributos. Do mesmo modo, resta evidente que a compulsoriedade decorre do próprio modelo dualista de Estado e não da eventual natureza tributária da prestação. Tome-se as palavras de Gian Antonio Micheli6 acerca do específico ponto:

não é possível reduzir o elemento descritivo da noção jurídica de tributo à coatividade da prestação, visto que, de um lado, tal coatividade pode caracterizar, também, outras prestações devidas pelo particular ao ente público e, de outro lado, a mesma coatividade pode ser compreendida (sempre num plano jurídico) de diversos modos e com diferentes significados: seja como falta de liberdade de escolha no sentido de cumprir ou não a prestação; seja omo falta de liberdade de escolha na utilização de um serviço da entidade pública. A coatividade é, evidentemente, referida a momentos diferentes e o critério relativo perde, portanto, a sua homogeneidade, enquanto, por outro lado, a obrigatoriedade da prestação não é idônea para diferenciar a prestação tributária, em relação a outras prestações coativas de conteúdo patrimonial.

Conquanto não se possa falar que todas as prestações pecuniárias compulsórias integrantes do regime constitucional brasileiro de 1988 se configurem em tributos, admitindo-se outras, é elementar que a transferência compulsória de parcela do patrimônio do particular para o patrimônio público decorre necessariamente e em qualquer caso do poder de soberania do Estado. Ademais, e também por tal conduta configurar verdadeira limitação a direito fundamental – propriedade privada –, sua legitimidade há de ter assento constitucional.

Nessa quadra, a análise das prestações pecuniárias compulsórias existentes atualmente no Brasil, sejam elas tributárias ou não, perpassam obrigatoriamente pela análise da Constituição Federal de 1988. Disso decorre, de plano, que tudo o que esteja posto no ordenamento jurídico deve guardar relação de obediência ao quanto exposto na Constituição.

Tal constatação – coexistência, em âmbito constitucional, de dois regimes distintos de prestações pecuniárias compulsórias – não atenta contra o caráter sistêmico do Direito. Decerto, LARENZ7 assevera que “as normas jurídicas, (…), não estão desligadas uma das outras, mas estão numa conexão multímoda umas com as outras”. Assim, cabe ao hermeneuta encontrar a exegese que permita correlacionar harmoniosamente e de forma sistemática as normas em questão.

Aqui, surge o primeiro ponto sensível do reconhecimento da existência de outras prestações pecuniárias compulsórias que não os tributos no ordenamento pátrio, qual seja: o alcance do conceito legal de tributo.

Com efeito, no Brasil existe uma definição dogmática do que é tributo escandida no artigo 3º do Código Tributário Nacional – CTN. Ocorre que, como já salientado, toda ordenação jurídica deve guardar conformidade com aquilo que se encontra disposto no texto constitucional. Assim, o conceito dogmático de tributo trazido no artigo 3º do CTN há que ser interpretado e extraído pelo exegeta a partir do seu confronto com a Constituição Federal de 1988.

Tal aspecto não passou despercebido pela doutrina mais abalizada que asseverou ser necessária uma análise crítica do conceito legal de tributo, mormente em face de outras prestações pecuniárias coativas “devidas pelos usuários de utilidades oferecidas, ora pelo próprio Estado, ora por particulares sob sua fiscalização, mas de tal forma que, no mundo moderno, tornam-se (essas utilidades) compulsórias a ponto de não permitirem alternativas ao indivíduo” (BRITO, 2015, p. 62).

Nesse contexto, conquanto o artigo 3º do CTN não se refira expressamente ao regime jurídico-constitucional dos tributos, é elementar que tal ponto deve integrar um conceito lógico-jurídico do signo “tributo”, sem o que estar-se-á a falar de outra espécie de prestação pecuniária compulsória.

Decerto, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um regime jurídico pormenorizado aplicável aos tributos em geral e sob o qual toda espécie tributária deve subsumir-se. Ao discorrer sobre dito regramento constitucional, o professor Edvaldo Brito8 leciona:

estão na ordenação jurídica estatal e se constituem em princípios, porque assim são considerados tendo em vista pertencerem à ordem jurídica positiva como um importante fundamento para a interpretação, conhecimento e aplicação do direito positivo e, em virtude dessa dimensão determinante, eles fornecem sempre diretivas materiais da hermenêutica de todas as normas constitucionais, vinculando o legislador no momento legiferante, de modo a poder dizer-se ser a liberdade de conformação legislativa vinculada pelos princípios jurídicos gerais, em que eles se constituem.

Ora, se os princípios tributários integrantes do Estatuto Constitucional do Contribuinte – adotando uma vez mais a dicção do mestre baiano, Edvaldo Brito – possuem aptidão para vincular o legislador quando da instituição do tributo, a fortiori possuem aptidão para vincular o legislador quando este entende pertinente adotar um conceito jurídico-positivo de tributo. Assim, não há como dissociar do conceito de tributo insculpido no CTN o seu regime jurídico-constitucional.

A título de exemplo, tome-se o inciso IV do artigo 8º da Constituição Federal de 1988 que institui a chamada “contribuição sindical” cujo valor será fixado através da assembleia geral da representação profissional ou sindical. Trata-se de uma obrigação pecuniária compulsória instituída pela própria Constituição Federal mas que não deve se amoldar às limitações impostas à tributação e, por tanto, não é tributo.

Outro aspecto inerente a um conceito lógico-jurídico do signo “tributo” e não antevisto no conceito formulado pelo Código Tributário Nacional guarda com a necessária transferência de parcela do patrimônio do particular para a coletividade. Entrementes, se o tributo tem sua essência nos gastos do Estado em face das atribuições assumidas para com seu povo é elementar a conclusão que indica haver necessariamente uma transferência de parcela de riqueza do particular para a coletividade, sem a qual não se pode falar em tributo.

Tal aspecto corrobora o até aqui escandido quando se observa, por exemplo, as contribuições para a previdência social. Em verdade, os valores vertidos compulsoriamente pelos particulares não configuram uma transferência do seu patrimônio para a coletividade visto que tais valores passam a integrar um fundo de participação compulsória cujo objetivo é ser utilizado pelo particular quando lhe alcançar algum infortúnio, sendo certo que ao menos um deles lhe chegará, o da incapacidade de auto-subsistência decorrente da idade ou a morte (o benefício será concedido em face dos dependentes). “Aqui, não se opera a transferência patrimonial da esfera do particular para a da coletividade, como receita do Estado, mas, sim, a redistribuição patrimonial no âmbito do seu titular, feita pelo Estado no exercício de sua soberania em favor desse mesmo titular” (BRITO, 2015, p. 65)

É evidente, portanto, que um conceito lógico-jurídico do signo “tributo” vai além daquele tipificado no artigo 3º do CTN, sendo de sua essência a observância ao regime jurídico-constitucional limitante do poder de tributar, bem assim agregando o aspecto de transferência definitiva do patrimônio do particular para o da coletividade. Neste ponto, adota-se o conceito formulado por BRITO9, para quem, em termos lógico-jurídicos:

o tributo é uma prestação em dinheiro devida por um particular a uma corporação de direito público titular de soberania (daí o caráter compulsório do cumprimento da prestação) a qual corporação opera, por esse modo, a transferência de patrimônio desse particular para atender as necessidades públicas, obedecendo a um núcleo legal consistentes em critérios que garantem o particular contra possíveis iniquidades no exercício dessa soberania.

