Depósitos judiciais, litigância tributária e a “regra de ouro” financeira

Fernando Facury Scaff

Tinha razão Tom Jobim quando disse que o Brasil não era um país para principiantes.

Vejam só: a presidente Dilma sancionou a Lei Complementar 151, em 5 de agosto de 2015, que determina que os depósitos judiciais e administrativos realizados em dinheiro, envolvendo matéria tributária ou não, nos quais os estados, Distrito Federal e municípios sejam parte, deverão ser efetuados em instituição financeira que, obrigatoriamente, transferirá 70% do depósito aos cofres desses entes federativos, que serão usados para pagamento de precatórios em atraso, despesas de capital ou fundos de previdência (artigo 8º), sendo permitido usar até 10% do montante para abastecer o fundo garantidor de PPPs (artigo 7º, parágrafo único). Consta que o principal interessado nessa lei é o estado de São Paulo, e que a mesma teve apoio do governador Geraldo Alckmin e do senador José Serra. O decreto paulista liberando os recursos já foi até publicado. O foco do debate parlamentar é que mais de R$ 21 bilhões “estocados” serão liberados para que esses entes federados cumpram seus compromissos financeiros, e cerca de R$ 1,6 bilhão serão liberados ao ano, todos os anos. Convenhamos que essas cifras não representam trocados.

Todavia, ao mesmo tempo, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, no seio da ADI 5072, convocou a realização de uma audiência pública para discutir a utilização de parcela dos depósitos judiciais para quitação de precatórios, pois, por meio dessa norma, o estado do Rio de Janeiro é autorizado a utilizar os depósitos judiciais para pagamento de precatórios até o limite de 70%.

Voltando à estupefação de Tom Jobim: como é que, ao mesmo tempo, é sancionada uma lei que dispõe sobre o mesmo assunto que é contestado através de ADI perante o STF, sendo, inclusive, convocada uma audiência pública para melhor analisar a matéria no âmbito jurisdicional? Realmente, esse país não é para principiantes.

O tema é importantíssimo sob vários aspectos e justifica a preocupação do ministro Gilmar Mendes em convocar a audiência pública para debater a matéria. Vou tentar expor alguns aspectos muito preocupantes que certamente aflorarão no debate.

Qual a operação foi desenhada, seja pela Lei Complementar 151, seja pelas diversas leis estaduais que estão sob a mira do STF?: liberação dos depósitos judiciais já existentes e dos que vierem a ser realizados para fazer frente a despesas correntes, principalmente gastos com precatórios. Depósitos judiciais não são receitas públicas, mas ingressos. Ingressos não são receitas; eles apenas transitam pelos cofres públicos. Receitas correspondem a valores que acrescem o patrimônio público. Outra coisa são despesas correntes, como o pagamento de precatórios, em especial os atrasados, que, em face dessa(s) norma(s), serão quitados com valores que não se caracterizam como receitas, mas como meros ingressos. Em apertada síntese: com essa norma, os estados e municípios vão pagar despesas correntes com ingressos, e não com receitas. Ingressos devem ser devolvidos; receitas, não. Regis de Oliveira expôs esse mecanismo em texto que circulou dias atrás.

A simples descrição dessa operação demonstra o absurdo da medida, pois foi criada uma espécie de empréstimo entre o Tesouro Público dos estados e municípios, e todos os depositantes judiciais. Não estou falando da figura tributária do empréstimo compulsório previsto no artigo 148 da Constituição. Falo de um empréstimo público, que aumenta a dívida pública, e que obrigatoriamente deve ser contabilizado como dívida nos registros desses entes públicos, o que seguramente vai extrapolar os limites estabelecidos pelo Senado Federal para seu endividamento (artigo 52, VI, CF). Na verdade, esses limites já foram explodidos, pois algumas dívidas públicas não são devidamente contabilizadas, como a dos estados com as empresas exportadoras, que possuem o direito constitucional (artigo 155, parágrafo 2º, X, “a”) de reaver o saldo credor de ICMS, que não é pago ou o é a conta-gotas, conforme expus em outra coluna.

