O imposto territorial rural diante do princípio da proibição de tributos com efeito de confisco
Arthur Paiva Monteiro Rêgo & Jerônimo Dix-neuf Rosado dos Santos
1. Introdução
O presente estudo busca, de forma bastante sintética, efetuar uma análise do uso da extrafiscalidade tributária, no Direito brasileiro, como instrumento hábil ao fomento da correta e máxima utilização das propriedades rurais, desestimulando-se, através do Imposto Territorial Rural – ITR, a manutenção de terras improdutivas, nas quais houve mitigação da função social.
A Lei 9.393/96 inseriu expressamente a progressividade no âmbito do Imposto Territorial Rural, com a imposição de alíquotas crescentes à medida que aumentada a riqueza tributável ou, no caso específico do ITR, na medida em que aumenta o grau de improdutividade da propriedade rural.
Todavia, o citado diploma legal, ainda que na busca por um melhor aproveitamento das propriedades rurais, trouxe uma variação de alíquotas exorbitante, como se pode observar mais facilmente no caso de propriedades acima de 1.000 ha e, principalmente, na exação exigida sobre propriedades acima de 5.000 ha, alvo máximo do presente estudo.
Portanto, confrontar-se-á o princípio da proibição de tributos com efeito de confisco, com a utilização da progressividade de alíquotas trazida pela Lei 9.393/96, do Imposto Territorial Rural – ITR, verificando-se, assim, se há ou não efetivo efeito confiscatório no critério quantitativo da regra matriz de incidência tributária.
2. Da Extrafiscalidade
Numa abordagem das normas extrafiscais, Aliomar Baleeiro ensina que: “costuma-se denominar de extrafiscal aquele tributo que não almeja, prioritariamente, prover o Estado de meios financeiros adequados a seu custeio, mas antes visa a ordenar a propriedade de acordo com a sua função social ou a intervir em dados conjunturais (injetando ou absorvendo a moeda em circulação) ou estruturais da economia. Para isso, o ordenamento jurídico, a doutrina e a jurisprudência têm reconhecido ao legislador tributário a faculdade de estimular ou desestimular comportamentos, de acordo com os interesses prevalentes da coletividade, por meio de uma tributação progressiva ou regressiva, ou da concessão de benefícios ou incentivos fiscais”.
Assim, pode-se entender a extrafiscalidade como técnica disponível ao Estado que, através da progressividade ou regressividade de alíquotas e bases de cálculos, ou ainda com a concessão de benefícios ou incentivos fiscais, visa estimular ou desestimular determinadas condutas que o legislador originário trouxe como desejável e benéfica a coletividade.
Com relação ao ITR, objeto do presente estudo, o legislador constituinte inseriu no artigo 153, § 4º da Constituição Federal, a progressividade de alíquotas, para que as propriedades rurais tenham máximo aproveitamento, desestimulando assim a manutenção de propriedades improdutivas e com o intuito de que as propriedades atendam a sua função social.
A progressividade encartada na Constituição Federal de 1988, culminou com a edição da Lei 9.393/96 que dispôs sobre o Imposto Territorial Rural, que por seu turno trouxe materializada a progressividade de alíquotas na tabela encartada o anexo I do referido diploma legal.
3. Princípio da Proibição de Tributos com Efeito Confiscatório
O princípio da proibição de tributos com efeito de confisco, também conhecido por princípio da vedação ao confisco, dentro outras denominações trazidas pela doutrina especializada, foi posto no corpo da Carta Política, mais precisamente, na seção que trata das limitações ao poder de tributar (artigo 150, IV).
Trata-se, a bem da verdade, de princípio de difícil delimitação, pois o que para alguns pode facilmente configurar hipótese clara de confisco, para outros pode apresentar-se como legítima exigência de tributo para manutenção do Estado ou para desestimular ou estimular determinados comportamentos.
O Professor Roque Antonio Carrazza (2011, p. 110) pontua que “é confiscatório o imposto que, por assim dizer “esgota” a riqueza tributável das pessoas, isto é, não leva em conta suas capacidades contributivas”.
