O planejamento tributário na visão do STF: a ADI 2.446
Helenilson Cunha Pontes
O Supremo Tribunal Federal deve, nos próximos dias, concluir o julgamento de tema importantíssimo para o direito dos contribuintes brasileiros perante o Fisco. Trata-se do direito à liberdade de planejamento dos negócios objetivando a menor tributação possível, dentro do espaço de legalidade definido pela ordem jurídica para eleição das formas jurídicas possíveis para as transações econômicas realizadas.
Editada em 2001, a Lei Complementar 104 inseriu o parágrafo único ao art. 116 do Código Tributário Nacional (CTN) estabelecendo que “a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária.”
Esta norma foi impugnada no Supremo Tribunal Federal através da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.446 sob o fundamento de ofensa aos princípios da legalidade, da tipicidade cerrada e da separação de poderes, bem como por permitir a exigência de tributo com base em analogia e por inserir a interpretação econômica no Direito Tributário brasileiro.
A Corte iniciou o julgamento do processo no Plenário Virtual, onde a ministra Carmem Lucia, relatora, proferiu voto pela constitucionalidade da norma impugnada, afastando as argumentações quanto à incompatibilidade da norma impugnada com a Constituição da República, sendo acompanhada até o momento por outros 4 (quatro) ministros, a saber, Marco Aurélio, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. O processo encontra-se atualmente com vista ao ministro Ricardo Lewandowski.
Restando apenas um voto para a definição do tema, importante observar os fundamentos do voto da ministra relatora que, ao que tudo indica, deve representar o pensamento majoritário da Corte acerca da questão alusiva aos limites da liberdade de planejamento tributário.
Desde logo, é preciso situar o tema do planejamento tributário no plano constitucional como prerrogativa individual inserida no espaço de liberdade do contribuinte assegurada pelo princípio da livre iniciativa econômica (art. 170, caput), fundamento da ordem econômica brasileira. Como desde longa data sustentamos, “a liberdade de planejamento tributário radica no princípio constitucional da livre iniciativa, como aptidão reconhecida juridicamente aos indivíduos para administrarem a sua propriedade no sentido que melhor entenderem, dentro da zona de licitude que a ordem jurídica lhes garante.”1
A citada norma impugnada foi editada com o objetivo declarado de estabelecer autorização legal para que a autoridade tributária pudesse desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de elisão, “constituindo-se, dessa forma, em instrumento eficaz para o combate aos procedimentos de planejamento tributário praticados com abuso de forma ou de direito”.2
O objetivo do legislador foi claro no sentido de criar uma norma antielisão, através da imposição de um limite ao espaço constitucional de liberdade do contribuinte para planejar suas atividades econômicas buscando a menor carga tributária possível, conferindo autorização legal para a autoridade tributária combater planejamentos tributários praticados com abuso de forma ou de direito, sem, no entanto, definir os contornos normativos destas figuras jurídicas, altamente nebulosas e duvidosas quanto ao seu âmbito de aplicação concreta, especialmente na seara do Direito Tributário, onde o núcleo da relação jurídica envolve um limite ao poder do Estado.
Contudo, não foi essa a conclusão da ministra relatora. Para ela, “a despeito dos alegados motivos que resultaram na inclusão do parágrafo único ao art. 116 do CTN, a denominação “norma antielisão” é de ser tida como inapropriada, cuidando o dispositivo de questão de norma de combate à evasão fiscal.” Tal afirmação repousa na adoção pela relatora, da célebre distinção doutrinária entre elisão e evasão tributária que reparte a ação individual nos campos da licitude — ações lícitas deliberadamente praticadas para evitar a ocorrência do fato gerador — e da ilicitude — ações ilícitas que objetivam acobertar a realização do fato gerador ocorrido.
A relatora afasta, assim, a possibilidade de exigência de tributos sobre os chamados fatos jurídicos abusivos, a saber, aqueles fatos jurídicos lícitos que mesmo não se conformando à disciplina da hipótese de incidência tributária devem, segundo alguns, por ela ser alcançados porque praticados com a exclusiva motivação de economia tributária. A exigência tributária deve resultar de um juízo objetivo de subsunção entre a hipótese legal e o fato jurídico. Incabível qualquer cogitação de natureza subjetiva acerca da motivação para a realização do fato jurídico. O fato jurídico tributário ou é lícito, situado no campo da elisão, ou é ilícito, no plano da evasão. Tertium non datur.
Entendida como norma antievasão, a mensagem normativa do parágrafo único do art. 116 do CTN é exatamente a que deriva do seu texto, isto é, a de conferir uma autorização legal expressa à autoridade fiscal para desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular, encobrir, falsear, ocultar a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, e como consequência, exigir o tributo devido em função do fato gerador efetivamente realizado e dissimulado, encoberto, falseado, ocultado pelo ato ilícito desconsiderado.
