“NO SMOKING”, MP 685 e o alvorecer de uma nova Receita Federal

Eurico Marcos Diniz de Santi

Normas jurídicas que ofendem uma cultura de negócios correm o risco de se tornarem irrelevantes; normas jurídicas que destroem regras que emergem naturalmente no mundo dos negócios podem suprimir as virtudes destas regras; normas jurídicas que deixam as regras dos negócios tomarem conta de seu espaço podem destruir suas próprias virtudes. (Gunther Teubner).

“NO SMOKING”! A INTERPRETAÇÃO PODE TUDO?
Imagine-se a cena: contribuinte caminha, dignamente no estilo 007, fumando cigarro e vestindo black tie (traje de cerimônia com camisa branca, casaca preta e gravata borboleta) entre os corredores de repartição fazendária abstrata, nas laterais emergem pilhas de processos, DIPJs extintas, autos de infração decaídos ou prescritos, pedidos de compensação relativos aos REFIS DA CRISE, REFIS, PAES e PAEX e guias perdidas de documentos de crédito auto-declarados.

Ao dirigir-se a uma específica sala de atendimento, entrevê logo após a soleira da porta uma placa na parede escrita em letras maiúsculas: “NO SMOKING”. Logo abaixo da placa um cinzeiro. O contribuinte, elegantemente, apaga o cigarro no cinzeiro e dirige-se ao guichê de atendimento.

Na sequência, é surpreendido pelo agente público que lhe oferece o formulário de notificação de pré-concebido auto de infração com multa de ofício de 75% e qualificada de 150%. O fiscal abre um sorriso malicioso e aponta para a placa, soletrando os dizeres que resumem e qualificam a acusação: NO SMOKING!!!

Esta alegoria representa bem os fundamentos jurídicos do que não se espera de uma fazenda pública cidadã: o brilhante exemplo do sujeito trajado formalmente flagrado pelo sinal de não fumar escrito em inglês é de NEIL MACCORMICK, Regius Professor of Public Law of Nature and Nations na Universidade de Edinburgh/Escócia, e está no livro Retórica e o Estado de Direito[1].

A interpretação pode tudo?

Ora, se aplicar o direito envolve sempre o ato de interpretá-lo, então, quem aplica o direito pode tudo? Não é bem assim: qualquer norma produzida em documento com presunção de validade, subscrito por autoridade, precisa ser esclarecida antes de ser aplicada[2]. É certo que o texto da placa é ambíguo. É fato que o contribuinte trajava smoking. Mas nesse contexto não se esperava que o agente fiscal fosse exigir que ele tirasse a roupa no meio de uma repartição pública, em vez de se abster de fumar.

O tempo do prazo decadencial não respeita o tempo histórico: os 5 anos da distância entre o fato gerador e a autuação faz esquecer-se do contexto e das contingências narrativas do direito no tempo. Três exemplos facticos podem resumir essa assertiva.

Primeiro exemplo municipal, o controlador Mario Spinelli teve atuação destacada em São Paulo quando cruzou informações sobre o patrimônio dos funcionários públicos com o esquema de pagamento de propina em troca dos descontos do ISS. A lógica do sistema era que o ISS incidiria sobre a prestação de serviços, mas como ficou custosa a combinação entre custos trabalhistas e pagamento do ISS, as empresas optaram, estrategicamente e, ainda, dentro da lei, por mudar a estrutura de seus negócios, comprando mercadorias e pré-moldados para construção e pagando ICMS. O fisco municipal detectou a queda de arrecadação, emitiu decreto municipal criando a presunção que os pagamentos deveriam ser feitos com base em incidências passadas e esta ilegalidade (fora da lei) gerou uma indústria de facilidades, desmantelada sob a alcunha de “Máfia do ISS”.

Segundo exemplo estadual, serviços de comunicação, publicidade e outdoor, tradicionalmente foram tributados pelo ISS, mas em razão de lobby organizado do – também, difuso setor de comunicação – a Lei Complementar 116 vetou esse item da lista. Bem, ato contínuo, as fazendas dos Estados chegaram à criativa conclusão que o serviço de publicidade, seja via outdoor, seja via internet, está sujeito ao ICMS-Comunicação: afinal, tudo é comunicação, inclusive o que se lê das palavras anteriores e posteriores a esse ponto. Portanto, lavram-se bilhões de autuações com fundamento nessa “nova tese” que sem lei complementar ou ordinária desloca pelo simples ato de interpretação do termo “comunicação” a competência do município (ISS) para o Estado (ICMS)[3].

