Controle da exportação de tecnologia: uma guerra silenciosa que nos importa!
Liziane Angelotti Meira
No momento atual, a mídia mundial tem se concentrado em nos mostrar as cenas deploráveis de violência e morte a céu aberto da guerra na Ucrânia e da guerra na Faixa de Gaza. Mas não é só com armas e aviões que se fazem guerras, existem batalhas comerciais que são cruéis e também, infelizmente, fazem muitas vítimas.
Por isso, nesta coluna, o leitor é hoje convidado a refletir sobre uma guerra comercial internacional, a da tecnologia, que evolui de forma discreta, mas nos afeta substancialmente.
O controle das exportações é quase tão antigo quanto a organização da sociedade humana, e a disputa não se desenvolve de forma pacífica. No entanto, apesar de o Brasil ter algumas políticas relacionadas ao controle de exportação de bens tecnológicos de uso militar, este importante conflito ainda não teve o devido eco dentro do país.
No âmbito da Organização Mundial do Comércio, o Acordo sobre Tecnologia da Informação reduziu substancialmente as tarifas de importação dos produtos relacionados com a informação em todo o mundo, atingindo cerca de 97% dos produtos de tecnologia da informação do mundo. Assim a cadeia global de fornecimento de tecnologia expandiu-se para muitos países. Dessa forma, o comércio global fez com que os países se tornassem mais integrados entre si, o que tornou difícil inverter a tendência de internacionalização e tentar consolidar uma cadeia de abastecimento de tecnologia específica dentro de um país.
Nesse contexto de abertura e desenvolvimento internacional das cadeias globais de abastecimento tecnológico da informação, desenvolveu-se nos últimos anos uma resistência: a utilização da lei de controle de exportações para conter a transferência de tecnologia de um país para outros.
Em 2018, os Estados Unidos impuseram tarifas de salvaguarda às importações de painéis solares e máquinas de lavar roupa, o que gradualmente se transformou numa guerra comercial em curso entre os Estados Unidos e a China. À medida que a guerra comercial entre os EUA e a China se intensificava, as medidas de controle das exportações que o Japão impôs aos materiais relacionados com semicondutores exportados para a Coreia do Sul em 2019 criaram um conflito comercial entre os dois condados.
Uma característica especial destas duas guerras comerciais tem sido a contribuição e o papel que as leis nacionais de controle das exportações desempenharam na escalada da tensão comercial entre os parceiros comerciais. Uma vez que as leis de controle das exportações têm sido vistas como uma extensão econômica dos interesses de segurança nacional de um país, as medidas comerciais restritivas que derivam destas preocupações de segurança têm sido geralmente entendidas como exceção às normas comerciais e permitidas no comércio internacional.
Contudo, nas recentes guerras comerciais, a aplicação das leis de controle das exportações expandiu-se para além do seu âmbito tradicional de aplicação às questões de segurança relacionadas com o setor militar, para interferir com vigor nos interesses comerciais.
Assim, em um mundo conectado, onde vários países estão ligados ao ecossistema global da cadeia de abastecimento de tecnologia, o aumento da utilização e a mudança do papel das regulamentações de controle das exportações entre estes países desenvolvidos criam desafios para os seus parceiros comerciais. Para o Brasil, que tem a China, os Estados Unidos e o Japão como importantes parceiros comerciais, as alterações introduzidas no controle das exportações estão tendo impacto direto e indireto sobre o fluxo comercial com esses países e também no desenvolvimento interno do Brasil.
Os acontecimentos internacionais recentes mudaram o foco político e a aplicação das leis e regulamentos de controle das exportações. A utilização de leis internas de controle das exportações na guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, que envolve Taiwan, e a hostilidade comercial entre a Coreia do Sul e o Japão refletem uma mudança na ideologia de como determinar as preocupações de segurança, no que se refere a aspectos comerciais. A questão de determinar o que constitui uma exceção de segurança tem sido objeto de debates governamentais e acadêmicos mundo afora nos últimos anos, especialmente à luz do relatório do Painel de Resolução de Litígios da Organização Mundial do Comércio de 2019 sobre o caso das Medidas Russas relativas ao Tráfego em Trânsito.
Para a União Europeia, a tecnologia de cibervigilância que as empresas europeias exportaram para o Médio Oriente à luz da Primavera Árabe suscitou a discussão de que os direitos humanos deveriam ser incorporados na discussão das questões de segurança. Este conceito de “segurança humana” foi introduzido como um elemento político no Regulamento (UE) nº 2021/821, que se tornou o regime de controle das exportações de dupla utilização para a União Europeia.
A combinação desses eventos estabeleceu uma tendência em que as leis de controle das exportações estão lentamente evoluindo e se afastando dos elementos de construção de consenso, orientados para a segurança que costumavam ser encontrados nos regimes de controle das exportações.
Considerando a extensão deste texto, vamos tratar somente de uma das importantes guerras comerciais que se desenvolvem silente nos últimos anos, trata-se da guerra comercial entre Estados Unidos e China.