Entrementes, tudo aquilo que preencha os elementos indicados no artigo 3º do CTN, bem assim importe em transferência do patrimônio do particular para o da coletividade e esteja sob regência do Estatuto Constitucional do Contribuinte é tributo. Ao contrário, tudo aquilo que faltar qualquer um dos elementos antes indicados não é tributo. Socorre-se, aqui, dos postulados da lógica da identidade e da não-contradição, onde um objeto só pode ser igual ao mesmo objeto; e um objeto igual a si não pode ser simultaneamente igual a um objeto diferente de si.

Entendido o tributo nestes termos, pode-se, agora, identificar no texto constitucional vigente uma variedade de prestações pecuniárias compulsórias, tributárias e não tributárias. Assim, adota-se a classificação realizada por BRITO10 na obra multicitada, para quem as prestações pecuniárias compulsórias na Constituição Federal de 1988 podem se classificar em (i) prestações pecuniárias compulsórias em geral, subdividida em (a) tributárias e (b) não-tributárias, e (ii) prestações pecuniárias pela assistência vital em sentido estrito.

3. TRIBUTOS SINALAGMÁTICOS: REGIME CONSTITUCIONAL

Consoante já asseverado, a feição hodierna do Estado impõe sua atuação, direta ou indireta, no campo do fornecimento de utilidades aos particulares. Tal exercício se legitima, entre nós, a partir do artigo 173 e 175 da Constituição Federal de 1988.

Ademais, também restou assentado que, para fazer frente a sua complexa gama de atribuições, o Estado possui legitimidade de impor ao particular obrigações pecuniárias coativas, de natureza tributária ou não.

Certo é, que dentre as utilidades fornecidas pelo Estado, seja direta ou indiretamente, há de se ter uma contraprestação do particular. Analisando tal aspecto, bem como a correlação entre prestação e contraprestação, BRITO11 notou haver uma relação de dependência lógica entre ambas. Assim, abeberando nos ensinamentos de Orlando Gomes e Alberto Xavier, o professor baiano identificou estar presente em tais prestações o caráter sinalagmático, cunhando, então, a expressão tributo sinalagmático.

Registre-se, que o sinalagma é categoria de há muito conhecida no direito privado, inerente às prestações bilaterais em que hajam uma necessária correspondência jurídica entre a prestação e a contraprestação. Não obstante, deve-se atribuir ao mestre muritibano a sua transposição ao direito tributário e identificação de sua existência entre as prestações coativas impostas pelo Estado aos particulares.

Note-se, não há que confundir o caráter sinalagmático das prestações pecuniárias compulsórias com as conhecidas prestações vinculadas ou causal do direito tributário. Com efeito, tributo vinculado, na esteira de ATALIBA12, representa a obrigação tributária onde está necessariamente presente uma atividade estatal em face da qual se legitima a exação.

Sinalagma, contudo, não se reduz à existência de contraprestação. Além da própria contraprestação estatal, o sinalagma exige a correspondência jurídica entre o valor pago e aquela utilidade disponibilizada ao ou fruída pelo particular. Pode-se afirmar, portanto, que o sinalagma nas prestações coativas representa uma faceta de incidência do princípio da proporcionalidade nesta seara.

Não se desconhece, aqui, a distinção doutrinária feita acerca do sinalagma genético e funcional, onde o primeiro se configura na existência do sinalagma no nascimento da relação jurídica e o último durante a própria execução do contrato.

Certo é, que nas prestações pecuniárias compulsórias de natureza sinalagmática esta correspondência há de ser desde o seu nascedouro e durante sua execução. Assim o é, porque o sinalagma de tais prestações decorre do desenho constitucional que lhe atribuiu a Carta Política, vinculando, pois, o legislador instituidor e o administrador arrecadador.

Nesse contexto, pode-se afirmar que possuem natureza sinalagmática as prestações pecuniárias compulsórias advindas das taxas, contribuição de melhoria (tributárias), contribuições sociais, contribuição de intervenção no domínio econômico, contribuição das categorias profissionais ou econômicas, contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública (não tributárias).

Dentro da tipologia dos tributos inserta na Constituição Federal de 1988, especificamente no seu artigo 145, destaca-se como obrigações sinalagmáticas as taxas e a contribuição de melhoria, as quais merecem uma análise pormenorizada do seu regime constitucional.

3.1 TAXAS

A Constituição Federal dispõe em seu artigo 145, II (BRASIL, 1988), que as entidades políticas são competentes para instituírem taxas em função do exercício do poder de polícia ou pela utilização, seja efetiva, seja potencial, de serviço público específico e divisível prestado ao contribuinte ou colocado à sua disposição.

A partir dessa matriz constitucional é possível extrair os elementos que, segundo BRITO13, integram a tipicidade cerrada do tributo em estudo, quais sejam, os elementos material, subjetivo, espacial e temporal.

Conquanto a norma constitucional indique a possibilidade de instituição de duas modalidades de taxa – a taxa de polícia e a taxa de serviço –, é assente que dentre os elementos do tipo apenas o aspecto material de ambas se distinguem. Assim, por questão didática, serão abordados os critérios subjetivo, espacial e temporal conjuntamente, distinguindo-se, posteriormente, os aspectos materiais de cada modalidade.

Quanto ao polo ativo da relação jurídica tributária decorrente da exação da taxa tem-se que qualquer ente político – União, Estados, Distrito Federal ou Municípios – pode instituir a taxa, desde que competente para a prestação do serviço alusivo ou exercício do poder de polícia.

Decerto, sendo a taxa um tributo comutativo apenas o ente político fornecedor da utilidade – encara-se aqui em sentido lato, designando tanto o serviço quanto o poder de polícia – detém legitimidade para a exação.

Note-se que, para uma correta identificação do sujeito ativo em casos deste jaez há que se socorrer das normas constitucionais de competência insertas nos artigos 21 e seguintes do texto político. Nesse contexto, sendo a competência material residual atribuída aos Estados Federados, nos termos do § 1º do artigo 25 da Constituição Federal, soa legítimo afirmar que tais entidades políticas detém competência tributária residual em casos de taxa de serviço.

No que se refere ao sujeito passivo da relação tributária, é obrigado ao pagamento da taxa o particular que goza ou tem a disponibilidade de gozo da utilidade fornecida pelo Estado.

Aqui, cabe a advertência que os entes políticos não podem cobrar taxas das pessoas jurídicas de direito público em função de não se submeterem, entre si, às prestações administrativas nem ao poder de polícia um dos outros (BRITO, 2015, p. 85).

Em relação ao aspecto espacial, convém indicar que a incidência da norma tributária está adstrita ao território do poder tributante. É dizer, não é possível a exação em função de serviço ou poder de polícia prestado fora do território do ente tributante. Não obstante, é possível que a exação recaia sobre particular não residente dentro daquele território, desde que ali seja exercido o aludido poder ou prestado ou serviço.