Logo, o que essa norma está fazendo é permitir a criação daquilo que os economistas chamam de “quase moeda”, ou seja, um meio de pagamento equivalente à moeda, tal como os depósitos remunerados da caderneta de poupança. Isso permitirá que estados e municípios aumentem o meio circulante por meio desse endividamento, em uma operação que, na prática, lhes permitirá emitir moeda, podendo, em alguns casos, se beneficiar de uma válvula processual. Explico melhor.

Suponhamos a seguinte situação, que não é fruto de singela imaginação. Um estado cria uma espécie de taxa de fiscalização que atingirá um número determinado de contribuintes. Usarei como exemplo uma Taxa de Fiscalização de Recursos Minerais (TFRM), que atingirá fortemente o setor empresarial da mineração, ou uma Taxa de Fiscalização de Recursos Hídricos (TFRH), cujo foco é o setor hidrelétrico. O debate seguramente será judicializado, por várias razões jurídicas relevantes, mas a suspensão da exigibilidade do tributo só ocorrerá através da concessão de garantias, que, muitas vezes, são exigidas em dinheiro, e não sob a forma de seguro-garantia ou fiança bancária — basta ver a expectativa de existir R$ 1,6 bilhão de recursos depositados judicialmente a cada ano. Assim que a empresa depositar, 70% do montante será imediatamente levantado por aquele estado que criou a exação e os recursos serão desde logo utilizados. Se, ao final do processo, o estado for derrotado e tiver que devolver o montante depositado, o governador e a Assembleia Legislativa já serão ocupados por outras pessoas, e o problema foi repassado. Para usar uma expressão usual, o problema fiscal será “pedalado”. Será um problema para o futuro, para as futuras gerações. Eis porque a questão da dívida pública sempre traz um problema intergeracional, não podendo jamais ser pensada para resolver problemas de despesas correntes.

O que exemplifiquei com estados será seguramente amplificado com a extensão dessa possibilidade para os 5.500 municípios brasileiros, cujo nível de responsabilidade fiscal é bastante duvidoso. Conversava dias atrás, durante o XIV Congresso Internacional de Direito Tributário de Pernambuco, organizado pela professora Mary Elbe com o colega Eduardo Maneira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e ele comentava sobre uma curiosa taxa de fiscalização sobre a rede elétrica criada por certo município, que, na prática, cobrava determinado valor sobre cada poste de eletricidade existente naquela cidade. Seguramente a fiscalização serviria para constatar que os postes não sairão correndo pela cidade e levando a fiação elétrica consigo…

A Associação dos Magistrados do Brasil ingressou com ADI para obter a declaração de inconstitucionalidade da Lei Complementar 151. Trata-se da ADI 5361, na qual se alega que aquela lei complementar fere a separação de poderes, viola o devido processo legal e cria um empréstimo compulsório fora das hipóteses legais. O relator é o ministro Celso de Mello, que já despachou acatando a Ordem dos Advogados do Brasil como amicus curiae, porém nada disse ainda acerca do pedido liminar requerido.

Quanto ao litígio contra as leis estaduais que adotam normas semelhantes, além da ADI 5072 que ensejou a audiência pública acima referida, relativamente ao estado do Rio de Janeiro, existe a ADI 5353, contra lei do estado de Minas Gerais, além de outras ADIs propostas contra o estado da Paraíba (ADI 5365), o estado da Bahia e o estado do Paraná, segundo notícia veiculada nesta ConJur. Outros estados possuem leis semelhantes, sendo que o debate sobre sua constitucionalidade pode ainda não ter sido levado ao STF. A discussão, com algumas variações dentre cada lei estadual, é centrada no mesmo ponto: utilização dos depósitos judiciais pelo Poder Executivo estadual para a quitação de dívidas. A novidade da Lei Complementar 151 é a permissão desse procedimento pelos municípios — além de chancelar a conduta dos estados. O STF já entendeu na ADI 3458, cujo relator foi o ministro Eros Grau, que a matéria de depósitos judiciais é de competência legislativa exclusiva do Poder Judiciário, em que se discutia lei do Estado de Goiás. E na ADI 2909, cujo relator foi o ministro Ayres Britto, referente à lei do estado do Rio Grande do Sul, foi decidido que se trata de matéria reservada à iniciativa legislativa da União.

