A Dívida Ativa da União e os perigos da especulação financeira
Raul Haidar
Notícias recentes dão conta de que o Ministério da Fazenda estuda a possibilidade de vender ou ceder para instituições financeiras parte relevante dos créditos que o poder público tem a receber. Seria uma espécie de securitização, onde tais instituições adquirem esses créditos com desconto para posteriormente cobrá-los dos devedores.
A Procuradoria da Fazenda já se manifestou no sentido de que deveriam ser vendidos apenas os chamados créditos podres, isto é, aqueles de cobrança muito difícil. Afirma-se que o Ministério do Planejamento estima em R$ 60 bilhões a parte da dívida que poderia ser negociada, num montante geral de R$ 1,6 trilhão.
A matéria já está em discussão no Senado, em projeto de autoria do então senador José Serra (PSDB-SP) e, caso seja aprovado, teria que passar por regulamentação através da Fazenda.
Reportagem publicada pela Folha de S.Paulo informa que a gestora da dívida ativa na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Anelize Almeida, entende que o governo deve vender apenas a parte mais difícil de ser cobrada, que denominou de “osso”, ficando com o “filé mignon”.
A dívida pública tem sido alvo de inúmeras preocupações e é público e notório que boa parte dela não tem qualquer liquidez. Quando foi divulgada recentemente relação dos maiores devedores verificamos que boa parte das empresas ali mencionadas são massas falidas, não existem mais ou simplesmente não possuem qualquer patrimônio.
Tentar vender os créditos podres servirá para revelar que nesses negócios podem surgir muitos espertalhões ou aproveitadores. Isso já acontece com créditos privados.
No início deste ano pessoa física recebeu mensagem eletrônica de um escritório de advocacia onde se informava a existência de uma dívida de mais de R$ 900 mil da empresa da qual fora sócio. O credor era um banco incorporado por outro que, por sua vez, cedera o crédito a uma empresa de cobrança que o escritório representava. O suposto cessionário do crédito estava disposto a conceder um desconto de 90% da dívida. Isso seria bom se a dívida ainda existisse, pois estava ela prescrita, já que vencida há mais de 20 anos! Ainda bem que o comerciante teve a boa idéia de consultar um advogado de sua confiança antes de prosseguir na negociação.
Ora, qualquer que seja o nome dado a tais negociações com dívida pública, claro está que num primeiro momento o governo abre mão de receita, o que precisa ser estudado à vista da lei de responsabilidade fiscal.
Por outro lado, ao ceder parte da dívida, o poder público concede ao particular parte de seu poder de tributar, pois a cobrança é parte relevante da incidência tributária.
Como tudo isso tem a ver com a necessidade de arrecadação, parece-nos mais simples e eficaz a abertura de um adequado plano de regularização fiscal, com descontos na dívida e possibilidade de parcelamento a longo prazo.
A maior parte dos débitos fiscais que geraram a dívida ativa está inchada com multas e acréscimos de duvidosa legalidade. No campo das multas, mesmo as moratórias, verificam-se exageros. Os percentuais das multas foram elevados nas décadas de 1980 e 1990, para compensar ou neutralizar os efeitos inflacionários daquele período. No momento econômico atual não existe razão para que atrasos de menos de 60 dias sofram multas de 20% ou mais.
Ademais, eventual cobrança de débitos fiscais por instituições financeiras ou empresas de cobrança pode viabilizar abusos e exageros, sem que o sujeito passivo encontre mecanismos adequados de defesa.
Privatizar a cobrança da dívida ativa pode ser um primeiro passo no caminho da anarquia, da eliminação do governo. Não é razoável supor que esse seja um projeto oficial.
Raul Haidar
Jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.