Quanto ao elemento temporal, tem-se ocorrido o fato gerador no exato momento em que prestado o serviço, ou posto à disposição do particular, para o caso de taxa de serviço, e no momento em que exercido o poder de polícia, no caso da taxa de polícia.

Como já assentado, a norma constitucional institui duas hipóteses distintas para instituição da taxa, ensejando, assim, elementos materiais igualmente distintos na tipificação do tributo. Decerto, as taxas possuem como elemento material o exercício do poder de polícia e a prestação efetiva ou potencial de serviço público específico e divisível.

Antes de analisar tal aspecto uma ressalva, porém. Tem-se deixado claro que a feição assumida pelo Estado brasileiro contemporâneo é dualista, de desenvolvimento econômico e bem-estar social, ensejando a assunção de um plexo de atribuições por parte do poder público advindo da sua intervenção no campo privado.

Nesse passo, parece estar em crise a noção de serviço público ora analisada como aspecto material da taxa. Com efeito, a posição assumida pelo Estado no fornecimento de utilidades e intervenção na esfera do particular não cabe dentro do estrito conceito de serviço público. Aqui, mostra-se extremamente sóbria a advertência que num Estado dualista de prestação e prescrição, o conceito de serviço público utilizado no matiz constitucional da taxa deva ceder lugar à noção de prestação administrativa (BRITO, 2015, p. 87-88), por ser mais completa e apta a albergar o plexo de prestações incumbidas ao Estado.

Explicado estes termos, cumpre identificar qual a prestação administrativa – serviço público na linguagem da CF/88 – admite sua remuneração por taxa, na medida em que o texto constitucional prevê outras espécies remuneratórias para ditos serviços públicos – preço e tarifa. Entrementes, não é toda e qualquer prestação administrativa que legitima a instituição e cobrança de taxas. Há que ser analisado a própria essência da prestação administrativa para identificar sua possibilidade de remuneração na via deste tributo.

O professor Luciano Amaro14 entende que serviços inerentes à soberania do Estado como, por exemplo, a prestação jurisdicional, só podem ser remunerados na via taxa. Contudo, adverte que tal critério não se mostra suficiente para abraçar todas as possibilidades dentro de uma realidade de Estado dualista. Segundo ele, “o Estado adstringe-se a adotar a figura da taxa, se o serviço (que ele executa) deve ser realizado por imperativo de ordem pública” (AMARO, 2012, p. 74). Segue afirmando que em casos tais, a prestação administrativa é de tamanha relevância para a coletividade que deve o poder público disponibilizá-la ao particular, podendo exigir a taxa pelo simples uso potencial.

No mesmo sentido, BRITO15 adverte que “a taxa de serviço terá como elemento material da sua hipótese de fato gerador essa prestação administrativa (…), traduzida no gozo de benefícios pela coletividade porque destinada a satisfazer uma necessidade pública”.

Esclarecido tal ponto, cabe enfrentar a questão da divisibilidade e especificidade da prestação administrativa apta a legitimar a instituição da taxa. Aqui, socorre-se do legislador complementar, que no Código Tributário Nacional, artigo 79, estabeleceu o conceito de serviço público específico – quando se lhe permite ser destacado em unidade autônoma de intervenção, utilidade ou necessidade pública –, bem assim o conceito de serviço divisível – quando suscetível de utilização separada por parte de cada usuário.

Assim, em compasso com a Constituição, a taxa só tem lugar quando instituída em face de prestações administrativas que integrem a própria soberania do Estado e naquelas em que sua disponibilização e uso seja de fundamental importância para a coletividade e, ainda, configurem prestações específicas e divisíveis.

Observando a segunda abertura constitucional para a instituição de taxa, tem-se como aspecto material do tributo o exercício do poder de polícia. Dito poder vem conceituado no artigo 78 do Código Tributário Nacional e deve ser exercido dentro dos ditames constitucionais.

Decerto que a feição dualista do Estado moderno impõe sua intervenção no domínio particular, sobretudo para se alcançar seus objetivos de desenvolvimento econômico e bem-estar social. Ocorre que, tal intervenção não pode olvidar para os direitos e garantias fundamentais sob pena de macular conquistas históricas do homem. Aqui, destaca-se, como bem o faz Antonio Roberto Sampaio Dória16, que a evolução da limitação do poder estatal com baldrame na cláusula do due process of law atingiu, também e sobretudo, o poder de tributar.

Nesse contexto, o poder de polícia apto à tributação pela taxa há de ser o regular poder de polícia.

No que tange ao interesse ou liberdade objeto de limitação, cabe destacar que o interesse regulado é o interesse particular, que deve se conformar com o interesse público – aspecto legitimador da intervenção estatal – sem, contudo, importar em prática proibitiva de atividade lícita (BRITO, 2015, p. 94-95, 103-104).

Quanto ao sinalagma das taxas, de se observar que também o reconheceu o professor Paulo de Barros Carvalho17. São suas as seguintes palavras:

Em qualquer das hipóteses previstas para a instituição de taxas — prestação de serviço público ou exercício do poder de polícia — o caráter sinalagmático deste tributo haverá de mostrar-se à evidência, como já lecionara Alberto Xavier e como bem sintetiza Edvaldo Brito, em preciosa colaboração ao 43º Congresso da “International Fiscal Association”.

Um aspecto, ainda, há de ser esclarecido, contudo. O sinalagma existente na taxa, seja ela de polícia seja ela por prestações administrativas, decorre de uma relação de equivalência entre a prestação e a contraprestação. Equivalência esta, registre-se, jurídica e não financeira. Com efeito, não se exige do poder público a elaboração de cálculos precisos quanto ao custo da prestação ou do exercício do poder de polícia, devendo o valor da exação “ser calculado até em certo limite estipulado pelo legislador ao estabelecer a base de cálculo e alíquota, a fim de não ultrapassar essa quantia geral ou total que a Administração está gastando” (BRITO, 2015, p. 93).

Tal posicionamento foi referendado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 1772/MG, onde se discutia a possibilidade de custas judiciais – taxa, portanto – ad valorem. A controvérsia cingia-se à possibilidade das custas judiciais serem calculadas em face do valor da causa sem, contudo, um limite máximo.

No referido julgado, conquanto, não tenha havido expressa menção ao sinalagma, o Tribunal assentou que há de haver uma equivalência entre o custo do serviço prestado e o valor do tributo a remunerá-lo – noção de sinalagma –, sob pena de ser inconstitucional a exação. Colhe-se o seguinte excerto do voto do Ministro Relator, Carlos Velloso18:

a taxa judiciária, espécie de tributo – taxa – resulta da prestação de serviço público específico e divisível, tem como base de cálculo o valor da atividade estatal referida diretamente ao contribuinte, pelo que deve ser proporcional ao custo da atividade do Estado a que está vinculada

Vê-se, portanto, que o Supremo Tribunal Federal adota o caráter sinalagmático da taxa como aspecto limitante do poder de tributar, consoante escandido até aqui.