Terceiro exemplo federal. Em 2008/2009 o mundo quase acabou, estávamos na maior crise financeira pós 1930. O governo tinha perdido a CPMF em 2007 e o REFIS DA CRISE pretendia reverter 11 meses de queda de arrecadação da Receita Federal[4]. A matéria do Valor Econômico “Dívida do IPI será paga em 12 meses sem juros” de 15/10/2009 representa bem o contexto e o sentido comunicado pela Receita Federal aos contribuintes. A MP 470 acrescentou à lei que criou o REFIS DA CRISE a permissão de que as companhias que perderam a batalha jurídica do aproveitamento de créditos de IPI com alíquota zero compensassem seus prejuízos fiscais do IRPJ e bases negativas com a CSLL. A Receita Federal e a PGFN (23/11/2009) divulgaram lista dos pedidos de adesão aceitos com referência expressa ao uso dos prejuízos fiscais para reduzir até 100% dos débitos a pagar através do REFIS DA CRISE[5]. Cinco anos depois, justamente na linha de passe do prazo decadencial (5 ANOS), estas mesmas empresas que aderiram ao REFIS DA CRISE começaram a ser autuadas sob o fundamento de que a compensação do REFIS criava receita nova tributável pelo PIS/COFINS (em infinita relação de recursividade, pois, então, cada pagamento revela nova receita): é a tese que aderir ao REFIS cria novo direito sujeito a nova tributação acrescida, ainda, das multas de 75% a 150%. Advertência para os candidatos ao PRORELIT, lançado pela MP 685: quem compensar prejuízos fiscais e base negativa do CSLL pode sujeitar-se a nova tributação: a compensação e pagamento se auto implicam, criando novo fato gerador de receita do combalido PIS/COFINS.

É inútil o conhecimento que se limita à superfície do fenômeno jurídico, sem buscar penetrar seus fundamentos explicativos e justificativos, diz o célebre LOURIVAL VILANOVA[6]: não basta reformar o sistema tributário se a estrutura administrativa continuar a mesma.

A MP 685 E A RECEITA FEDERAL DE RACHID
Há bons indícios de novos ventos democráticos na Receita Federal do Brasil: (i) o movimento de debate aberto e exposição do projeto de reforma do PIS/COFINS, realizado em evento no IDP – Instituto de Direito Público e veiculado via internet; (ii) o esforço de abertura e desoneração de multas expresso nas entrelinhas da MP 685 e (iii) o recente artigo publicado por Jorge Rachid, defendendo as virtudes da MP 685 e da transparência nacional e internacional.

A exposição sobre o pensamento e as propostas da RFB para reforma do PIS/COFINS foram uma grande sinalização de mudança. O evento aberto por Gilmar Mendes, Joaquim Levy, Eduardo Cunha e Renan Calheiros, realizado no IDP, em 18/08/2015, contou com a presença atenta do secretário Jorge Rachid, durante todo o dia, acompanhado de toda a tropa de elite da RFB, em movimento que a memória aponta como inédito de diálogo interinstitucional entre fisco/contribuinte.

A MP 685, por um lado, revela aparato repressor, veiculado maliciosamente no mesmo texto que o PRORELIT, da presunção de omissão dolosa, fraude e sonegação pela mera não-entrega de declaração sob o fundamento de tipos abertos e indizíveis. Mas por outro lado, há de se reconhecer o avanço da RFB no sentido de aceitar a transparência das transações, em troca da não-aplicação de multas. Nos primeiros debates travados sobre norma anti-elisiva, em 2010, essa hipótese era proibitiva na casa.

Outro sinal positivo é o artigo de Jorge Rachid, publicado na última sexta-feira, 28/08/2015, no Valor Econômico[7]. Neste texto, o secretário Rachid anuncia posições e valores inovadores que podem mudar a perspectiva histórica do relacionamento entre fisco/contribuinte: (i) preocupação da RFB com o BEPS, FACTA e OCDE e compromisso com o movimento de transparência internacional; (ii) sinalização de oferecer “canal verde” para o contribuinte que age espontaneamente de forma transparente[8] e (iii) compromisso de combater a indústria do contencioso tributário que só nos últimos 4 anos representou autuações de mais de 190 bilhões de reais tão-somente em matéria de planejamento tributário.

QUE RECEITA FEDERAL QUEREMOS PARA SEU ANIVERSÁRIO DE 50 ANOS, EM 2018?
Enfoca-se a “Receita Federal”, aqui, porque sabemos que a esfera federal, além de referência mundial em vários aspectos, é modelo para as 27 fazendas estaduais e os outros 5.760 fiscos municipais.

A Receita Federal consolidou-se no Decreto 63.659, de 20 de novembro de 1968. Segundo Isaias Coelho, subsecretário da Receita Federal na administração Dornelles[9], consultor do FMI e Diretor do Centro de Cidadania Fiscal – CCiF, a criação da Receita Federal do Brasil ocorreu em concomitância à extinção de outros 6 órgãos de Estado: (i) Departamento de Imposto de Renda, (ii) Departamento de Rendas Aduaneiras, (iii) Departamento de Receitas Internas, (iv) Departamento de Arrecadação, (v) Comissão de Eficiência do Ministério da Fazenda e (vi) Seção de Organização do Ministério da Fazenda. Entre os enfoques da nova filosofia da Receita Federal, implantada em 1968, estava: unicidade na relação fisco/contribuinte, uso intensivo de processamento de dados e da inteligência fiscal; investimento em capital humano; blindagem contra corrupção; publicidade das bases de dados e educação fiscal. Infelizmente, a Receita Federal até agora não se tornou aquela que foi pensada em 1968[10].

