A humanização do processo tributário
Eduardo Salusse
A relação jurídica processual envolve necessariamente a divergência de interesses entre duas partes litigantes. Em alguns campos do direito, esta disputa confronta oponentes com forças desiguais. É assim no campo tributário onde, de um lado, encontra-se invariavelmente o poder público enquanto, do outro lado, está o contribuinte.
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O Estado é um ente dotado de poderes extremamente superiores aos dos seus oponentes privados, vez que, ao mesmo tempo, é quem cria as leis, interpreta, fiscaliza, pune, cobra, julga e é o beneficiário final do produto arrecadado.
O contribuinte é o titular de direitos que deveriam, em tese, protegê-lo deste ente avassalador, inclusive e especialmente na relação jurídica processual.
É neste contexto que o uso desta força, mesmo dentro de uma moldura de legalidade, tem o potencial de desumanizar o processo tributário.
É simplório dizer que o resultado de um processo tributário é considerado justo pela parte litigante, quando lhe é favorável. Mas não é esta a perspectiva daquilo que se pode chamar de um processo tributário humanizado.
O processo tributário “humanizado” é aquele que leva em consideração a garantia de todas as possibilidades de defesa e do devido processo legal, mas também a garantia de que a estrutura jurisdicional inclui julgadores qualificados, preparados, independentes e que decidam com pleno e absoluto conhecimento da causa, dos fatos, dos argumentos e dos pontos de conflito.
A grande verdade é que o litigante reputa como justo o resultado formado a partir de um processo justo, no qual ele tenha tido plena condição, sem nenhuma restrição, de exercer a sua ampla defesa, com o contraditório, a produção de provas, as manifestações, o acesso aos julgadores, bem como a utilização de todos os instrumentos previstos no sistema processual.
As derrotas nunca são boas, mas podem ser aceitáveis pelo derrotado diante da certeza de que o processo transcorreu sem entraves e o julgador compreendeu de forma plena os argumentos da parte, refutando-os com qualidade técnica e com argumentos igualmente consistentes.
Neste cenário, a percepção de um resultado justo decorre da percepção de um processo também justo.
Não é apenas ilegal, mas, mais do que isso, não é humano o processo em que os agentes responsáveis por conduzi-lo protagonizam restrições indevidas à parte. E isto tem sido visto com frequência crescente.
É desumano ao litigante ouvir que, na sessão do julgamento do seu recurso, estão pautados, em uma mesma tarde, outros 1.200 recursos para serem julgados e 50 sustentações orais
São negativas de acesso aos autos, portarias que restringem o direito de despachar memoriais, julgadores que não recebem os advogados das partes, sustentações orais feitas ao vento enquanto julgadores distraem-se alienados às palavras da parte, além de votos feitos por assessores e não pelo magistrado que reuniu conhecimento e capacidade que o alçaram ao cargo. Há casos em que assessores são agentes públicos alocados dos quadros fazendários – justamente o oponente do particular no processo tributário – como ocorre, por exemplo, no Supremo Tribunal Federal.
No âmbito administrativo, há alguns julgadores que decidem ideologicamente aos interesses fazendários, não se importando com as consequências patrimoniais, reputacionais e morais atribuíveis ao contribuinte injustamente cobrado, tampouco se importam com os custos imputáveis à fazenda sucumbente no processo judicial. Alguns vivem à sombra da banalização do mal, digna de comparação com o fenômeno retratado por Hanna Arendt.
Em um colegiado, não contribuem os julgadores que simplesmente ratificam o voto do relator, sem se dar ao trabalho de analisar o caso de forma dedicada. É desumano ao litigante ouvir que, na sessão do julgamento do seu recurso, estão pautados, em uma mesma tarde, outros 1.200 recursos para serem julgados e 50 sustentações orais.
Resolvem-se as lides com o absurdo entendimento de que “o julgador não está obrigado a enfrentar todos os argumentos da parte“, deixando de se pronunciar, no mais das vezes, sobre argumentos minuciosamente articulados.
Este conjunto de posturas revela que os condutores do processo não percebem que por trás de uma demanda, seja um auto de infração, uma execução fiscal, ou uma ação de qualquer outra natureza, pode haver uma empresa ou um tributo discutido, mas que, ao final, há direitos fundamentais de um ser humano.
O excesso de litígios não é e nem pode ser aceito como justificativa para desumanizar o processo conduzido com restrições, em busca de agilidade e cumprimento de metas, sem levar em conta as consequências que o seu resultado propiciará.
Fonte Valor Econômico
Eduardo Salusse
Advogado graduado pela PUC/SP, mestre em direito tributário pela FGV Direito SP, doutorando em direito pela PUC/SP e professor de pós-graduação na FGV/SP