A “URV” tributária e o fim da guerra fiscal do ICMS

Eurico Marcos Diniz de Santi, Isaias Coelho, Rodrigo Keidel Spada

É impossível reformar o ICMS [1]. Não é viável negociar efeitos contingentes, futuros e passados, de centenas de incentivos fiscais do ICMS embalados em mais de dezena de formas, simultaneamente, com 27 Estados da federação. O caminho para resolver a guerra fiscal do ICMS é substituir o carcomido ICMS por um novo IMPOSTO GERAL SOBRE O CONSUMO estadual (IGC), simples, neutro, transparente [2], isonômico e que funcione como poderoso instrumento de arrecadação, pois a função da moderna tributação (IVA 4.0) [3] não é a de distribuir favores fiscais e renda: isso é papel da lei orçamentária anual (LOA).

Os incentivos fiscais e regimes especiais devem ser eliminados, abrindo espaço para a adoção de alíquotas estaduais uniformes e mais moderadas. Sem privilégios, a tributação se torna mais justa e onde todos pagam, todos pagam menos [4].

O IMPOSTO GERAL SOBRE O CONSUMO (IGC), se implantado primeiramente nos Estados pode funcionar como uma URV tributária (“unidade real de valor”) para os Estados. A experiência de estabilização da URV no Brasil foi uma das mais engenhosas e bem-sucedidas da história da humanidade. Surgiu em 1994 como novo paradigma monetário para a implantação do PLANO REAL, funcionando como nova referência e estratégia educacional de combate à inflação [5].

O novo IGC pode servir como solução para a crise fiscal dos Estados. O IGC resgata a integralidade da base tributária do consumo para os Estados, fortalece a federação [6], pois adiciona a materialidade dos SERVIÇOS à competência atual dos entes federativos.

Em acordo inédito no Brasil, os Fiscos estaduais/municipais poderiam arrecadar o IGC e repassar parte do valor arrecadado à União (absorvendo o PIS/COFINS, gradativamente) e para os municípios (eliminando o ISS, gradativamente).

O Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) poderia assumir a função de verdadeiro órgão de coordenação federativa dos Estados, destinado a regular a implantação e as compensações do regime de transição para o novo tributo [7]. É jogo de ganha-ganha em que não há perdedores.

A estratégia de novo IGC MODELO se justifica pela grande contaminação do ICMS, que está CORROÍDO E DESGASTADO por incontáveis isenções, reduções de base de cálculo [8], incentivos e regimes especiais. Possibilita fazer a transição em prazo longo, permitindo a CONVALIDAÇÃO DOS ATUAIS INCENTIVOS DO ICMS SEM COMPROMETER O FUTURO [9].

Propõe-se que o NOVO IGC ESTADUAL seja criado com uma alíquota inicial de 1%, reduzindo-se compensatoriamente as alíquotas do ICMS. A vigência inicial do IGC com alíquota de 1%, durante dois anos, permitirá avaliar adequadamente o funcionamento deste imposto e estimar seu potencial de arrecadação. Após este período de teste, a alíquota do IGC seria elevada progressivamente e a do ICMS, reduzida progressivamente, completando-se a transição em 10 anos. Neste período de transição do ICMS para o IGC, a arrecadação seria constante, sem aumento de carga tributária real: o aumento do IGC corresponderia exatamente à redução do ICMS.

A segurança jurídica para os contribuintes e para o Fisco exige um período longo de transição, sendo, ao fim, a alíquota nominal do IGC (mesmo sendo “por fora” e completamente não-cumulativa com crédito financeiro), segundo nossas estimativas, inferior à alíquota atual de 18% do ICMS. Após esta transição, a alíquota derradeira poderá ser aumentada para todos ou reduzida para todos contribuintes do Estado, conforme acordo político definido nas urnas, mediante deliberação do consumidor-eleitor.

O prazo de transição de 10 anos permite que os incentivos do ICMS sejam CONVALIDADOS e oferece horizonte de futuro para que as empresas se ajustem e que novas políticas de incentivo sejam redesenhadas mediante instrumentos legais mais apropriados, vinculados ao orçamento público. O objetivo inicial é a uniformização da legislação nacional da tributação estadual sobre o consumo, criando novo cenário para o empreendedorismo no Brasil, sem prejuízo da arrecadação para todos os Estados.