Dessa forma, vê-se que o princípio da proibição de tributos com efeito confiscatório, tem a nítida missão de impor um limite à sanha arrecadatória do fisco, para evitar que a tributação, ainda que decorrente da extrafiscalidade, esgote totalmente a riqueza tributável das pessoas, ao ponto de extrair suas propriedades sem o pagamento de indenização justa.
3.1 Princípio Da Proibição De Tributos Com Efeito Confiscatório e as Multas
Com relação às multas, ainda que saiba-se que as mesmas não são tributos, tendo em vista a expressa ressalva feita pelo artigo 3º, do Código Tributário Nacional, tratando-se assim, de sanção imposta pelo Estado em razão do descumprimento por parte do contribuinte de sua obrigação tributária. afigurando-se absolutamente relevante a sua análise no contexto proposto no presente texto, uma vez que somadas a obrigação principal agravam substancialmente a flagrante agressão ao patrimônio dos contribuintes.
Nessa rota, ocorre que muitas vezes as multas aplicadas pelo Fisco na intimidação dos contribuintes, para que não deixem de cumprir com suas obrigações tributárias, podem tornar-se por demais excessivas, de modo que estaria também atingindo o postulado constitucional em voga, surgindo à dúvida se mesmo não se tratando de tributos poderia ser aplicado o princípio da vedação de tributos com efeitos confiscatórios.
Assim, importante registrar que a doutrina majoritária tem se manifestado favoravelmente à aplicação do postulado tributário às multas exacerbadas, seguindo nesse caminho inclusive o Pretório Excelso (ADI n. 1.075/DF). Desse modo, afirma-se em resumo, que tanto a multa moratória quanto a multa punitiva podem ser confiscatórias e afrontarem o referido postulado, se extrapolarem os lindes do adequado, do proporcional, do razoável e do necessário, colocando em xeque as suas precípuas finalidades, com a ofensa ao artigo 150, IV, e ao artigo 5, XXII, ambos da Carta Magna.
4. Do Confronto entre o Princípio da Proibição de Tributos com Efeito Confiscatório e a Lei 9.393/96 – Função Social e Alíquotas Progressivas
A Constituição Federal estampou em seu artigo 5º, XXIII, a necessidade de a propriedade atender a sua função social e a possibilidade de utilização da progressividade, já a lei 9.393/96, por seu turno, trouxe ao ordenamento jurídico a efetivação de alíquotas progressivas do Imposto Territorial Rural, no sentido de desestimular a manutenção de propriedades improdutivas, buscando a máxima utilização das terras disponíveis à nação, atendendo, assim, o interesse da coletividade.
Em um primeiro momento poderia parecer que a Carta Magna teria permitido que a exação, sob o pálido argumento de atender sua função social, pudesse se sobrepor tanto em relação ao não-confisco quanto em relação ao direito de propriedade.
Acontece que analisando o teor do texto constitucional, vemos com clareza que está não é a verdade que se extraí. Luis Fernando de Souza Neves, em sua obra, asseverou corretamente sobre o tema que: “é cediço que a Constituição Federal em seu art. 5º, XXIII, prescreveu que a propriedade deverá atender sua função social. Porém, esse mesmo artigo também garantiu no inciso imediatamente anterior – XXII-, que essa propriedade apesar de não ser mais considerada perpétua, exclusiva, absoluta ou incontrastável, jamais poderá ser desconsiderada e sob, qualquer pretexto, encampada pelo Estado em detrimento dos direitos do particular. Os limites à ação do Estado também estão postos nessa mesma Constituição nos artigos 5º, XXIV e 184”.
Referido Autor, segue seu irretocável raciocínio, trazendo que: “No primeiro deles o constituinte assegura o direito de propriedade, salvo caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia a justa indenização em dinheiro. Já à União competência para desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel que não esteja cumprindo sua função social, mas, condiciona essa ação do Estado à prévia e justa indenização”.
