A reforma tributária criará contencioso administrativo e judicial?
Marcus Livio Gomes
A reforma tributária finalmente foi votada na Câmara dos Deputados, em um raro alinhamento político entre os setores econômicos mais relevantes, o Poder Executivo e as forças políticas que comandam o Congresso, em especial a Câmara.
Através da PEC 45-A/2019[1], a casa legislativa deu um passo importante rumo à criação de um novo sistema tributário para o Brasil, com fundamento nos princípios que regem o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), utilizado atualmente em mais de 170 países ao redor do globo, no modelo dual, com o IBS unificando o ICMS e o ISS, e a CBS unificando o PIS e a Cofins, e, ainda, com a criação do Imposto Seletivo (IS), que vai substituir o IPI.
O placar da votação revela um fato relevante: 375 votos a favor, 113 contra e 3 abstenções, o que sinaliza um consenso político raro, que demandou muita articulação e, ao final concessões, indiciando que dificilmente a estrutura básica da proposta será alterada pelo Senado.
Em que pese a sua relevância, o contencioso tributário foi tratado de forma sumária na proposta de alteração do texto constitucional, remetendo-se à lei complementar a sua regulamentação. Tão pouco se observaram possíveis conflitos de índole infraconstitucional e constitucional quanto ao julgamento dos tributos siameses originados pela reforma tributária, ou seja, o IBS e o CBS.
Não se deve esquecer que a proposta original da PEC 45/2019 estabelecia um IVA único e nacional (IBS nacional), o que eliminaria possibilidades de conflitos em todos os âmbitos, seja na regulamentação, interpretação, aplicação e julgamento administrativo e judicial.
O IVA dual, com o IBS e a CBS, fruto da articulação da PEC 45-A/2019 da Câmara dos Deputados com a PEC 110/2019 do Senado, poderá criar situações não previstas e não desejadas de conflitos quanto à regulamentação, interpretação, aplicação e julgamento administrativo e judicial nos casos concretos. Vejamos.
Iniciamos por explicitar que o artigo 61, §3º da PEC 45 estabelece que “§ 3º A iniciativa de lei complementar que trate do imposto previsto no art. 156-A também caberá ao Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços a que se refere o art. 156-B.(NR)”. Isto nos remete ao primeiro ponto sensível, pois o Conselho Federativo previsto no artigo 156-B terá competência concorrente com a União quanto à edição da Lei Complementar que cria o IBS. Por outro lado, quanto à CBS, o art. 195, V, da PEC 45 estipula que compete à União instituir este tributo.
O problema é que o IBS e a CBS são irmãos gêmeos, pois possuem, por força do artigo 149-B, os mesmos fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de incidência e sujeitos passivos, imunidades, regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação e regras de não cumulatividade e de creditamento. Qual uma possível solução?
Neste sentido, ou se promove a instituição dos dois tributos através da mesma Lei Complementar ou teremos um natural distanciamento das exações com o tempo devido à regulamentação, interpretação, aplicação e julgamento administrativo e judicial. O problema é que a redação do artigo 9º não é peremptória quanto à obrigatoriedade da utilização de uma única Lei Complementar, vejamos: “Art. 9º A lei complementar que instituir o imposto de que trata o art. 156-A e a contribuição de que trata o art. 195, V, ambos da Constituição Federal, poderá prever os regimes diferenciados de tributação de que trata este artigo, desde que sejam uniformes em todo o território nacional e sejam realizados os respectivos ajustes nas alíquotas de referência com vistas a reequilibrar a arrecadação da esfera federativa”.
Ainda, a única possibilidade de atuação legislativa dos entes subnacionais será a fixação da alíquota própria, quando decidirem se distanciar para cima ou para baixo da alíquota de referência, nos termos do artigo 156-A, V. Por qual razão isto ocorreria?
No âmbito da regulamentação administrativa, já temos, de plano, duas fontes normativas secundárias distintas, ou seja, quanto ao IBS competirá ao Conselho Federativo, à luz do artigo 156-B: “I – editar normas infralegais sobre temas relacionados ao imposto, de observância obrigatória por todos os entes que o integram; II – uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto, que serão vinculantes para todos os entes que o integram; III – arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios; IV – dirimir as questões suscitadas no âmbito do contencioso administrativo tributário entre o sujeito passivo e a administração tributária”.
Isto significa que além de editar o regulamento do IBS, este Conselho irá uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto, que serão vinculantes para todos os entes que o integram e, havendo conflito, dirimir as questões suscitadas no âmbito do contencioso administrativo tributário entre o sujeito passivo e a administração tributária no âmbito de um Conselho ou Tribunal Administrativo a ser criado por Lei Complementar subordinado ao Conselho Federativo.
Reforça esta competência de um contencioso administrativo próprio a redação do artigo 156-A, § 5º, VII, ao dispor que: “§ 5º. Lei Complementar disporá: VII- o processo administrativo fiscal do imposto”. E qual o problema?
O problema é que sendo tributos praticamente idênticos, por força do artigo 195, V, § 15, da PEC 45, não houve remissão à Lei Complementar a que se refere o artigo 156-A, § 5º, VII. A consequência será que no plano do IBS haverá uma Lei Complementar a regulamentar o Processo Administrativo Tributário, ao passo que a CBS seguirá sujeita à competência da Receita quanto à regulamentação, interpretação, aplicação. E mais, caberá ao Carf dirimir as controvérsias relativas ao CBS.