Não adianta reformar a Constituição Federal, nem criar um novo sistema tributário nacional e racional se não mudarmos a lógica de aplicação do direito dos fiscos federal, estadual e municipal. Acreditamos que o exemplo, o modelo e a revolução desse sistema deve começar pela Receita Federal do Brasil.

Bases para uma transformação (“aggiornamento”) da Receita Federal do Brasil (benchmarking): não há razão para a Receita Federal do Brasil não ser uma das melhores do mundo, para tanto é útil compará-la, em todas as dimensões de sua atividade, a suas melhores congêneres (países escandinavos, Austrália, Cingapura, Reino Unido, Chile etc)[11].

Mensurar, mensurar, mensurar: é preciso usar a mensuração para orientar a ação[12]. É preciso conhecer os custos e benefícios de operação, do empreendimento de novos projetos, da ação e da inação da RFB. A atividade de fiscalização dever estar informada por análise de risco: contribuinte e atividade que apresentam mais riscos de evasão devem suportar carga maior de controle que contribuintes de baixo risco. É essencial o uso intenso e responsável de inteligência fiscal para detectar desvios de cumprimento de obrigações em molestar o contribuinte adimplente com seus deveres.[13]

A Receita Federal do Brasil precisa de autonomia técnica para exercitar suas funções sem ingerência política. Trata-se de reivindicar seu status de órgão de Estado, gozando de independência comparável àquela desfrutada pelo Banco Central e a Polícia Federal. A organização autárquica seria um modelo a considerar. Idealmente, a RFB deveria poder estabelecer a remuneração de seus quadros com dotação orçamentária determinada em função do valor dos serviços que presta.[14] Mas para saber que serviços presta, seria essencial que oferecesse transparência para que a sociedade pudesse avaliar, de fato, tais serviços.

A Receita Federal precisa ser, pois, mais cidadã. Precisa de um Conselho da Receita Federal (similar ao conselho de grandes empresas) que ofereça orientação estratégica sem interferir no dia-a-dia da arrecadação[15].

É preciso retomar os ideais que inspiraram a criação da Receita Federal do Brasil[16], que defendiam cooperação, transparência, con-vencer (sem vencer somente pela força e pela presunção de validade dos autos de infração). A Receita Federal do Brasil precisa lograr mais capilaridade e não dispor, simplesmente, das carroças em círculo em torno dos grandes contribuintes[17]. O maior objetivo da educação fiscal, que precisa ser ampliada e promovida, deve ser criar a consciência de que a evasão fiscal é uma ofensa ao corpo social, não ao fisco[18].

Sem CPMF e diante dos prenúncios de um novo PIS/COFINS, modelo clássico – sem exceções, alíquota única, crédito financeiro, alíquota por fora (sem incidência de imposto sobre imposto) e diante da possibilidade de diálogo democrático -, o horizonte aponta o alvorecer de uma nova Receita Federal do Brasil…

Magister Dixit.

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[1] Retórica e Estado de Direito, Ed. Campus, 2008, p. 161-2.

[2] Idem, p. 161.

[3] Cf. Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade: exercício da cidadania fiscal rumo ao controle social, 1º Capítulo.

[4] http://www.valor.com.br/arquivo/639947/apos-11-meses-em-queda-arrecadacao-sobe-e-bate-recorde-em-outubro

[5] Cf. Valor Econômico de 23/11/2009: “Governo Divulga em dezembro dívidas que foram aceitas nos REFIS”.

[6] Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo, RT, 1977, p. XIII.

[7] Declarações que ajudam fisco e contribuintes, 28/08/2015, página E2.

[8] Nesse sentido, o Centro de Cidadania Fiscal – CCiF (Think Tank composto por Bernard Appy, Eurico de Santi, Isaias Coelho e Nelson Machado) apresentou ao Senado Federal a proposta de Emenda n. 78, defendendo que o contribuinte informe sobre a operação ao Fisco e que uma comissão de notáveis da Receita analisaria e abriria consulta pública, para, em sessão pública, a Receita deliberar: se não aceitar a operação como lícita, a operação vai para uma lista negra. No prazo de 90 dias, os contribuintes que declararem aquele tipo de operação poderiam pagar o devido, sem multas: só após esse prazo, o Fisco poderia autuar e e aplicar a multa qualificada.

[9] Que receita federal queremos? Apresentação em ppt em workshop do NEF/FGV, em 24/11/2014. http://docslide.com.br/documents/que-receita-federal-queremos-workshop-nef-24112014-isaias-coelho-nucleo-de-estudos-fiscais-nef.html

[10] Isaias Coelho. Idem.

[11] Isaias Coelho. Idem.

[12] Isaias Coelho. Idem.

[13] Isaias Coelho. Idem.

[14] Isaias Coelho. Idem.

[15] Isaias Coelho. idem.

[16] Isaias Coelho. Idem.

[17] Isaias Coelho. Idem.

[18] Isaias Coelho, Idem.

Eurico Marcos Diniz de Santi

Coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP e autor do livro Kafka, Alienação e Deformidades da Legalidade

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