A guerra fiscal do ICMS envolvendo o IRPJ e a CSLL (parte 1)
Simone Anacleto; Fabrizio Cândia dos Santos
Considerações iniciais
Em 8 de novembro de 2017, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, nos Embargos de Divergência no REsp nº 1.517.492/PR, julgou inovadoramente um tema que já era debatido em juízo há vários anos e em relação ao qual o Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive, já havia dito se tratar de matéria infraconstitucional, a saber, a inclusão, ou não, dos créditos presumidos de ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL [1].
O problema, todavia, é que o STJ invocou o princípio federativo para julgar a causa. Ora, tal princípio, como se sabe, não só possui assento constitucional, como, inclusive, é considerado uma cláusula pétrea em nosso sistema [2].
Confira-se, a seguir, um trecho da longa ementa do acórdão proferido no ERESP nº 1.517.492:
“I – Controverte-se acerca da possibilidade de inclusão de crédito presumido de ICMS nas bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
II – O dissenso entre os acórdãos paradigma e o embargado repousa no fato de que o primeiro manifesta o entendimento de que o incentivo fiscal, por implicar redução da carga tributária, acarreta, indiretamente, aumento do lucro da empresa, insígnia essa passível de tributação pelo IRPJ e pela CSLL; já o segundo considera que o estímulo outorgado constitui incentivo fiscal, cujos valores auferidos não podem se expor à incidência do IRPJ e da CSLL, em virtude da vedação aos entes federativos de instituir impostos sobre patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros.
III – Ao considerar tal crédito como lucro, o entendimento manifestado pelo acórdão paradigma, da 2ª Turma, sufraga, em última análise, a possibilidade de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou.
IV – Tal entendimento leva ao esvaziamento ou redução do incentivo fiscal legitimamente outorgado pelo ente federativo, em especial porque fundamentado exclusivamente em atos infralegais, consoante declinado pela própria autoridade coatora nas informações prestadas.
V – O modelo federativo por nós adotado abraça a concepção segundo a qual a distribuição das competências tributárias decorre dessa forma de organização estatal e por ela é condicionada.
VI – Em sua formulação fiscal, revela-se o princípio federativo um autêntico sobreprincípio regulador da repartição de competências tributárias e, por isso mesmo, elemento informador primário na solução de conflitos nas relações entre a União e os demais entes federados.
VII – A Constituição da República atribuiu aos Estados-membros e ao Distrito Federal a competência para instituir o ICMS – e, por consequência, outorgar isenções, benefícios e incentivos fiscais, atendidos os pressupostos de lei complementar.
VIII – A concessão de incentivo por ente federado, observados os requisitos legais, configura instrumento legítimo de política fiscal para materialização da autonomia consagrada pelo modelo federativo. Embora represente renúncia a parcela da arrecadação, pretende-se, dessa forma, facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas.
IX – A tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação.
X – O juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária há de ser implementado em comunhão com os objetivos da Federação, insculpidos no art. 3º da Constituição da República, dentre os quais se destaca a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), finalidade da desoneração em tela, ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa brasileira (art. 1º, III, C.R.).
XI – Não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a autonomia da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e em atrito com o princípio da subsidiariedade, que reveste e protege a autonomia dos entes federados.
XII – O abalo na credibilidade e na crença no programa estatal proposto pelo Estado-membro acarreta desdobramentos deletérios no campo da segurança jurídica, os quais não podem ser desprezados, porquanto, se o propósito da norma consiste em descomprimir um segmento empresarial de determinada imposição fiscal, é inegável que o ressurgimento do encargo, ainda que sob outro figurino, resultará no repasse dos custos adicionais às mercadorias, tornando inócua, ou quase, a finalidade colimada pelos preceito legais, aumentando o preço final dos produtos que especifica, integrantes da cesta básica nacional.
XIII – A base de cálculo do tributo haverá sempre de guardar pertinência com aquilo que pretende medir, não podendo conter aspectos estranhos, é dizer, absolutamente impertinentes à própria materialidade contida na hipótese de incidência.”
Ao julgar o assunto nesses termos, data maxima venia, o Tribunal da Cidadania, a pretexto de salvaguardar o princípio federativo, acabou, na verdade, por feri-lo profundamemente, ao mesmo tempo em que até contribuiu para o agravamento da chamada “guerra fiscal”, como melhor se demonstrará a seguir [3].