Aliás, a Lei Federal 9.703/98, que adotou prática semelhante para a União, foi julgada procedente na ADI 1.933, que teve por relator o ministro Eros Grau. Nesse julgamento, houve debates sobre a pertinência dessas normas para os estados, porém, como não se tratava do objeto sub judice, nada foi deliberado acerca desse aspecto, exceto a preocupação com eventual indisponibilidade de recursos em caso de o vitorioso na lide vier a levantar os recursos, e não haver caixa disponível para honrar o compromisso. Esse debate se transformou em obter dictum.

Deve-se observar que existem outros interesses subjacentes ao que acima foi exposto, pois há uma guerra pela titularidade desses recursos, entre o Poder Judiciário e o Poder Executivo desses estados. O Poder Executivo pretende usar esses depósitos para quitar dívidas com precatórios e outras despesas, enquanto que o Poder Judiciário deseja manter esses recursos sob sua tutela também porque recebe o spread bancário sobre seu uso, sendo esses recursos carreados para fundos administrados por esse poder. Esse é o ponto central que justifica a entrada da AMB nesse litígio. Ocorre que o Poder Judiciário não usa os recursos, mas apenas o spread bancário; enquanto o Poder Executivo usará os recursos para pagamento de despesas. Entre a cruz e a caldeirinha, viva o Poder Judiciário.

O fato é que o uso desses recursos para pagamento de precatórios e outras despesas semelhantes liberará uma fortuna para outros gastos livres, e é exatamente isso que buscam os gestores desses entes federados. Os litigantes, em processos contra o Fisco, correm o risco de ver os depósitos que realizaram virar pó, em face do descasamento do prazo entre o uso dos recursos pelo poder público e a longa duração do processo. Se e quando forem levantar o dinheiro, pode ocorrer de dinheiro não mais haver — dele só restar uma fotografia na parede (como Itabira, de Carlos Drummond de Andrade), ou uma série de despachos judiciais. E esses litigantes, vencedores em processos judiciais transitados em julgado, com direito ao levantamento dos depósitos judiciais que realizaram, terem que entrar em uma fila de precatórios para receber o que lhe será devido.

Se eu tivesse "tinta na caneta", não permitiria aos entes federados utilizar o dinheiro dos depósitos judiciais. Como advogado, sei que todos os argumentos devem ser levados ao Poder Judiciário, que acatará uns e afastará outros. Logo, estrategicamente, tudo que tiver a mais remota correlação com o caso em debate deve ser apresentado nas petições. Portanto, acresceria mais um argumento aos já expendidos nas diversas lides em curso, e que me parece de muito especial importância. A infringência constitucional, segundo entendo, está no artigo 167, III, que consagra a “regra de ouro” do Direito Financeiro, e que estabelece que só podem ser contraídas dívidas para gastos em despesas de capital. No caso, como referido, os depósitos judiciais poderão ser usados para o pagamento de precatórios e para a quitação de dívidas com fundos de previdência — isto é, para gastos com despesas correntes. Logo, não se pode fazer dívida para realizar despesas correntes. Aí está a gritante inconstitucionalidade dessas leis estaduais e da Lei Complementar 151/15. Não se trata da espécie tributária empréstimo compulsório na forma do artigo 148, CF, mas de um empréstimo público, tomado por estados e municípios de todos os depositantes judiciais, que deve ser devolvido, e que será utilizado para gastos correntes, o que viola a regra de ouro financeira, prevista no artigo 167, III, CF, o qual determina que o endividamento só pode ocorrer para a realização de despesas de capital.

Eis mais um ponto a ser debatido por quem for participar da audiência pública convocada em boa hora pelo ministro Gilmar Mendes, o qual, seguramente, não faz parte do grupo de principiantes mencionados por Tom Jobim, citado no início desse texto.

*Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico do dia 08 de setembro de 2015.

 

Fernando Facury Scaff

Advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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