Dessa forma, percebe-se que muito embora a Constituição Federal tenha determinado que as propriedades devam atingir a sua função social, não permitiu de outro lado, que o Sujeito Passivo/Proprietário perca sua propriedade em detrimento do fisco, através de alíquotas desarrazoadas e confiscatórias, por não ter conseguido dar a efetiva e correta destinação à propriedade.
Caso não seja possível ou não tenha conseguido o Sujeito Passivo dar a destinação pleiteada na Carta Política, não pode o Estado simplesmente, tributar de forma exorbitante até que a propriedade seja extraída do contribuinte, através do seu confisco, ao revés, deve valer-se da desapropriação para fins de reforma agrária, mediante justa e prévia indenização,
Acrescente-se ainda outro ponto relevante trazido pela lei n. 9.393/96 apresentou, qual seja: a progressividade das alíquotas no ITR, através de uma variação em função do tamanho total da área e do seu efetivo grau de utilização.
Aqui é importante destacar que as alíquotas trazidas pelo referido diploma legal para imóveis com área total superior a 5.000 hectares, apresentam flagrante violação ao princípio da proibição de tributos com efeitos confiscatório, que embora alguns Autores já tenham apontando, continuam sendo amplamente utilizados pela Receita Federal do Brasil, em atuações fiscais, especialmente no Estado do Rio Grande do Norte.
Conforme já visto, o referido princípio veda a imposição de ônus insuportável ao contribuinte, ainda que se vise à arrecadação de recursos para fins específicos, sendo necessária ainda a observância da razoabilidade, sendo vedada sua imposição excessiva, de modo que ultrapasse os limites da capacidade contributiva dos particulares.
Ainda com base nos ensinamentos do Professor Roque Antonio Carraza (CARRAZA, p.111): “ a abrupta e excessiva majoração da base de cálculo, a ponto de dar ao contribuinte a impressão de que está sendo sancionado, agride o princípio da não confiscatoriedade, porque trará sérias repercussões em seu orçamento familiar (caso pessoa física) ou em suas atividades e patrimônio (caso da pessoa jurídica), que levarão considerável tempo para serem neutralizadas.”
Assim, percebe-se que o legislador infraconstitucional divorciou-se da intenção originária do Constituinte, que estabeleceu a possibilidade de progressividade da alíquota do imposto, apenas com o intuito de desestimular as propriedades improdutivas, ao passo que estabeleceu uma progressividade abusiva e distorcida.
Os critérios eleitos são corretos, ou seja, devem-se levar em consideração as variáveis positivadas “tamanho da área” e “aproveitamento”, todavia, não da forma confiscatória que está ocorrendo, com alíquotas de 20% que confiscarão invariavelmente a propriedade em cinco anos.
Percebe-se que os critérios devem ser utilizados de forma a possibilitar ao produtor rural – independente do tamanho de sua propriedade, extrair o máximo de produtividade de sua área rural, repreendendo do mesmo modo aqueles que não assim não estiverem procedendo, mas jamais da forma escrachante que vem ocorrendo.
Deve-se fazer de modo a possibilitar aos proprietários em respeito aos princípios da proibição de tributos com fins confiscatórios e do direito a propriedade, a plausibilidade de modificação da situação que ocasionou a progressividade e consequentemente o aumento da alíquota da exação, em tempo hábil a não permitir a perda súbita da área.
Pode-se inclusive ser utilizado os critérios existentes, mas de maneira escalonada e não absoluta e automática, permitindo que progressividade avance degrau a degrau ao passo que possibilitasse aos donos de terras menos produtivas a oportunidade de modificar a situação existente atingindo assim a intenção originária do legislador e possibilitando uma maior justiça tributária.
É necessário que se tenha em mente, que as propriedades rurais, para se tornarem efetivamente produtivas, ou ainda, para reverterem situações que ocasionem um menor grau de aproveitamento efetivo da propriedade, demanda um lapso temporal extenso.