Por fim, merece destaque o disposto no § 2º do artigo 145 da Constituição Federal, cujo intuito é proibir que as taxas tenham “base de cálculo própria de imposto” (BRASIL, 1988). Assim, a base de cálculo das taxas não pode ser representada por grandeza econômica cuja incidência tributária é própria dos impostos. O intuito do constituinte é claro ao proteger o contribuinte de exações desvirtuadas na forma de taxa, mas que em essência representem impostos.

O Supremo Tribunal Federal, contudo, enfrentando questão de ordem no Recurso Extraordinário 576.321, cujo objeto era proposta de súmula vinculante, interpretando o citado comando constitucional, entendeu ser possível à Administração Pública o uso de elemento integrante da base de cálculo de imposto para o fim de servir como base de cálculo de taxa.

A controvérsia versava sobre o uso da área construída do imóvel – elemento integrante da base de cálculo do Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana-IPTU – para o cálculo da taxa de coleta de lixo domiciliar do município de Campinas/SP. Entendeu, por maioria, que a base de cálculo do imposto pode ser decomposta para o fim de utilizar elementos parciais dessa decomposição na base de cálculo da taxa. Utilizou-se do raciocínio, no específico caso, que a área construída do imóvel mostra-se parâmetro razoável para apurar o valor da taxa de coleta domiciliar de lixo ao fundamento de presumir-se que imóveis maiores tendem a produzir maior quantidade de lixo domiciliar.

Não obstante, não parece ser tal exegese possível a partir do citado § 2º do artigo 145 da Constituição Federal de 1988. Decerto, afigura-se acertada e condizente com os ditames constitucionais, especificamente com as garantias fundamentais dos contribuintes, a posição manifestada pelo Ministro Marco Aurélio19, em voto vencido, quando aduziu inexistir, em face da norma analisada, “qualquer temperamento a ponto de dizer-se que só é impossível cogitar-se da identidade quando é absoluta. Nesse caso a confusão seria total. Evidentemente, a Constituição Federal não precisaria versar a matéria para ter-se a pecha” (BRASIL, 2009).

Ao fim, em que pese o flagrante desacerto, o Supremo Tribunal Federal editou o verbete sumular vinculante nº 2920, admitindo o “uso de um ou mais elementos da base de cálculo própria de determinado imposto, desde que não haja integral identidade entre uma base e outra (BRASIL, 2009).

3.2 CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA

O texto constitucional (artigo 145, III, CF/88) é sobremaneira singelo ao prever, na tipologia tributária, a contribuição de melhoria. Entrementes, limita-se a afirmar que compete aos entes federados instituir a “contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas” (BRASIL, 1988). Nesse passo, avulta em importância a integração desta figura tributária feita pelo Código Tributário Nacional, especificamente em seus artigos 81 e 82.

Descendo aos elementos integrantes da tipicidade cerrada do tributo em estudo, tem-se que o sujeito ativo pode ser qualquer dos entes federados – União, Estados, Distrito Federal ou Município – desde que seja o titular da obra pública da qual decorreu a valorização do imóvel.

No que toca ao sujeito passivo, de se observar que o mesmo centra na figura do proprietário do imóvel beneficiado com a obra. Tal constatação, contudo, não impede que o legislador instituidor do tributo adote a técnica da responsabilização tributária (artigo 121, parágrafo único, II, CTN). Com efeito, é a partir da hipótese de incidência que se pode identificar os indivíduos elegíveis como sujeitos da relação jurídica tributária. Nesse sentido, a lição de Marçal Justen Filho21:

a sujeição passiva decorre da existência de um mandamento normativo. É na determinação subjetiva mandamento que se localiza a eleição legislativa de sujeitos ativos e passivo; já na determinação objetiva encontra-se a previsão das condutas facultadas, impostas ou vedadas.

É evidente, portanto, que havendo um elo de conexão entre o sujeito eleito pela norma para figurar como responsável tributário e o aspecto material do tributo, será legítima a eleição de terceira pessoa – não proprietária do imóvel – como sujeito passivo da obrigação tributária.

Ainda acerca do aspecto subjetivo da tipicidade da contribuição de melhoria, conquanto a norma constitucional de imunidade se refira expressamente a impostos, é de se considerar que a mesma tem, também, abrangência em face da contribuição de melhoria. Assim o é, porque não se afigura legítimo, no sistema constitucional brasileiro, franquear a tributação de um tributo comutativo quando a própria norma constitucional estabelece imunidade para um tributo não causal. Ademais a receita dos impostos também servem para o financiamento de obras públicas, configurando um desvio ilegítimo o custeio da obra por intermédio da contribuição de melhoria com exclusivo fim de afastar a norma imunizadora (BRITO, 2015, p. 126).

Encerrando esse aspecto do tipo tributário, cabe asseverar que a capacidade contributiva há de ser aplicada também à contribuição de melhoria (BALEEIRO, 1984, p. 369). Não obstante o lastro da doutrina que sustenta tal entendimento, é de se reconhecer aplicável ao tributo em questão, muito embora a norma constitucional também a limite aos impostos, em função de uma compreensão orgânica do sistema constitucional tributário.

Decerto, a capacidade contributiva é manifestação da justiça tributária e decorre do princípio da isonomia. Assim, há que se reconhecer seu status de princípio-garantia do contribuinte e, como tal, verdadeira limitação constitucional ao poder de tributar. Cabe transcrever as palavras de BRITO22 entalhadas em artigo intitulado “Capacidade Contributiva”, in verbis:

o princípio da capacidade contributiva é corolário do princípio da isonomia, visto que este importa igual imposição para idêntica capacidade contributiva e pressupõe sempre, por parte do legislador ordinário, uma igualdade de situações tomadas em consideração, desde quando a noção de capacidade contributiva implica em uma avaliação da idoneidade do indivíduo para suportar a carga tributária. Uma idoneidade abstrata enquanto avaliada pelo legislador, mas, concreta, quando o for, pelo aplicador da norma ao caso específico. E essa imbricação da isonomia sobre a capacidade econômica do sujeito passivo da obrigação tributária chega ao ponto de se poder afirmar que são ambos princípios constitucionais que se integram, atuando como identificadores da medida das possibilidades econômicas a qual, para os causalistas, é a causa jurídica da imposição, cumprindo, por isso, ao juiz investigá-la como fundamento da tributação para que possa aplicar a norma tributária no caso concreto.

Vê-se, pois, ser a capacidade contributiva verdadeiro princípio geral do direito tributário com aptidão para irradiar influxo sobre todas as espécies tributárias e entidades tributantes.

Quanto ao elemento material da hipótese de incidência, tal qual já assentado, deve o exegeta buscar na legislação complementar a integração da norma constitucional. Assim, o CTN se mostra como norma de fundamental matiz para o preenchimento dos elementos do tipo do tributo em estudo.

Nesse contexto, tem-se que a contribuição de melhoria demanda a realização de obra pública que acarrete valorização imobiliária.