Trata-se de norma que objetiva admitir no plano do Direito Tributário os efeitos tributários dos atos ou negócios dissimulados que foram encobertos pelos atos ou negócios simulados, e que são nulos sob a perspectiva do Direito Civil (art. 167, caput, Código Civil).3 Todavia, esta admissão, porque excepcional, requer prévio procedimento a ser estabelecido por lei ordinária, consoante o comando da parte final do parágrafo único ao art. 116 do CTN.
O Direito Tributário brasileiro não combate, nem torna ilegal ou ilegítima, a motivação do contribuinte de escolher as formas jurídicas ou os caminhos negociais lícitos que representem a menor carga tributária possível. O que a norma tributária impugnada combate, e o voto da Ministra relatora deixa claro, é a motivação ilícita de dissimular, encobrir, falsear, ocultar a prática de fatos jurídicos tributários, escolhidos pelo legislador como fatos geradores do dever de pagar tributos, o que, de resto, não é novidade no nosso sistema jurídico que, desde longa data, já considera nulos os negócios jurídicos simulados no plano do Direito Civil.
É sob esta premissa fundamental na análise da questão que a Ministra relatora afasta a alegação de conflito da norma impugnada com os princípios da legalidade, da tipicidade cerrada e da separação de poderes. Segundo seu pensamento, “o parágrafo único do art. 116 do Código não autoriza, ao contrário do que argumenta a autora, ‘a tributação com base na intenção do que poderia estar sendo supostamente encoberto por um forma jurídica, totalmente legal, mas que estaria ensejando pagamento de imposto menor, tributando mesmo que não haja lei para caracterizar tal fato gerador’. A autoridade fiscal estará autorizada apenas a aplicar base de cálculo e alíquota a uma hipótese de incidência estabelecida em lei e que tenha se realizado.”
Em outro dizer, não há autorização legal no Direito brasileiro para a autoridade fiscal, fundada em motivações extrajurídicas quanto às razões do contribuinte para a prática de fatos jurídicos, exigir tributo sobre fato gerador não realizado ou realizado em termos distintos do previsto na hipótese de incidência tributária. A norma impugnada, segundo a Ministra relatora, “visa conferir máxima efetividade não apenas ao princípio da legalidade tributária mas também ao princípio da lealdade tributária”, ou seja, vem no sentido de reforçar a vedação à cobrança de tributos sem correspondência objetiva entre o fato jurídico realizado pelo contribuinte e aquele previsto na hipótese de incidência tributária.
A Ministra relatora reconhece expressamente que a norma do parágrafo único do art. 116 do CTN não retira incentivo ou estabelece proibição ao planejamento tributário das pessoas físicas ou jurídicas, nem proíbe o contribuinte de buscar, pelas vias legítimas e comportamentos coerentes com a ordem jurídica, economia fiscal, realizando suas atividades de forma menos onerosa, e, assim, deixando de pagar tributos quando não configurado fato gerador cuja ocorrência tenha sido licitamente evitada.
Vale dizer, reconhece-se a licitude de ações (de planejamento tributário) realizadas no exercício da liberdade de buscar (motivação) a menor carga tributária possível (economia fiscal), evitando a prática de fatos jurídicos tributários previstos em lei. Por outro lado, assenta-se a ilicitude de ações que objetivem dissimular, encobrir, falsear ou ocultar a prática de fatos geradores tributários efetivamente já praticados, autorizando a autoridade fiscal a exigir tributos sobre os fatos jurídicos dissimulados, encobertos, falseados ou ocultados pela ação ilícita.
Assim entendida, a norma do parág. único do art. 116 do CTN, nenhum conflito guarda com a vedação à cobrança de tributos com base em analogia, já contemplada pelo parág. 1º do art. 108 também do CTN. Com efeito, a norma impugnada não autoriza a autoridade fiscal a exigir tributo não expressamente previsto em lei; ao contrário, reforça o dever de obediência à estrita legalidade tributária quando permite que fatos jurídicos previstos em lei possam ser tributados quando forem dissimulados, encobertos, falseados ou ocultados pela ação ilícita do contribuinte.
Por fim, a ministra relatora afasta ainda qualquer possibilidade de adoção, pelo legislador do parágrafo único do art. 116 do CTN, da teoria da interpretação econômica do fato gerador, porque esta norma não trata de critério de interpretação de lei.