O objetivo final é que União e municípios adotem o novo modelo institucional, unificando a tributação sobre o consumo em todo território nacional.

NÃO HAVERÁ CUSTOS DE ADEQUAÇÃO para os contribuintes. NEM NOVA OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA com a implementação do novo IGC porque NOTA FISCAL ELETRÔNICA (NF-e) e SISTEMA PÚBLICO DE ESCRITURAÇÃO DIGITAL (SPED) serão utilizados, agora, para SIMPLIFICAR A VIDA DO CONTRIBUINTE: no IGC, o lançamento será DE OFÍCIO [10].

O contribuinte responsável apenas informa o fato gerador via NF-e e SPED, tornando-se RESPONSÁVEL pela retenção e recolhimento do IGC devido que será formalizado em boleto que receberá para pagamento do IGC devido cujo crédito será constituído e formalizado pelo Fisco. É o fim da MALDIÇÃO DO LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO [11].

O contribuinte do novo IGC não demandará custos de pareceristas e consultores tributários para pagar o novo tributo. É o próprio agente fiscal que cuida de informar e de realizar a interpretação autêntica da legalidade tributária. No IGC, o direito penal tributário funciona de forma eficiente: (i) se informar fato gerador falso, fica qualificado o crime de fraude; (ii) se retiver o imposto e não recolher para o Estado, fica qualificado o responsável tributário como depositário infiel.

Nesse modelo, o AGENTE FISCAL ESTADUAL TORNA-SE A DERRADEIRA VOZ DA LEGALIDADE. Investe-se como AUTORIDADE dos jus diceri (enunciar o direito). Sai o Fisco do paradigma do crime-e-castigo e inicia-se uma nova fase da administração tributária brasileira voltada para o PARADIGMA DO SERVIÇO PÚBLICO, no qual o serviço de interpretação dos critérios legais da tributação é central.

Empodera-se, assim, o agente fiscal como AUTORIDADE LEGAL PROTAGONISTA DO SENTIDO E ALCANCE DO IGC [12].

Dez são as razões para agentes fiscais, associações de auditores e sindicatos (por exemplo, AFRESP, SINAFRESP, FEBRAFITE, UNAFISCO, SINDIFISCO, ANFIP, SINDIRECEITA e outros) apoiarem esse novo modelo de tributação:

(1) regras claras e facilidade de cobrança: controles mais simples permitirão acompanhar prontamente os responsáveis pelo imposto e cobrar rapidamente os inadimplentes;

(2) valorização do trabalho do auditor: com a automação dos controles de débito e crédito, os auditores poderão se dedicar a investigações mais sofisticadas (esquemas de fraude etc.);

(3) maior cobertura e arrecadação: mecanismo simples de apuração e cobrança permitirá aplicar o imposto a responsáveis que hoje, devido à complexidade do ICMS, precisam de regimes simplificados;

(4) fim dos conflitos com as prefeituras: com a integração de ICMS e ISS, desaparece o conflito de base entre os dois tributos;

(5) maior potencial de arrecadação futura: o consumo de bens se expande em velocidade muito menor que o consumo de serviços, portanto a introdução do IGC pode salvar o ICMS da estagnação;

(6) maior elasticidade: por ter o IGC base muito ampla, sua arrecadação tende a crescer rapidamente quando a economia cresce;

(7) melhor governança: a eliminação de privilégios tributários restituirá ao ICMS seu papel de arrecadar, sem brechas para malfeitos;

(8) mais respeito do cidadão pelo Fisco: com a reiterada restituição dos créditos acumulados em curto prazo, as fazendas estaduais já não serão vistas como caloteiras e injustas e isso fará aumentar o respeito pelos funcionários fiscais;

(9) melhor ambiente de negócios: com legislação uniforme em todo o país, o IGC será facilmente entendido e cumprido; e

(10) maior protagonismo dos Fiscos estaduais: legislação uniforme do IGC fará recair sobre os Fiscos estaduais o múnus de sustentar esse tributo importantíssimo nos três níveis de governo.