Como primeiro elemento do aspecto material, obra pública deve ser entendida como obra executada pelo poder público, direta ou indiretamente, voltada ao atendimento de fins públicos. Dito elemento ganha relevo quando se constata que o sinalagma existente na contribuição de melhoria tem, também, ligação direta com o custo da obra. Assim, o valor arrecado a título de contribuição de melhoria não pode ser superior ao custo total da obra.

Ainda acerca do sinalagma no caso em questão, é de se observar que deve haver uma equivalência entre o valor vertido aos cofres públicos a título de contribuição de melhoria e a valorização imobiliária individual.

Assim, por expressa disposição legal, o sinalagma, na contribuição de melhoria, é jurídico e financeiro, devendo o valor da prestação guardar equivalência jurídica e financeira com os custos da obra e a valorização experimentada pelo proprietário do imóvel.

Note-se, contudo, que a dita valorização imobiliária não se confunde com valor venal ou valor de mercado. Há que ser perquirido através de critérios específicos a quantificação representativa da valorização imobiliária. Só assim restará satisfeita a exigência legal para legitimar a exação.

Em relação ao aspecto espacial, tal qual as taxas, a contribuição de melhoria é reconhecidamente um tributo territorial, só sendo legítima sua exação no âmbito territorial da entidade federativa. Aqui, todavia, há um aspecto peculiar. Como a obra pública acarreta valorização restrita ao entorno da sua execução ou a regiões distantes, porém beneficiadas diretamente, há que ser observada a delimitação da zona beneficiada. Assim, apenas as zonas que efetivamente experimentaram uma valorização imobiliária em função da respectiva obra podem estar na abrangência do tributo.

Uma ressalva, porém. Como as áreas impactadas pela obra podem ter gradação diferenciada de valorização, é legítimo à Administração Pública instituir valores diferenciados de acordo com a zona beneficiada pela obra. Tal possibilidade visa materializar a própria justiça tributária.

Por fim, de suma importância para a configuração do tributo em questão é o elemento temporal. Decerto, muito se discute acerca da legitimidade de se instituir a contribuição de melhoria prévia à própria realização da obra pública, com respaldo em estudos técnicos detalhados dos custos e potencial valorização imobiliária. Não se afigura, contudo, legítimo tal proceder por mais de uma razão.

A uma, porque o próprio texto constitucional estabelece que só é possível a instituição da contribuição de melhoria decorrente de obra pública. Ora, se o tributo decorre da obra é elementar que esta deva preceder aquele. Não há decorrência antecedente – verdadeira contradição em termos – e, portanto, não é possível dita exação de forma prévia, ainda que pautada em estudos e relatórios técnicos.

A duas, em função da própria essência dessa espécie tributária. Com efeito, a contribuição de melhoria tem lastro no postulado da proibição do enriquecimento sem causa, objetivando evitar que toda a coletividade custeie obra que beneficiará destinatário específicos. Assim, permitir a tributação previamente à obra abriria possibilidade concreta de desvirtuar a proibição do enriquecimento sem causa na medida em que ainda não se teria a certeza – em que pese estudos técnicos pudessem estimar com algum grau de aproximação – do valor final da execução.

A três, por uma questão prática. É cediço que inúmeras obras em nosso país são deflagradas sem, contudo, virem a ser concluídas. E mais! Não é incomum casos em que obras públicas são licitadas, créditos orçamentários são abertos, empresas são contratas, contudo sequer é dado início à execução das mesmas. Em casos tais, os contribuintes deste tributo se viriam alijados de parcela do seu patrimônio sem a devida contraprestação por parte do poder público.

Vê-se, portanto, que o aspecto temporal da contribuição de melhoria exige a conclusão da obra da qual deve decorrer a valorização imobiliária.

4. A INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 149 E DOS §§ 4º, 6º E 7º DO ARTIGO 195 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Já restou asseverado que as contribuições integram o rol constitucional das prestações pecuniárias compulsórias. Ademais, restou também consignado que sua essência e regime jurídico-constitucional diferem dos tributos em geral. Neste ponto do trabalho, então, já se pode enfrentar a questão das contribuições dentro do todo orgânico que é a Constituição Federal de 1988.

A análise deve partir do artigo 149 da Constituição Federal, que estatui competir exclusivamente à União a competência para instituir duas modalidades de contribuição: as sociais e as de intervenção no domínio econômico, aqui insertas, também, aquelas formuladas no interesse de categorias econômicas ou profissionais.

De início, é possível extrair da formulação constitucional que o quanto já escandido acerca do sinalagma das prestações pecuniárias compulsórias tem aplicação às contribuições, sejam elas sociais ou de intervenção. Com efeito, tal qual explicitado no texto político, as contribuições só tem lugar em face de uma postura estatal consistente na prestação assistencial ou na atuação intervencionista em prol dos fins colimados no Estado dualista.

Tal situação, contudo, não se traduz no sinalagma, como já foi asseverado. Entrementes, para além da comutatividade da relação obrigacional de recolher as contribuições é fundamental, para sua legitimidade, que haja uma correspondência – equivalência – jurídica entre o que se recolhe e a prestação administrativa. Aqui reside o caráter sinalagmático das contribuições.

Outro ponto de importante destaque, logo de saída, reside na competência para a instituição das contribuições. Assevera, a Constituição Federal de 1988, ser a União o único ente político competente para instituição de contribuições outras que não a de melhoria. Contudo, frise-se, no específico caso das contribuições sociais para financiamento do regime previdenciário, a norma constitucional inserta no § 1º do aludido artigo 149 franqueia – no sentido de poder-dever – aos demais entes políticos, que mantenham fundo previdenciário próprio dos seus servidores públicos efetivos, a instituição de contribuição social para manutenção do respectivo regime previdenciário, advertindo que não poderá praticar alíquota inferior àquela utilizada pela União.

Feito este introito, adverte-se, por questões didáticas, a abordagem do tema se dará sob duas grandes vertentes, inciando-se pelas contribuições sociais e, posteriormente, enfrentando as contribuições de intervenção no domínio econômico.

Nesse passo, inicia-se pelo estudo das contribuições sociais escandidas no artigo 195 da Constituição Federal de 1988. A partir deste dispositivo pode-se identificar que a seguridade social será financiada a partir de contribuições sociais impostas ao empregador e incidente sobre a folha salarial, a receita ou faturamento e o lucro; ao trabalhador e demais segurados obrigatórios do regime geral de previdência; sobre a receita de concursos de prognósticos; e sobre o importador de bens ou serviços.

Aqui, impende destacar em que consiste este fim seguridade social. A exegese a ser feita desta associação de signos perpassa por tudo aquilo que já foi dito acerca do Estado dualista do desenvolvimento econômico e do bem-estar social. Decerto, é imperioso observar que os contornos modernos do Estado impõe a este a incumbência de inúmeras prestações administrativas voltadas para a assistência vital dos cidadãos. No específico caso da seguridade social, a própria Constituição, em seu artigo 194, estabelece que a mesma compreende um plexo de ações do poder público e da sociedade voltado para assegurar direitos relativos à saúde, previdência e assistência social.

