A reforma tributária aprovada na Câmara foi uma vitória de Pirro
Fernando Facury Scaff
Se você não sabe quem foi Pirro, que menciono no título deste texto, aguarde, pois contarei no final.
A avaliação unânime da mídia e dos operadores políticos é que o governo venceu ao aprovar por larga maioria o texto da reforma tributária na Câmara dos Deputados, na semana passada. Realmente, o governo merece os parabéns pela façanha política, que nenhum outro governo no período democrático havia conseguido de forma tão ampla.
Neste texto faço uma brevíssima análise crítica do que foi aprovado, independente de aspectos ideológicos, pois a PEC 45, recém-aprovada, bem como sua irmã gêmea, a PEC 110, foram propostas em 2019, durante o governo Bolsonaro, embora diversas PECs tenham tramitado sobre o assunto ao longo do tempo. A aprovação decorreu do esforço conjunto do governo Lula, representado pelo ministro Haddad, e do presidente da Câmara, Arthur Lira. Falta ver o que o Senado fará com o texto.
Por ora, o que foi aprovado é, de forma singela, o seguinte: a PEC 45 propunha acabar com cinco tributos (ICMS, ISS, PIS, Cofins e IPI), mas acabou criando quatro novos tributos (IBS, CBS, Imposto Seletivo e Contribuições dos Estados). Em concreto, temos então: (1) a reunião do PIS e da Cofins, que passará a ser denominada de CBS — Contribuição sobre Bens e Serviços, cobrada pela União; (2) a reunião do ICMS com o ISS, que passará a ser denominado de IBS — Imposto sobre Bens e Serviços, cobrado pelos estados e municípios, o que só poderá ocorrer nos termos que vierem a ser deliberados pelo Conselho Federativo (o super Confaz); (3) o IPI será transformado em Imposto Seletivo, com funções assemelhadas; e (4) foi criada uma contribuição que amplia fortemente o poder de tributar dos estados, que inclusive poderá voltar a cobrar tributo sobre as exportações, o que recorda os debates ocorridos na década de 90 do século passado (ver artigo 20).
Para que o novo sistema funcione, é necessário que o Conselho Federativo seja instalado e se torne operacional, reunindo os 27 governadores e igual número de prefeitos, escolhidos sob critérios que não será apenas o da maioria per capita, mas o da maioria populacional, o que, mais uma vez confunde regras federativas (uma unidade, um voto), com critérios democráticos (uma pessoa, um voto — ver artigo 156-B, parágrafo 4º, I, “b”). E a legislação referente a esse novo tributo (o IBS — Imposto sobre Bens e Serviços) só poderá ser exercida no âmbito desse Conselho Federativo (artigo 156-B), embora a União possa vir a regular de forma isolada a CBS — Contribuição sobre Bens e Serviços, independente do Conselho.
Alega-se que haverá plena compensação de créditos, (não-cumulatividade), que ficou assim descrita (artigo 156-A): “VIII – com vistas a observar o princípio da neutralidade, (o IBS) será não cumulativo, compensando-se o imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem, material ou imaterial, inclusive direito, ou serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos da lei complementar, e as hipóteses previstas nesta Constituição”. Isso é extendido “por tabela” ao CBS (artigo 149, “b”, IV). Observe-se novamente a remessa do assunto para “os termos da lei complementar”, que regulará as exceções, tal como hoje ocorre, gerando enorme insegurança e gigantesca litigância.
E a sociedade permanece sem saber quanto vai ser cobrado, pois as alíquotas são definidas por leis ordinárias.
Enfim, é o que temos aprovado até aqui. Só essa Emenda Constitucional foi aprovada na Câmara com 36 páginas de modificações de texto normativo (sem contar as justificativas!). Para que esses novos tributos sejam regulamentados terão que ser aprovadas diversas leis complementares, leis ordinárias, decretos, portarias, circulares, formulários etc. Somente ao final de tudo isso é que poderá verificar se o novo sistema será ou não mais simples que o atual. Imaginem só a regulamentação que deverá advir do Conselho Federativo para a efetiva cobrança do IBS. A litigância tributária está contratada pelas próximas três gerações.
Já afirmei antes que gosto do sistema IVA de tributação do consumo, mas da forma que está sendo aprovada nos levará a discutir letra por letra essas novas normas durante décadas.
Será que o Senado alterará esse sistema? É esperar para ver, embora tenha poucas esperanças de que ocorram substanciais modificações.
E quem foi Pirro, mencionado no título do texto?
Foi um famoso general que lutou contra o Império Romano em seus primórdios, e, depois de uma batalha em que seus exércitos, a despeito de terem vencido, foram dizimados, disse: “outra vitória como esta e estarei completamente arruinado”. Ou seja, ganhou a batalha, mas a um custo gigantesco. E perdeu a guerra.
O governo merece os parabéns pelo êxito político, mas espera-se que não tenha sido uma vitória de Pirro, como parece ter ocorrido.
Não há nada que não possa piorar, e, no fundo do poço, sempre se pode encontrar um alçapão.
Fernando Facury Scaff
Professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.