No IGC, a não cumulatividade é plena: extingue-se a anomalia do “crédito físico”, da “substituição tributária” e garante devolução imediata dos créditos acumulados, qualquer que seja a sua origem. O IGC incide sobre base ampla, alcançando o universo de bens e serviços e todas as formas de organização da atividade econômica.

A alíquota do IGC deve ser a mesma para todos os bens e serviços: a tributação não deve depender da classificação de bens e serviços. A alíquota única é essencial para o empoderamento do cidadão, como contribuinte efetivo e protagonista do debate político sobre carga tributária. O IGC respeita a Constituição Federal e desonera completamente as exportações de bens e serviços, garantindo-se a manutenção integral do crédito (tributação no destino): o crédito acumulado deve ser imediatamente ressarcido.

O IGC acaba com as práticas do cálculo “por dentro” e cria cenário para favorecer ao investimento e à exportação, pois coloca fim na retenção indevida de créditos acumulados. Incentiva a livre concorrência, melhora o ambiente de negócios e retira o oxigênio da guerra fiscal [13], pondo um ponto final na insegurança jurídica e na indústria do contencioso tributário, promovendo o exercício da cidadania fiscal e a responsabilidade fiscal dos governantes.

O IGC constitui avanço importante da reforma política, pois empodera o cidadão consumidor como contribuinte de fato e de direito, aproximando o consumidor eleitor do debate relevante sobre financiamento do Estado, dimensão da carga tributária e qualidade da contraprestação de serviços públicos (educação, saúde, segurança, infraestrutura etc). Sem organização estatal eficiente, não há recursos que bastem para custear os direitos e garantias fundamentais do cidadão.

É hora de avançar sobre novas tecnologias [14] para construir o federalismo brasileiro do Século XXI.

O amanhã chegou: representantes da sociedade civil, professores, advogados e, em especial, os servidores públicos que atuam nas três esferas do Fisco nacional serão os grandes protagonistas das mudanças de que tanto precisamos para nos modernizarmos e nos tornarmos referência na tributação sobre o consumo para América Latina, para a Europa e para o mundo! [15]

Melhorar o Brasil?

Sim, nós podemos!

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[01] Ver proposta do Centro de Cidadania Fiscal – CCiF, no artigo “É hora da reforma da qualidade da tributação sobre o consumo”
http://jota.uol.com.br/e-hora-da-reforma-da-qualidade-na-tributacao-sobre-o-consumo (no Jota).

[02] Ver artigo “ Observatório do Carf – Segredo, poder e o que a Bahia tem?”:http://jota.uol.com.br/observatorio-carf-segredo-poder-e-o-que-bahia-tem (no Jota).

[03] Ver artigo “Em defesa de um IVA nacional versão 3.0 e modelo mundial”: http://jota.uol.com.br/em-defesa-de-um-iva-nacional-versao-3-0-e-modelo-mundial (no Jota).

[04] Como diz Padre Antônio Vieira, no sermão proferido na Igreja das Chagas (Lisboa) em 1642: (…) O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república, são os imoderados tributos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e, contudo, todos o pagam, e ninguém se queixa, porque é tributo de todos. Se uns homens morreram e outros não, quem levara em paciência esta rigorosa pensão da mortalidade? Mas, porque não há privilegiados, não há queixosos.Imitem as resoluções políticas o governo natural do Criador e reparta-se por todos o peso, para que fique leve a todos. Os mesmos animais de carga, se lha deitam toda a uma parte, caem com ela… Se se repartir o peso com igualdade de justiça, todos o levarão com igualdade de ânimo: Porque ninguém toma pesadamente o peso que se lhe distribuiu com igualdade – disse o político Cassiodoro. (…)

[05] Ver “URV” TRIBUTÁRIA vs CPMF http://jota.uol.com.br/urv-tributaria-versus-cpmf (no Jota).

[06] Artigo”Narcos Tributário e a reabilitação da federação, do voto, dos poderes e da legalidade”: http://jota.uol.com.br/narcos-tributario-e-a-reabilitacao-da-federacao-do-voto-dos-poderes-e-da-legalidade (no Jota).