Assim, a inteligência do caput do artigo 195, integrado pelo artigo 194, ambos da Constituição Federal de 1988, traduz o exercício do poder de soberania estatal que legitima que se imiscua no patrimônio particular e retire-lhe parcela suficiente para fazer frente aos custos financeiros da sua atuação em prol da sociedade. Não diverge do quanto exposto o pensamento de BRITO23, assim sintetizado:

o disposto no art. 195 sinaliza para o dever jurídico público de geração de meios para manter a seguridade social. Sob esse ângulo, a prestação é de toda a sociedade civil; mas há um outro ângulo em que se identifica um dever público jurídico, qual seja a prestação é, também, do Estado brasileiro por todas as entidades intraestatais que exprimem a descentralização política caracterizadora da Federação brasileira.

Conquanto a soberania permita essa ingerência da potestade estatal no patrimônio particular, DÓRIA24 ensina que de há muito impõe-se limites a tal proceder num Estado que se pretenda democrático. Assim, merece menção a disposição contida no § 6º, do citado artigo 195 da Constituição Federal de 1988.

Dispõe o citado dispositivo que as contribuições só podem ser exigidas após o decurso de noventa dias da data de publicação da lei que a instituiu ou modificou, não se lhes aplicando o princípio tributário da anterioridade consubstanciado no artigo 150, III, b, CF/88.

Tal regra visa a preservação do patrimônio do particular e prestigia o postulado da não surpresa, garantindo-lhe prazo razoável para adequar-se à exação. Não obstante, duas observações são de suma importância.

A uma, pela própria teologia da norma – proteção do particular em face da ingerência estatal em sua propriedade privada –, o signo “modificou” há que ser interpretado dentro de uma pragmática constitucional.

Aqui, pede-se vênia para expor o raciocínio do professor Edvaldo Brito25 acerca do Direito como um objeto cultural e, portanto, linguagem. Ensina o mestre muritibano que o direito não carece de precisão, antes, o seu caráter científico o impõe, e que, sendo um objeto cultural, o direito, por excelência, é linguagem. Assim, imperiosa sua análise, também, sob os auspícios da teoria da comunicação.

Nesse passo, o veículo normativo há de ser analisado sobre seu aspecto semântico, sintático e pragmático, donde o primeiro guarda com a representação do signo; o segundo diz com a relação dos signos ente si; e o terceiro refere-se ao uso do signo e os sujeitos envolvidos na comunicação (BRITO, 1993, p. 17). Vê-se, pois, que qualquer expressão exposta no na Constituição só terá seu real alcance extraído se perpassar por uma detida análise semântica, sintática e pragmática. Dito isto, é de se concluir que ao se referir que a incidência da norma que modifique a exação de uma contribuição já existente só será válida noventa dias após a publicação da respectiva lei só tem lugar em caso de majoração da cobrança. Decerto, sendo a modificação benéfica ao particular, uma análise pragmática do discurso constitucional permite concluir pela sua aplicabilidade imediata, posto que a regra só existe em benefício do particular.

Um segundo aspecto relevante constante na norma do § 6º do artigo 195 em questão diz com a ressalva à limitação constitucional ao poder de tributar inserta no artigo 150, III, b, também da CF/88. Dita ressalva, parece deixar claro a opção do constituinte de não deferir o mesmo tratamento dos tributos às contribuições sociais. É dizer, a Constituição, com normas desse jaez, expressamente dispõe que o regime constitucional das contribuições se difere daquele estabelecido para os tributos. Tal constatação só vem a corroborar o até aqui escandido acerca da natureza não tributária de tais prestações pecuniárias compulsórias.

Também merce um enfrentamento detalhado a norma disposta no § 7º do multicitado artigo 195 da CF/88. Estabelece tal preceito que são “isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei” (BRASIL, 1988). De igual modo, dois aspectos merecem destaque neste dispositivo.

Conquanto os conceitos de isenção e imunidade não estejam positivados, remontando a MARSHALL26, no caso Mac Culloch vs. Maryland, pode-se encontrar o matiz que lhe dá o direito constitucional. Com efeito, a norma de imunidade, diferente da isenção, goza de assento constitucional e atua do campo da própria competência da potestade estatal, retirando-lhe situações ou pessoas de sua incidência.

Assim, ao analisar o citado § 7º do artigo 195, mais uma vez com baldrame em BRITO27, há de ser encarado o discurso jurídico sob o prisma da teoria da comunicação, em ordem à observância da semântica, sintática e pragmática. Nesse contexto, em que pese a norma constitucional se refira à isenção, em verdade, de imunidade se trata. Decerto, o dispositivo ora analisado, com assento constitucional, retira da potestade estatal a competência para instituir contribuição em face das entidades beneficentes de assistência social que atendam os requisitos exigidos em lei.

O próprio Supremo Tribunal Federal, muito embora equivocadamente se refira à imunidade tributária, reconheceu nos autos do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 22.192/DF, esse aspecto da teoria da comunicação na interpretação do direito. Colhe-se as seguintes palavras do Ministro Relator, Celso de Mello28, proferidas em seu voto:

A cláusula inscrita no art. 195, § 7º, da Carta Política – não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para seguridade social –, contemplou as entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que por elas preenchidos os requisitos fixados em lei (…)

Convém salientar que esse magistério doutrinário reflete-se na própria jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, que já identificou, na cláusula inscrita no art. 195, § 7º, da Carta Política, a existência de típica garantia de imunidade estabelecida em favor das entidades beneficentes de assistência social.

A propósito da confusão feita pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento acima citado, não há que confundir a presente regra de imunidade de contribuição com a imunidade tributária inscrita no artigo 150, VI, c, da CF/88. Eis o segundo aspecto a ser destacado neste ponto do trabalho.

Entrementes, a imunidade de contribuição alcança as “entidades beneficentes de assistência social que atendam as exigências previstas em lei” (BRASIL, 1988) ao passo que a imunidade tributária protege “as instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei” (BRASIL, 1988). Vê-se, portanto, que a imunidade de contribuição tem um espectro mais abrangente que a correlata imunidade tributária neste desempenho, recursos financeiros são necessários, valendo-se o Estado do seu poder de soberania para adentrar no patrimônio particular e retirar-lhe a parcela suficiente para tanto.

Antes de enfrentar o regramento das contribuições de intervenção no domínio econômico e de interesse de categoria econômica ou profissional, uma última observação, porém.

Decerto, o multicitado artigo 195 da CF/88 traz o § 4º, reconhecido como norma de outorga de competência residual para instituição de contribuições. Reza tal dispositivo que “a lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I” (BRASIL, 1988).

Muito embora num primeiro momento o dispositivo pareça estabelecer a possibilidade de instituição de contribuições sociais outras que não as previstas na Constituição Federal, numa análise do discurso normativo, sob o viés da teoria da comunicação, é de se notar que tal disposição mascara verdadeira competência residual para imposição de impostos, mais especificamente impostos com destinação específica (BRITO, 2015, p. 179).