No início de 2018, a tensão comercial aumentou entre os Estados Unidos e a China com a imposição de tarifas sobre os painéis solares, acabando por levar a uma guerra comercial entre os dois países focada na tecnologia. No contexto da política econômica “Made in China 2025” da China, que se centrava no aumento da capacidade tecnológica de produção em várias indústrias importantes, os EUA publicaram um relatório em 2018 que concluiu que a China estava a obter uma vantagem competitiva injusta, forçando as empresas estadunidenses a transferir tecnologias nos seus investimentos chineses. O aumento da capacidade tecnológica da China a colocaria em concorrência global direta com as mesmas indústrias dos Estados Unidos.
Como resultado dessa preocupação, os Estados Unidos aprovaram a Lei de Reforma do Controle de Exportações (Ecra), em agosto de 2018, e criaram iniciativas políticas que se afastaram dos dois elementos estabelecidos através de regimes anteriores de controle de exportações. Um dos objetivos políticos era a inclusão da procura da liderança tecnológica global como uma preocupação de segurança nacional no controle das exportações.
O objetivo político da Ecra indica claramente que o que foco tradicional da segurança nacional, conforme definido pelas preocupações militares, foi alargado para incluir elementos econômicos de manutenção da liderança global no avanço da tecnologia comercial. O enfoque original do controle das exportações, orientado para a segurança, foi estruturado para ser mais inclusivo em termos de objetivos políticos, para além dos produtos e tecnologias militares.
Embora o objetivo político da Ecra fosse expressamente estabelecer a liderança global para a indústria tecnológica dos Estados Unidos, a implementação da identificação do que deveria ser exportado como tecnologia emergente e tecnologia fundamental foi recebida com grande resistência dentro dos Estados Unidos. A forte resistência das indústrias levou ao estabelecimento inconclusivo de uma lista separada de tecnologias emergentes no regime de controle de exportações dos Estados Unidos.
À medida que os EUA aprovaram nova legislação e alteraram os seus regulamentos para impor restrições de controle de exportações às empresas chinesas, a China aprovou a sua própria Lei de Controle de Exportações em 2020. Embora a cobertura chinesa da lei não faça menção se a lei foi aprovada para combater os efeitos da política norte-americana, efetivamente veio para contrabalançar o regime de exportações de tecnologia dos EUA.
Nessa toada, a guerra comercial em curso entre os EUA e a China resultou na aprovação de novas leis nos dois países e também em terceiros, como Japão. Essas leis refletem uma mudança na utilização de preocupações de segurança nacional para impor restrições comerciais que teriam impacto na tecnologia de uso comercial.
Assim, o regime de controle das exportações foi tido inicialmente como uma exceção de segurança porque trata do comércio de bens de uso militar ou de dupla utilização (militar e comercial, concomitantemente). No entanto, à medida que os países incluem agora o regime de controle das exportações como parte das suas considerações econômicas, a aplicação do controle das exportações expande-se, e ainda não se sabe como estas mudanças poderão impactar o fluxo do comércio internacional de tecnologia. Ademais, os países exportadores de tecnologia, ou seja, os países desenvolvidos, estão unindo mais um ponto nessa complexa fórmula, a inclusão de um fator de direitos humanos.
Vale mencionar que o controle de exportações, nesse sentido, serve não apenas para acumular e conservar o desenvolvimento e controle de tecnologia dentro dos países desenvolvidos, mas também tem impacto na segurança tecnológica dos importadores, muitos deles são países em desenvolvimento como o Brasil.
Dessarte, o controle das exportações tende a se definir como mais uma barreira não tarifária a impactar os países menos desenvolvidos e os países em desenvolvimento, como o Brasil, de forma muito intensa, afetando não somente sua posição no mercado internacional, mas comprometendo o desenvolvimento interno por dificuldade e atraso no acesso à tecnologia de ponta e, ainda, colocando em cheque a sua própria segurança tecnológica.
No Brasil, muita atenção é dada às políticas nacionais para controlar as importações e estimular as exportações, mas os efeitos dos controles de exportação realizados pelos países desenvolvidos não estão sendo discutidos. Daí a inegável importância de trazer esse panorama internacional e envolver o Brasil nessa discussão, pois estão sendo determinadas políticas internacionais que podem manter e aumentar nossa dependência tecnológica, que interferem no nosso desenvolvimento econômico e social e fragilizam a segurança do país importador de tecnologia e de seus cidadãos [1].
[1] Para aqueles que desejem se aprofundar no assunto, fica recomenda a seguinte leitura:
MEIRA, Liziane Angelotti; WHANG, C. . Export Control Laws in Recent Trade Wars: The Infusion Of Security Interests Into Commercial Sphere. NOMOS (FORTALEZA), v. 4, p. 279-293, 2021 (Disponível em . Acesso em: 05 nov. 2023 )
Liziane Angelotti Meira
Presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.