Ora, as propriedades rurais, principalmente aquelas de maior extensão, como as analisadas no presente trabalho, demanda, sem sombra de dúvidas, tempo para que transformem seu estado atual, não sendo deste modo, minimamente aceitável, que se extraia a propriedade desses contribuintes, sem o fornecimento de tempo hábil para modificação da situação existente.
Impositivo ainda que seja lembrado, a existência de casos, em tais propriedades podem, por exemplo, serem oriundas de herança, e que o contribuinte, no pouco lapso temporal permitido pela legislação, não consiga obter a produtividade esperada, atingindo assim a função social estampada na Carta Política, nem tampouco, consiga vender a mesma em tempo apto a não ter sua propriedade/patrimônio, literalmente engolida pela sanha arrecadatória sempre presente, do fisco.
Caso se aceite tal imposição, estará patente a configuração da violação, não só do princípio da proibição de tributos com efeitos confiscatórios, bem como de diversos outros postulados constitucionais, com o da dignidade da pessoa humana.
Todavia, se a reversão é impossível, sempre estará ao dispor do Estado à possibilidade de valer-se da desapropriação para fins de reforma agrária, mediante justa e prévia indenização ou de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia a justa indenização em dinheiro, mas de forma alguma pode ser permitido o confisco de propriedade mediante a imposição de alíquotas confiscatórias, como aquelas trazidas no boja da Lei 9.393/96, para imóveis rurais com áreas superiores a 5.000 hectares.
Some-se ainda o fato, que no momento em que a obrigação tributária imposta pelo fisco não é paga pelo contribuinte, independentemente da razão, as sanções serão aplicadas, especialmente as multas, que em muitos casos, se somadas ao tributo exigível para aplicação da alíquota correspondente, irá, invariavelmente, determinar a perda do imóvel em menos de 4 anos, o que frise-se, é absolutamente inadmissível e incompatível com os princípios balizadores de nossa Carta Política.
Dessa forma, é seguro afirmar que a alíquota trazida na tabela de alíquotas da Lei n. 9.393/96, aplicável ao ITR, referente aos imóveis com área total superior a 5.000 hectares é inconstitucional, por violar frontalmente o princípio da proibição de tributos com efeitos confiscatórios, trazido no artigo 150, IV, da Constituição Federal.
4. Conclusão
Dessa forma, é necessário que tanto na busca de uma arrecadação melhor e mais eficiente, quanto no atendimento da função social da propriedade, sejam respeitados os princípios constitucionais, especialmente, como o da proibição de instituição e cobrança de tributos com fins confiscatórios, da capacidade contributiva, da isonomia, da proporcionalidade, da razoabilidade e o direito à propriedade, que embora tenha sido mitigado pela Carta de Direitos de 1988, não concedeu ao princípio da função social da propriedade “força” ou “status” superior ao do princípio do não confisco, não sendo plausível a extração de uma propriedade de uma particular por uma exação desarrazoada e desproporcional.
Imperioso que ressaltemos ainda, que as normas devem sempre ser interpretadas a partir da Constituição, e, não ao inverso.
Assim, devemos ainda levar em consideração que a tributação, ainda que seja uma permissão constitucional de “invasão” da propriedade do contribuinte, não pode jamais violar os próprios dispositivos constitucionais, especialmente os princípios que guiam a atividade tributária.
Acrescente-se que em caso de conflito entre princípios constitucionais, sabe-se que devemos utilizar a técnica do sopesamento, para verificarmos qual deles deverá prevalecer no caso concreto.
Daí, de todos esses argumentos, conclui-se que a alíquota de 20% trazida pela já diversas vezes mencionada Lei 9.393/96, viola o princípio da proibição de tributos com efeito confiscatório, bem como os direitos e garantias fundamentais, surgindo a necessidade expelir – lá no nosso sistema, diante de sua flagrante inconstitucionalidade.
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Arthur Paiva Monteiro Rêgo & Jerônimo Dix-neuf Rosado dos Santos
Arthur Paiva Monteiro Rêgo
Mestrando em Direito Tributário pela PUC-SP
Jerônimo Dix-neuf Rosado dos Santos
Mestrando em Direito Tributário pela PUC-SP