Significado da expressão “créditos presumidos de ICMS”
Para que se possa compreender o significado da expressão em epígrafe, imprescindível, primeiro, relembrar que o ICMS, de acordo com o artigo 155, § 2º, inciso I, da CF/88, é um tributo não cumulativo. Os tributos não-cumulativos são aqueles que incidem apenas sobre o valor agregado nas diversas fases de circulação da riqueza a ser tributada. Essa não cumulatividade, ordinariamente, se verifica na medida em que seus contribuintes registram em sua contabilidade créditos correspondentes ao ICMS destacado nas notas fiscais das mercadorias que entram em seus estabelecimentos, registrando, por outro lado, os valores do ICMS devido por todas aquelas que saem de seu estabelecimento. A diferença entre essas duas grandezas resulta no ICMS devido.
Assim, por exemplo, uma mercadoria adquirida por R$100,00 para revenda, com incidência de R$ 20,00 de ICMS, se revendida por R$ 200,00 com incidência de ICMS de R$ 50,00, ensejará para o comerciante revendedor a obrigação de recolher, a título de ICMS nessa última operação, o valor de R$ 30,00. É que se deduz do tributo devido na operação de revenda (R$ 50,00) o valor do ICMS pago na compra (R$ 20,00), cujo valor será então R$ 30,00 (ICMS a recolher = R$50,00 – R$ 20,00). Isso garante que apenas o valor agregado na operação de revenda (VA = R$ 200,00 – R$ 100,00 = R$ 100,00) seja tributado.
Essa é a sistemática normal ou usual de apuração de créditos no âmbito da tributação pelo ICMS, ressalvadas, justamente, hipóteses de eventuais isenções ou outros benefícios fiscais.
Dentre os possíveis benefícios fiscais de ICMS, têm-se os chamados créditos presumidos que, nas palavras de Klaus Eduardo Rodrigues Marques, podem ser assim definidos:
Figuras comuns em se tratando de incentivos fiscais, os créditos outorgados ou presumidos são, na realidade, desonerações tributárias que operam por meio da concessão, pelo ente competente, de um crédito fictício maior do que aquele a que realmente faz jus o sujeito passivo.
Com tal política, os estados concedem créditos que, somados àqueles obtidos em razão das entradas das mercadorias, acabam por diminuir a carga tributária dos contribuintes.
Em termos de ICMS, os créditos presumidos ou outorgados significam para o contribuinte beneficiado um montante de crédito superior ao incidente na operação anterior, fazendo com que a diferença entre débitos e créditos e, consequentemente, de imposto a recolher, diminua [4]…
(os grifos não constam do original)
Assim, os chamados créditos presumidos de ICMS ensejam que o produtor/comerciante seja dispensado total ou parcialmente de recolher aos cofres do estado ou do Distrito Federal o ICMS que foi cobrado do adquirente da mercadoria, e do qual o produtor/comerciante era mero depositário. E esta dispensa de recolhimento é operacionalizada mediante o lançamento nos livros de apuração do ICMS de um crédito, mas que não corresponde a nenhuma entrada com ICMS destacado. É que os créditos presumidos de ICMS são créditos excedentes em relação aos créditos da sistemática normal da não cumulatividade e seu valor não tem nenhuma relação com o custo das mercadorias, dependendo única e exclusivamente da decisão do ente concedente (estado ou do Distrito Federal). Bem por isso também podem ser chamados de créditos fictícios.
Tomando o exemplo anterior, imaginando-se agora, todavia, que, para além do crédito fiscal de R$ 20,00 sobre a compra da mercadoria, o estado federado concedesse mais R$ 30,00 de crédito presumido. Neste cenário, o ICMS a ser recolhido seria R$ 0,00, pois deduzindo-se do tributo devido sobre a venda (R$ 50,00) o somatório do crédito fiscal (R$20,00) e do crédito presumido outorgado (R$ 30,00), não restaria tributo a ser recolhido [ICMS a recolher = R$ 50,00 – (R$ 20,00 + R$ 30,00) = R$ 0,00]. Mas, para onde vão os R$ 30,00 de ICMS que deveriam ser recolhidos nessa etapa, uma vez que não ingressam nos cofres do estado? Vão para o caixa da própria empresa revendedora, e esta é justamente a benesse tributária.
