A inconstitucional tributação do consumo pela União: PIS e Cofins
Fernando Facury Scaff
É sabido que a União não possui competência para cobrar impostos sobre o consumo de bens e serviços, a qual é atribuída pela Constituição aos estados (artigo 155, II) e aos municípios (artigo 156, III).
Sabe-se também que somente através de lei complementar seria possível à União criar outros impostos, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios daqueles já discriminados na Constituição (artigo 154, I, Constituição, que veicula a competência tributária residual). A singela leitura dessas normas afasta a incidência de impostos federais sobre o consumo.
Ocorre que o PIS e a Cofins incidem sobre o consumo. Afinal, receita bruta é apenas outra expressão conceitual para a incidência da tributação sobre o consumo. É razoável cogitar que haja receita bruta nas empresas sem que haja consumo? Como regra a resposta é não, havendo exceção no caso das receitas financeiras e na venda de ativo imobilizado.
Seria então possível afirmar que o PIS e a Cofins são inconstitucionais? Não, em razão de um conceito jurídico que distingue o gênero tributo entre diferentes espécies, dentre elas, as “contribuições”, que são diferentes dos “impostos”. Porém, será que esta distinção doutrinária vem sendo respeitada?
Os impostos são tributos não-vinculados a um determinado gasto, servindo para custeio geral da máquina pública, existindo até mesmo a norma da não-afetação, também chamada de não-vinculação (artigo 167, IV, Constituição), que veicula o princípio da liberdade do legislador orçamentário, proibindo que os impostos sejam vinculados a determinado órgão, fundo ou despesa, com importantes ressalvas.
Por outro lado, o que caracteriza a espécie tributária “contribuições” é sua referibilidade, o que é distinto de “vinculação”. Em linhas básicas, referibilidade consiste em estabelecer na lei da criação daquela contribuição uma destinação para seu gasto. Por exemplo, os gastos com a famigerada CPMF eram, na lei, em grande parte dirigidos para ações na área de saúde. Muitos desvios ocorreram, como se sabe, mas esse era o escopo legalmente estabelecido. O liame jurídico na referibilidade é mais fraco do que na vinculação.
No caso das “contribuições” para o PIS e a Cofins, os recursos arrecadados têm sido desviados para outras finalidades, com a referibilidade fortemente fraudada pelos governos federais (escrevo no plural, pois não é somente o atual governo que o faz). Existe até um horroroso nome técnico para isso, que é tredestinação, que ocorre quando a arrecadação não é efetivamente utilizada para os programas que ensejaram a criação daquela contribuição, sendo os recursos tredestinados para o custeio da máquina pública, o que é próprio dos impostos.
Em 2019, pela EC 103, foi inserido no artigo 239 na Constituição, que trata da destinação dos recursos do PIS, a ampla expressão “outras ações da previdência social”, ampliando o escopo de sua utilização e através da qual cabe uma infinidade de despesas e programas para serem financiados com os recursos do PIS, desvirtuando ainda mais sua referibilidade. Ou seja, tudo indica que a norma veio para amparar uma parte da tredestinação antes existente; supõe-se mesmo que, em concreto, este desvio seja mais amplo do que permite esta expressão que foi inserida na norma.
Por outro lado, a referibilidade da Cofins sequer possui o mesmo amparo constitucional que possui a do PIS, estando seu liame financeiro tão esgarçado que sequer se o encontra definido de forma adequada na legislação de regência dessa contribuição.
O atento leitor que chegou até este ponto do texto deve ter observado que: (a) o que permitia a tributação do consumo pela União era o fato de o PIS e a Cofins serem contribuições, e não impostos; (b) e que a característica das contribuições é sua referibilidade, (c) a qual está completamente esgarçada, inclusive, e em especial, pela alteração promovida pela EC 103/19, (d) embora existam dados que esta tredestinação seja muito mais ampla, na análise concreta.
Portanto, surgem duas questões a serem analisadas: (1) O PIS e a Cofins permanecem como contribuições, mesmo após a EC 103/19? E (b), sendo negativa a resposta, estes dois tributos deixarão de ser considerados como contribuições e passarão a ser impostos, ficando escancarada a inconstitucionalidade de sua cobrança pela União por invadir a competência dos estados e municípios para a tributação do consumo de bens e serviços.
Não deixando pergunta sem resposta, entendo que (1) estas duas contribuições deixaram de ser contribuições e passaram a ser impostos, em face com completo desvirtuamento dos conceitos doutrinários de contribuições e de referibilidade, quando se analisa em concreto os gastos que vêm sendo realizados com essa arrecadação. E, sendo assim, (2) isso invade competência tributária de estados e municípios, não sendo possível à União manter esta tributação/arrecadação.
Parte do que acima foi exposto já era sabido e diversos textos de qualidade foram escritos a esse respeito, com destaque para a tese de livre docência de Paulo Ayres Barreto (Contribuições – Regime Jurídico, Destinação e Controle, editora Noeses, São Paulo, 2006, 2ª edição), sempre com o foco no direito dos contribuintes se interporem contra esse tipo de cobrança em face da tredestinação. Qual a diferença para esta abordagem?
Penso que existem três diferenças: (1) a recente EC 103/19, que ampliou a referibilidade; (2) o enfoque federativo, pois há inegável invasão de competência tributária de estados e municípios por parte da União no âmbito da tributação sobre o consumo, e (3) a possibilidade de serem apresentadas provas, via audiências públicas, no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, único que poderá produzir resultados concretos para este tipo de demanda.
Existe ainda uma urgência estratégica por parte dos Estados e Municípios, que é a reforma tributária que está na porta, sendo votada. Quem acompanha o assunto entenderá que, no âmbito da tributação do consumo, a CBS (PL 3.887/20, que unifica o PIS e a Cofins) está com alíquota superestimada, em 12%, invadindo o possível espaço de tributação do IBS (PEC 110 e 45). Logo, é a hora adequada de discutir esta matéria, apontando ao Congresso o que pode ou não ser feito no âmbito da tributação sobre o consumo.
Deve-se submeter esse assunto diretamente ao STF, seja pelos entes federados, seja pelos demais legitimados pelo artigo 103 da Constituição, em especial as confederações e as entidades de classe de âmbito nacional.
Infelizmente o nosso federalismo só tem sido consertado (e concertado) via ação direta de inconstitucionalidade. Triste isso, mas é a realidade.
Fonte Conjur
Fernando Facury Scaff
Professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.