Com efeito, a norma ao fazer remissão ao artigo 154, I, da Constituição Federal está franqueando a possibilidade de imposição tributária especificamente destinada para o financiamento da seguridade social na via do imposto, desde que seja “não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição” (BRASIL, 1988).

Não obstante, a análise da norma não há de ficar restrita a este aspecto. Note-se que o dispositivo confere uma dupla competência. Primeiro, estatui ser da competência da União a instituição legal de novas fontes de recursos. É dizer, compete à União, através de lei, eleger novas grandezas econômicas, diversas das já especificadas no texto constitucional, para servir como base imponível da exação. Num segundo momento, que não se confunde com primeiro, outorga competência para União instituir novas contribuições – leia-se, impostos com destinação específica – para financiar.

A doutrina pátria não descurou para tal distinção (BRITO, 2015, p. 179. AMARO, 2012, p. 77) e ressalta que os instrumentos normativos do exercício de ambas competências é diverso. Entrementes, a Carta Política outorga à Lei Ordinária o papel e eleger quais serão as novas fontes de custeio da seguridade social, ao passo que a instituição das contribuições – impostos com destinação específica – só podem sê-lo na via da Lei Complementar.

Retornando ao caput do artigo 149, volta-se os olhos para as contribuições de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias econômicas e profissionais, com a advertência que serão expostos apenas os aspectos gerais, já que o presente trabalho não se propõe a descer às minúcias de todas elas.

Conforme já se assentou, o Estado brasileiro carateriza-se por ser dualista de desenvolvimento econômico e do bem-estar social, legitimando seu papel intervencionista no campo econômico sempre voltado para as finalidades públicas que colima.

É assente que dita intervenção pode se dar de maneira direta, nos termos do artigo 173 da Constituição Federal de 1988, ou indireta, atuando como agente regulador e indutor da economia. Especificamente nessa feição de intervenção indireta é que se legitima a instituição de contribuições de intervenção no domínio econômico.

Aqui, cabe observar, não poderá o Estado afastar-se do caráter sinalagmático das contribuições, o que enseja afirmar que toda exação nessa seara deve corresponder a uma efetiva atuação estatal onde esta deve guardar equivalência jurídica – sinalagma – com o valor vertido aos cofres públicos.

5. AS FUNÇÕES DA LEI COMPLEMENTAR NO SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO DAS PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS COMPULSÓRIAS

Dentro do tema que se vem abordando avulta chamar atenção para o papel da Lei Complementar, mormente porque o texto constitucional a exige para inúmeras situações que o tangencia. Nesse ponto, conquanto seja dogmaticamente caracterizada pela simples exigência de quorum qualificado para sua aprovação, a lei complementar tem sua essência em aspectos muito além do que o procedimental.

Com efeito, como seu nome sugere, o papel normativo da legislação complementar é integrar um outro documento normativo de fundamental importância para a sociedade, a Constituição.

Victor Nunes Leal29 chama atenção para esse fundamental papel da legislação complementar no Estado Democrático. Sem olvidar para outros aspectos, o citado jurista salienta que a lei complementar se destina a trazer a regulação de dispositivos constitucionais que não possuem aptidão para autoexecução.

Vê-se, portanto, nessa ótica, que a lei complementar à Constituição é vetor direto e necessário dos valores consagrados no texto político. Não obstante, uma advertência se faz fundamental. Conquanto seu papel seja integrativo do texto constitucional, a lei complementar não goza de status hierárquico diferenciado dentro do sistema normativo, adotando-se o escalonamento do ordenamento jurídico de KELSEN30.

O próprio VICTOR NUNES LEAL31 ensina que:

A designação de leis complementares não envolve, porém, como é intuitivo, nenhuma hierarquia do ponto de vista da eficácia em relação às outras leis declaradas não complementares. Todas as leis, complementares ou não, têm a mesma eficácia jurídica, e umas e outras se interpretam segundo as mesmas regras destinadas a resolver os conflitos de lei no tempo.

Ademais, não custa asseverar, que o papel de integração do texto constitucional assumido pela lei complementar não lhe outorga legitimidade para subverter a norma insculpida na Carta Política. É dizer, a integração deve ser de acordo com os valores plasmados no texto constitucional, sendo defeso, não só à lei complementar como a qualquer outra, discriminar onde a Constituição não o fez, ou mesmo criar óbices ilegítimos à efetividade da norma constitucional.

Estabelecidas tais balizas, cumpre destacar os pontos dentro do sistema constitucional de prestações pecuniárias compulsórias onde se exige a edição de lei complementar.

De saída, tem-se o artigo 146 da CF/88, inserto no âmago do sistema constitucional tributário, o qual exige que lei complementar disponha sobre conflito de competência entre os entes federativos. Também é papel da lei complementar regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, bem como estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, mormente acerca da definição dos tributos, fato gerador, base de cálculo e contribuintes dos impostos previstos na Constituição. Cabe à lei complementar, ainda, dispor sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.

A Emenda Constitucional nº 42/2003 fez incluir a alínea d ao inciso III do artigo 146, estatuindo caber à lei complementar definir o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, bem como franqueando à mesma via a instituição de regime simplificado de arrecadação tributária.

No campo do quanto já escandido acerca da intervenção do Estado na economia com vista ao atendimento do desenvolvimento econômico e do bem-estar social, a mesma Emenda Constitucional inseriu o artigo 146-A na Constituição Federal, permitindo, por meio de lei complementar, o estabelecimento de critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência.

Ainda no âmbito do sistema tributário, de se destacar o artigo 150, I, que atribui competência residual para instituição impostos à União, sempre por meio de lei complementar.

Em relação à competência tributária dos Estados federados, especificamente quanto ao imposto sobre circulação de mercadorias e serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação – ICMS, é papel da lei complementar: definir seus contribuintes; dispor sobre substituição tributária; disciplinar o regime de compensação do imposto; fixar, para efeito de sua cobrança e definição do estabelecimento responsável, o local das operações relativas à circulação de mercadorias e das prestações de serviços; excluir da incidência do imposto, nas exportações para o exterior, serviços e outros produtos além dos mencionados no inciso X, “a”; prever casos de manutenção de crédito, relativamente à remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de serviços e de mercadorias; regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. definir os combustíveis e lubrificantes sobre os quais o imposto incidirá uma única vez, qualquer que seja a sua finalidade, hipótese em que não se aplicará o disposto no inciso X, b; fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço.

Já na competência tributária dos Municípios, quanto ao imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS, cabe à lei complementar: fixar as suas alíquotas máximas e mínimas; excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior; regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.

Deixando o sistema tributário e passando o enfoque às demais prestações pecuniárias compulsórias estabelecidas na Constituição Federal de 1988, é de se destacar o papel da lei complementar na instituição do empréstimo compulsório, por exemplo.

Ademais, quanto às contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico e de interesse de categoria econômica e profissional, à simetria do que ocorre com os tributos, a Constituição impôs à lei complementar o papel de definir normas gerais da exação, tais quais: fato gerador, base de cálculo e contribuintes das contribuições previstas na Constituição; dispor sobre obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência das contribuições; o adequado tratamento arrecadatório ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; e o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, bem como franqueando à mesma via a instituição de regime simplificado de arrecadação.