Veja-se que, nesse caso, não há redução no preço da mercadoria, que continuou a ser vendida pelo mesmo preço de antes (R$ 200,00). O que ocorre é apenas a transferência do valor que deveria ser recolhido ao Estado para a própria empresa (R$ 30,00).
Destarte, como aumentam o patrimônio das empresas a que se destinam, os créditos presumidos de ICMS possuem a natureza, contábil e juridicamente, de verdadeiras receitas novas. Por consequência, acarretam o aumento da base de cálculo do IRPJ e da CSLL, pois, como se sabe, o lucro tributável, em qualquer de suas modalidades (real, presumido ou arbitrado), parte do cômputo das receitas da pessoa jurídica.
Em linguagem econômica, é o que se chama de uma externalidade negativa, decorrente de um benefício fiscal concedido em nível estadual, o qual, todavia, acarreta um reflexo na tributação em nível federal.
Seja como for, de plano, percebe-se que tais créditos presumidos são instrumentos de extrafiscalidade e funcionam como mecanismo de transferência de renda do consumidor da mercadoria para o empresário. De fato, ao transformarem o valor do ICMS em mero preço de mercadoria, o consumidor passa a pagar mais caro pelo bem. Sob a forma de ICMS, o consumidor nutria a expectativa de receber, em troca, prestações públicas (serviços, obras etc.). Contudo, transmudado em preço pelo mecanismo de presunção de crédito, o valor recolhido será direcionado ao caixa da empresa, provocando um acréscimo patrimonial privado.
Daí o erro de fundamentação do EResp nº 1.517.492 quando considerou, em suas razões de decisão, que as referidas benesses produziriam desoneração tributária, “(…) ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana”. Muito ao revés, os créditos presumidos, nesse quadro, encarecem a mercadoria, pois o valor do ICMS passa a categorizar-se como preço e a benesse consiste justamente nisso: transferir renda do consumidor ao empresário por meio da transmudação do ICMS em preço, aumentado a remuneração do empresário. Ora, se o Estado considera que o preço definido via mercado (oferta x demanda) não é suficiente para remunerar o empresário, a ponto de lhe outorgar uma benesse que aumenta o preço da mercadoria vendida, por que razão o empresário abaixaria o preço da mercadoria? Para anular os efeitos da benesse que lhe está sendo concedida? Se ele assim o fizesse, seria sinal de que a benesse concedida era injustificada e que não havia qualquer razão para a intervenção estatal no preço.
Na sequência, passa-se já à análise do princípio federativo em si.
Continua na parte 2.
[1] Ao apreciar o Tema nº 957 da repercussão geral, em 19/08/2017, o STF assentou a seguinte tese: “A controvérsia relativa à inclusão de créditos presumidos de ICMS na base de cálculo do IRPJ e da CSLL não possui repercussão geral, tendo em vista sua natureza infraconstitucional”.
[2] “Art. 60 (…) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; (…)”
[3] No presente artigo, não se examinará a questão do ponto de vista de alterações legislativas infraconstitucionais, em especial, da introduzida pelos arts. 9º e 10 da Lei Complementar nº 160, de 7/8/2017, que o STJ tem se negado a analisar. Neste artigo, o foco é exclusivo sobre a ofensa ao princípio federativo.
[4] A guerra fiscal do ICMS: uma análise crítica sobre as glosas de crédito. São Paulo, MP Ed, 2010. p. 125. Anote-se que, para esse autor, são os seguintes os possíveis incentivos fiscais no âmbito do ICMS: isenção, redução de alíquota, redução de base de cálculo, diferimento, anistia e, por fim, crédito presumido ou crédito outorgado (tratando as duas últimas expressões como sinônimas).
Simone Anacleto; Fabrizio Cândia dos Santos
Fabrizio Cândia dos Santos é pós-graduado em Integração Econômica e Direito Internacional Fiscal pela FGV, mestre e doutor em sociedade, cultura e fronteiras pela Universidade do Oeste do Paraná (UniOeste) e procurador da Fazenda Nacional.
Simone Anacleto é pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV e em Direito e Economia pela UFRGS, mestre em Direito do Estado pela UFRGS e procuradora da Fazenda Nacional.