Do voto da ministra relatora permite-se extrair algumas conclusões sobre a visão do Supremo Tribunal Federal sobre o tema da liberdade de planejamento tributário:
Não há no Direito Positivo brasileiro norma que autorize a autoridade fiscal a desconsiderar os regulares efeitos jurídicos de atos ou negócios jurídicos praticados validamente e sem simulação, segundo critérios do Direito Civil, mesmo com o objetivo exclusivo e declarado de menor carga tributária.
O contribuinte tem plena liberdade para escolher os atos e negócios jurídicos que representem a menor carga tributária para as suas transações, desde que estes atos e negócios jurídicos sejam válidos e não simulados, nos termos do Direito Civil.
A motivação exclusivamente tributária constitui interesse jurídico protegido pela ordem constitucional, desde que materializada através de condutas prévias à ocorrência do fato gerador e mediante meios lícitos segundo a disciplina do Direito aplicável. Não é ilícita, abusiva ou ilegítima a opção de buscar a forma jurídica que represente a menor carga tributária para a transação ou operação econômica desejada.
Considerações de caráter subjetivo quanto à motivação tributária do contribuinte para a eleição de certos atos e negócios jurídicos são incabíveis no Direito Tributário, sempre que estes atos ou negócios jurídicos sejam válidos perante as regras do Direito Civil.
No Direito Tributário brasileiro, por absoluta ausência de norma legal, não cabe cogitar da aplicação das figuras do abuso de forma, abuso de direito, falta de propósito negocial ou consideração econômica do fato gerador, figuras adotadas por outros ordenamentos para limitar o direito do contribuinte à busca da menor carga tributária possível para os seus negócios, dentro das opções válidas que a ordem jurídica apresenta.
É incabível no Direito brasileiro a figura do ato ou negócio jurídico válido segundo a disciplina do Direito Civil, mas “abusivo” no plano do Direito Tributário porque praticado com motivação exclusivamente tributária. O ato ou negócio jurídico é lícito ou ilícito, tertium non datur, inclusive para o Direito Tributário.
A limitação ao direito do contribuinte de buscar a menor carga tributária possível exige a edição de norma específica sobre o tema, que não é aquela veiculada pelo parágrafo único do art. 116 do CTN, a qual consubstancia autêntica norma antievasão cujo objetivo é autorizar a autoridade fiscal a considerar, obedecidos os procedimentos previstos em lei, os efeitos fiscais dos atos dissimulados pela prática ilegal do contribuinte de falsear, ocultar os fatos geradores efetivamente realizados.
A norma do parág. único do art. 116 do CTN objetiva autorizar a autoridade fiscal a considerar, obedecido o procedimento previsto em lei, os efeitos fiscais de atos dissimulados que foram encobertos pelos atos ou negócios simulados, que são nulos no plano do Direito Civil (art. 167, caput, Código Civil).
As conclusões do voto da ministra relatora devem colocar abaixo uma biblioteca de certa doutrina que, durante duas décadas, sustentou, sem qualquer apoio no direito positivo brasileiro, a aplicação de figuras copiadas de outros sistemas jurídicos e transplantadas para o nosso Direito Tributário, tais como o abuso de direito, abuso de forma, motivação negocial ou interpretação econômica do fato gerador, motivados por simples “desejo hermenêutico” ou “quero porque quero”.
É certo que a doutrina tem importante papel na construção do direito de uma sociedade, mas a segurança jurídica, objetivo último do sistema jurídico, exige a primazia do direito positivo, sobretudo quando se trata de questões relacionadas ao exercício das liberdades individuais contra o poder do Estado.
O voto da ministra relatora sobre o tema do planejamento tributário retoma o princípio elementar segundo o qual um ato não pode ser juridicamente lícito no plano do Direito Civil e ilícito (ainda que sob o epíteto de “abusivo”) no plano no Direito Tributário. Simples assim, ainda que parte da doutrina e algumas autoridades fiscais insistam em ilegalmente continuar a aplicar figuras jurídicas só previstas nos livros de teoria e em outros ordenamentos. Prefiro ficar com a nossa Constituição da República, com o nosso Direito Tributário positivo e na companhia do voto da Ministra Carmem Lúcia e dos eminentes juristas por ela citados para alicerçar o seu pensamento sobre tema tão importante para a liberdade individual do contribuinte brasileiro.
1 O princípio da proporcionalidade e o Direito Tributário. 2ª. ed. ampliada. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 184.
2 Cf. a exposição de motivos do Projeto de Lei Complementar n. 77/1999, elaborada pelo então Ministro de Estado da Fazenda, trecho citado no voto da Ministra Carmem Lucia na ADI 2446.
3 Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. Fonte Conjur
Helenilson Cunha Pontes
Advogado parecerista, livre-docente em Legislação Tributária pela USP e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela mesma instituição.