Quanto à competência residual para instituição de contribuições – impostos com destinação específica –, estabelecida no § 4º do artigo 195, relembre-se o que já fora dito. É dizer, cabe à lei ordinária e eleição de novas grandezas econômicas, diversas das já especificadas no texto constitucional, para servir como base imponível da exação. Contudo, é papel da lei complementar a instituição das contribuições que incidirão sobre as ditas fontes de custeio.

Uma última advertência se faz necessária, todavia. O artigo 62, § 1º, III, incluído pela Emenda Constitucional nº 32/2001, proscreve em absoluto a possibilidade de matéria atribuída à legislação complementar figurar como objeto de medida provisória. Assim o é, porque dado o caráter integrativo à Constituição da lei complementar, não soa republicano franquear ao Poder Executivo, que não tem representação plural de todos os setores inseridos na sociedade como o tem o Legislativo, a competência para normatizar diretamente matérias de cunho relevantíssimo para o direito constitucional.

Vê-se, portanto, que em sede de prestações pecuniárias coativas, o papel da lei complementar é fundamental por tocar pontos extremamente sensíveis da República Federativa do Brasil como, por exemplo, direitos e garantias fundamentais e o pacto federativo.

6. CONCLUSÕES

Do estudo realizado, o que se observa é que as prestações pecuniárias compulsórias no sistema constitucional brasileiro devem ser analisadas sob o prisma dos fundamentos e dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, bem assim dos valores que norteiam a ordem econômica e a ordem social deste Estado dualista do desenvolvimento econômico e do bem-estar social.

Nesse passo, é de fundamental importância a percepção da atuação do Estado enquanto agente primordial de promoção da assistência vital. É dizer, não há como descurar que os contornos hodiernos do Estado estão voltados para o fornecimento de prestações administrativas aos particulares, mormente na gestão de interesses privados como, por exemplo, no campo da infortunística.

De tal constatação decorre que o Estado necessita angariar recursos para fazer frente ao plexo de atribuições a si conferidas. Não obstante, estes recursos não podem ser retirados daqueles destinados à coletividade indeterminadamente considerada, por uma questão de justiça. Assim, floresce no campo constitucional a previsão de prestações coativas sinalagmáticas, donde a prestação administrativa voltada à assistência vital guarda equivalência – jurídica – com os valores então vertidos pelos interessados.

Trazendo esta percepção ao campo da investigação que ora se conclui, agregado às distinções entre os regimes constitucionais tributário e das prestações coativas não tributárias, não soa ilegítimo afirmar, como fez o Supremo Tribunal Federal, que os empréstimos compulsórios e as contribuições sociais, por exemplo, possuem natureza tributária. Antes, tudo que foi exposto ao longo do trabalho impõe conclusão diametralmente oposta.

Vê-se, pois, diante da coexistência de prestações pecuniárias compulsórias tributárias e não tributárias, devendo, ainda, esclarecer, por importância prática, o regime das contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico e de interesse de categoria econômica e profissional.

Com efeito, o modelo dogmático-jurídico adotado em âmbito constitucional para as contribuições não deixa dúvidas quanto ao sinalagma existente entre prestação e contraprestação, bem assim no que toca ao regime jurídico próprio destas, inconfundível com o regime jurídico tributário.

Ademais, restou esclarecido o papel da lei complementar no sistema constitucional de prestações pecuniárias coativas, pontuando os casos em que a mesma é exigida e explicando a teleologia de tal exigência. Entrementes, é papel da lei complementar integrar o texto constitucional, fazendo-se imprescindível em pontos sensíveis do regime democrática da República Federativa do Brasil.

REFERÊNCIAS

1 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5ª ed. São Paulo: Noeses, 2010, p. 171-172.

2 SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p, 21.

3 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 115.

4 BRITO, Edvaldo. Direito Tributário. São Paulo: Atlas, 2015, p. 56.

5 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 59.

6 MICHELI, Gian Antonio. Curso de direito tributário. Tradução de Marco Aurélio Greco e Pedro Luciano Marrey Jr. São Paulto: Revista dos Tribunais, 1968, p. 65.

7 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. Trad. José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 621.

8 BRITO, Edvaldo. Capacidade contributiva. Caderno de pesquisas tributárias, vol. 14. São Paulo: Resenha tributária, 1989, p. 322.

9 BRITO, Edvaldo. Princípios constitucionais tributários. Caderno de pesquisas tributárias – nº 18. São Paulo: Resenha tributária, 1993, p. 556.

10 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 67.

11 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 74.

12 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 2ª ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 1975, p. 139.

13 BRITO, Edvaldo. Aspectos constitucionais da tributação. In: As vertentes do direito constitucional contemporâneo. São Paulo: América jurídica, 2002, p. 645-646.

14 AMARO, Luciano. Direito Tributário. 18ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 70-72.

15 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 91-92.

16 DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Princípios constitucionais tributários e a cláusula do due process of law. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964, p. 50-51.

17 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 24ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 62.

18 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1772/MG. Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Governador do Estado de Minas Gerais e Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, 15 de abril de 1998. In: Diário da Justiça (Brasília), 08 de setembro de 2008. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=347258. Acesso em 02 de maio de 2016.

19 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Questão de Ordem em Recurso Extraordinário nº 576.321/SP. Município de Campinas, Helenice Bérgamo de Freitas Leitão e outro. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, 04 de dezembro de 2008. In: Diário da Justiça Eletrônico – DJe (Brasília), 13 de fevereiro de 2009. Acesso em 02 de maio de 2016.

20 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 29. Relator Ministro Ricardo Lewandowski, 04 de dezembro de 2008. In: Diário da Justiça Eletrônico – DJe (Brasília), 13 de fevereiro de 2009. Acesso em 02 de maio de 2016.

21 JUSTEN FILHO, Marçal. Sujeição passiva tributária. Belém: CEUJP, 1986. p. 231.

22 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 1989, p. 324.

23 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 2015, p. 167.

24 DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Op. Cit. 1964, p. 33-37.

25 BRITO, Edvaldo. Limites da revisão constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1993, p. 11-24.

26 MARSHALL, John. Decisões Constitucionais. Trad. Américo Lobo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903, p. 104-131

27 BRITO, Edvaldo. Op. Cit. 1993, p. 17.

28 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 22.192/DF. Associação Paulista da Igreja Adventista do Sétimo Dia e União Federal. Relator Ministro Celso de Mello, Primeira Turma, 28 de novembro de 1995. In: Diário da Justiça (Brasília), 19 de dezembro de 1996. Acesso em 03 de maio de 2015.

29 LEAL, Victor Nunes. Leis complementares da constituição. In: Revista de Direito Administrativo. Vol. VIII.Rio de Janeiro: 1947, p. 381.

30 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. José Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 104-106.

31 LEAL, Victor Nunes. Op. Cit. 1947, p. 382.

Eugenio Nunes Silva

Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; Bacharel em direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz - UESC; Pesquisador bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM. Procurador do Estado do Amazonas. Advogado.

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