[07] O Centro de Cidadania Fiscal propõe a deliberação opcional entre vários modelos possíveis de arrecadação e compensação transitória: alíquota zero interestaduais, câmara de compensação e modelo centralizado.

[08] Artigo: “5 usos abusivos do termo “redução de base de cálculo” e o horror da Guerra Fiscal”: http://jota.uol.com.br/5-usos-abusivos-do-termo-reducao-de-base-de-calculo-e-o-horror-da-guerra-fiscal (no Jota).

[09] Ver “Nossa Reforma Tributária” http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,nossa-reforma-tributaria,10000060810 (no Estadão).

[10] Ver “As 20 vantagens da Contribuição Geral sobre o Consumo”: http://jota.uol.com.br/20-vantagens-da-cgc-x-piscofins-reforma-da-qualidade-sistema-tributario (no Jota).

[11] Ver “O ‘iluminado’ ou ‘a maldição’ do lançamento por homologação” http://jota.uol.com.br/o-iluminado-ou-a-maldicao-do-lancamento-por-homologacao (no Jota).

[12] James Alm (Georgia State University) insiste na importância de superar o “paradigma do crime” que, desde a década de 1960, pauta a maioria das pesquisas em economia. Trata-se de ir além da ideia de que o comportamento do indivíduo funda-se em uma escolha racional que visa sempre à maximização da utilidade e de que, por extensão, para aumentar a arrecadação, o fisco deve utilizar quase que exclusivamente mecanismos de detecção e punição (auditorias e multas). O autor demonstra, por meio de pesquisas empíricas realizadas na América Latina que, mesmo nos países que possuem baixo índice de cumprimento de obrigações tributárias (compliance), a evasão nunca cresce até os níveis previstos por uma análise que tem em conta apenas elementos de ordem financeira. Há, portanto, outros fatores que devem ser considerados se quisermos compreender os motivos pelos quais contribuintes cumprem normas tributárias (também por isso, a associação entre economia com outras disciplinas, como teoria social e ciência política, é fundamental).Alm, ao lado de Richard Bird (University of Toronto), mostra que as Administrações Fiscais que tem atingido os melhores resultados são aquelas que levam tal diversidade de fatores em conta e aprenderam não só realizar auditorias e aplicar multas de modo eficiente, mas também a utilizar instrumentos capazes de impulsionar a construção de um relacionamento de confiança com contribuintes e, sobretudo, alinhar normas tributárias e normas sociais. Cf. Capítulo ”DIAGNÓSTICO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO BRASILEIRO: SIGILO FISCAL, AUTISMO DO MODELO DE CIVIL LAW E PATRIMONALISMO DE ESTADO” do livro Kafka,Alienação e Deformidade da Legalidade: Exercício do Controle Social, Rumo à Cidadania Fiscal.

[13] Artigo “Arquitetura da destruição: o ICMS e seus 8.709.120 sistemas”: http://jota.uol.com.br/arquitetura-da-destruicao-o-icms-e-seus-8-709-120-sistemas (no Jota.)

[14] Artigo “Voz da legalidade digital do ICMS”: http://jota.uol.com.br/voz-da-legalidade-digital-no-icms (no Jota).

[15] Cf. Eurico de Santi, Kafka,Alienação e Deformidade da Legalidade: Exercício do Controle Social, Rumo à Cidadania Fiscal, p. 595.

Eurico Marcos Diniz de Santi, Isaias Coelho, Rodrigo Keidel Spada

Eurico Marcos Diniz de Santi Diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). Professor de direito da FGV Direito SP e coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV.

Isaias Coelho Diretor do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF). Doutor em economia. Coordenador e professor no programa GVlaw da FGV Direito SP, pesquisador sênior do NEF e consultor internacional em tributação.

Rodrigo Keidel Spada Agente Fiscal de Rendas -SP. Formado em Engenharia de Produção (UFSCar) e Direto (Unesp). Pós Graduado em Gestão Empresarial (FIA-USP). Foi Diretor Financeiro e atualmente é Presidente da Associação dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (AFRESP) e Vice-Presidente da Federação Brasileira de Fiscais de Tributos Estaduais (FEBRAFITE).

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