Em um país acostumado ao contencioso tributário, com altos índices de litigiosidade tributária, pode-se prever uma tendência a dois sistemas de interpretação, aplicação e contencioso administrativo, com o possível efeito de distanciar tributos que deveriam caminhar lado a lado. A reforma prevê alguma solução?
Com vistas a solucionar possíveis controvérsias regulamentares, interpretativas, aplicativas e de julgamento administrativo, coube ao artigo 156-B, estipular duas medidas. A primeira no inciso V, ao dispor: “§ 2º Na forma de Lei Complementar: … V – o Conselho Federativo coordenará a atuação integrada dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, na fiscalização, no lançamento, na cobrança e na representação administrativa ou judicial do imposto, podendo definir hipóteses de delegação ou compartilhamento de competências entre as administrações tributárias e entre as procuradorias dos entes federativos;” para promover uma atuação administrativa integrada dos entes subnacionais no IBS.
Não obstante, se no âmbito da atuação quanto à fiscalização, no lançamento, na cobrança e na representação administrativa ou judicial do IBS existe esta possibilidade de uniformização de condutas, o mesmo não se pode dizer quanto à integração da regulamentação, interpretação, aplicação e julgamento administrativo do IBS e CBS como tributos quase idênticos. Podemos aprofundar este ponto?
O artigo 156-B, § 5º, dispõe que “§ 5º O Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços, a administração tributária da União e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional compartilharão informações fiscais relacionadas aos tributos previstos nos artigos 156-A e 195, V, e atuarão com vistas a harmonizar normas, interpretações e procedimentos a eles relativos”.
Conforme já explicitado, considerando o histórico do contencioso nacional, a norma programática esboçada neste dispositivo, embora bem-intencionada, não traz caráter cogente, podendo dar azo a multiplicidade de interpretação administrativa tanto na fase de aplicação dos tributos, como na fase de revisão de lançamento por meio do contencioso administrativo. E qual seria a solução?
A instituição do IBS e da CBS precisam se dar pela mesma Lei Complementar; o processo administrativo tributário do IBS e da CBS devem seguir a mesma Lei Complementar, incluindo-se a CBS no inciso que determina uma Lei Complementar para regulamentar o processo administrativo tributário do IBS; ambos os tributos devem ser julgados pelo mesmo Tribunal ou Conselho Administrativo, seja por um Carf reestruturado com câmaras e turma específicas e rodízio de presidência, seja pelo julgamento da CBS no âmbito do Tribunal ou Conselho Administrativo que será criado subordinado ao Conselho Federativo, o que dependerá de decisão política do Congresso. A não ser assim, quais consequências poderão advir?
A consequência poderá ser o contencioso judicial. Isto porque não houve alteração do artigo 109, I, da CRFB, que define a competência da Justiça Federal. Neste sentido, ou se está diante de um silêncio eloquente ou de uma lacuna deixada pela opção pelo IVA dual, posto que todos estes problemas não existiriam no modelo do IVA nacional e unificado. Entendemos que ocorreu a segunda opção.
Na prática, a CBS será de competência da Justiça Federal e o IBS será da competência da justiça estadual, 27 Tribunais de Justiça ao que passo que na Federal somente seis Tribunais Regionais Federais. Caos à vista!
Embora se tenha criado uma nova competência originária ao STJ (Superior Tribunal de Justiça), ao se incluir a letra “j” no inciso I, do artigo 105, verbis: “j) os conflitos entre entes federativos, ou entre estes e o Conselho Federativo do Imposto sobre Bens e Serviços, relacionados ao imposto previsto no artigo 156-A;”, somente conflitos federativos entre o Conselho Federativo e os entes federativos, aí incluídos a União, estados e municípios, estarão na alçada desta corte de uniformização da legislação infraconstitucional.
Conflitos entre os contribuintes e o Conselho Federativo e o TAT no âmbito do IBS serão de competência da justiça estadual, já os conflitos entre os contribuintes e Receita Federal e o Carf no âmbito da CBS serão de competência da Justiça Federal. Não é preciso dizer que haverá um longo caminho até que as controvérsias cheguem ao STJ e ao STF. Qual seria uma possível solução?
Ou se altera o artigo 109, I, para incluir na competência da Justiça Federal o julgamento do IBS conjuntamente com a CBS, de forma a proporcionar uma melhor uniformização da jurisprudência, ou teremos a possibilidade de dispersão jurisprudencial dentre os vinte e sete Tribunais de Justiça quanto ao contencioso judicial do IBS, tal qual existe hoje com o ICMS, com um diferencial, ou seja, a tributação no destino, que poderá percorrer uma longa cadeia de operações até o consumidor final.
Uma vez mais, são opções políticas que caberão ao Congresso decidir. No meu íntimo, após 25 anos de magistratura e como relator da comissão de juristas que elaborou os PLs da reforma do processo tributário, sob a brilhante presidência da ministra Regina Helena Costa, rogo que o parlamento promova a unificação da instituição, regulamentação, interpretação, aplicação e contencioso administrativo e judicial do IBS e da CBS, o que certamente trará muito mais segurança jurídica ao novel sistema tributário advindo com a PEC 45-A.
Marcus Livio Gomes
Professor associado de Direito Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador associado da Universidade de Londres.