Reforma tributária e princípios do Sistema Tributário Nacional

Sergio André Rocha

O Direito Tributário brasileiro começou a se organizar cientificamente de forma mais consistente a partir da segunda metade do século passado, mais notadamente a partir de 1966, quando foi editado o Código Tributário Nacional. Assim, a doutrina tributária se formou nos anos duros da ditadura militar, tendo como referência um Estado autoritário.

Não surpreende que a marca da teoria tributária dessa época fosse o formalismo e uma defesa em máximo grau do princípio da segurança jurídica. É nesse período que se desenvolve a doutrina sobre legalidade tributária (posteriormente chamada de “estrita”), e que Alberto Xavier aporta no Brasil trazendo na mala o dito princípio da tipicidade cerrada – hoje em franco descrédito.

Marco Aurélio Greco nos deu um depoimento preciso sobre o contexto histórico deste período e seus reflexos sobre a formação da teoria tributária. Em suas palavras, “a variável política que não permitia o debate de questões substanciais levou a privilegiar as análises e discussões jurídicas que se concentrassem nos aspectos formais e linguísticos do texto legal (aspectos da hipótese de incidência), o que tornava a utilização do instrumental vindo da semiótica (na sintática e na semântica) politicamente ‘aceitável'”. “Debater com a Autoridade no plano sintático e semântico e suscitar questões ligadas à hierarquia (das normas) era um porto seguro onde o questionamento do exercício da autoridade estatal (via tributação) podia se dar sem maiores riscos.” [1]

Seguindo essa linha de raciocínio, é possível sustentar que a doutrina formalista que se desenvolve a partir da década de 60 e nas décadas de 70 e 1980 era, de certo modo, progressista, no sentido de que buscava viabilizar o debate tributário possível no contexto de um Estado de exceção.

Com a redemocratização e a Constituição de 1988 era de se esperar uma revolução copernicana na teoria tributária brasileira, a passagem de uma doutrina gestada em um Estado autoritário para outra que refletisse os valores e princípios de um Estado democrático de Direito.[2] A mudança, contudo, foi muito mais lenta do que se poderia esperar.

De fato, o formalismo tributário, enraizado na doutrina brasileira desde a década de 1960, recusou-se a abrir espaço para os valores e princípios da nova Constituição. O discurso formal, que antes era o único possível na interlocução com um Estado ditatorial, seguiu cobrando protagonismo — quando não exclusividade — como único legítimo para refletir o Sistema Tributário Nacional.

Muitos autores e autoras, mesmo entre aqueles que começaram a escrever já após 1988, insistiam na tese de que o pilar central do Sistema Tributário Nacional na Constituição seria o princípio da segurança jurídica, e que toda a estrutura da “Constituição Tributária” teria sido desenvolvida para a proteção do contribuinte contra o Estado, em uma visão ultraliberal que, segundo vemos, não estava refletida na Constituição Cidadã.

Esses autores e autoras esqueciam — e esquecem — intencionalmente ou não, que o artigo 3º da Constituição Federal traz os “objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil”, entre os quais “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (inciso I), “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (inciso II) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV).

Dois autores foram importantíssimos para o desenvolvimento de um Direito Tributário para um Estado democrático de Direito: Marco Aurélio Greco e Ricardo Lobo Torres. Ambos colocaram em xeque os pontos de partida da doutrina defensora da segurança jurídica acima de qualquer princípio, jogando luz sobre a necessidade de equilíbrio entre segurança jurídica e outros princípios como a isonomia e a capacidade contributiva.

O surgimento de uma nova teoria tributária, mais congruente com os valores e princípios da Constituição Federal de 1988, demorou até ser difundida academicamente. Contudo, atualmente não são poucos os autores e autoras que podem ser considerados representantes da doutrina tributária de um Estado democrático de Direito,[3] em que o Estado não é um vilão a ser combatido e os contribuintes tampouco são vítimas a serem defendidas em toda e qualquer situação. Aqui, rendo uma homenagem à minha casa, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e ao patrono de nossa Escola, o professor Ricardo Lobo Torres.

As marcas do Direito na pós modernidade são a complexidade e a ambivalência. A tributação contemporânea é um fenômeno não-binário. Não há mocinhos nem vilões. Há valores e interesses, individuais e coletivos, que devem ser protegidos. Desse modo, visões binárias sobre a realidade dificilmente serão úteis para administrar os desafios da vida no século 21.

Já fiz esse comentário em alguns eventos. Normalmente, quando inicio uma turma de graduação no curso de Direito da Uerj, começo chamando a atenção dos alunos e alunas para o fato de que o Direito Financeiro e o Direito Tributário não são disciplinas enfadonhas que lidam com regras procedimentais orçamentárias, bases de cálculo e alíquotas.

Muito pelo contrário. Se pensarmos rapidamente nos grandes desafios trazidos pela modernidade, veremos que os Direitos Financeiro e Tributário estão no centro dos debates. Se pensarmos em proteção do meio ambiente, combate à pobreza, superação de desigualdades de qualquer natureza, etc. as finanças públicas e a tributação estarão sempre entre os protagonistas.

Não obstante, a teoria tributária ainda hoje se encontra dividida entre autores e autoras que consideram o Direito Tributário um instrumento de dominação do contribuinte pelo Estado, de modo que a Constituição Federal seria basicamente uma Carta de defesa dos contribuintes contra a tributação; e aqueles que, como nós, acreditam que o dever tributário é um dever da pessoa enquanto cidadã, de modo que, da mesma maneira que se deve proteger o contribuinte contra exigências em desacordo com o ordenamento jurídico, deve ser do interesse da sociedade que se assegure que os deveres tributários sejam adimplidos.

A Proposta de Emenda Constitucional nº 45 (“PEC 45”), aprovada na Câmara dos Deputados e atualmente em tramitação no Senado Federal, certamente impactará esse debate. O foco de nossa atenção, neste breve texto, é o proposto § 3º do artigo 145 da Constituição Federal, cuja redação é a seguinte:

“Art. 145. […]
§ 3º O Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária e do equilíbrio e da defesa do meio ambiente. (NR)”

Caso este dispositivo passe a integrar o texto constitucional, será a primeira vez que este terá uma referência expressa a “princípios” no capítulo dedicado ao Sistema Tributário Nacional.

De fato, por mais que a seção I deste capítulo seja intitulada “Dos princípios gerais”, nota-se que a palavra “princípios” nesta expressão não foi utilizada para denotar um tipo de norma jurídica finalística, mas sim em uma acepção vernacular frouxa para se referir a “fundamentos”, “pontos de partida estruturantes”.

É nesta seção I que encontramos a formulação da capacidade contributiva — que aqui aparece mais como uma regra do que como um princípio, na intrincada redação do § 1º do artigo 145, segundo o qual, “sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte”.

Por outro lado, a seção II do capítulo relativo ao Sistema Tributário Nacional dedica-se às “limitações do poder de tributar” (artigo 150). Ali, temos algumas regras, como as da legalidade, da anterioridade, da irretroatividade, do não confisco e da liberdade de tráfego, que concretizam o princípio da segurança jurídica.

Junto com essas normas de segurança, que concretizam o princípio da segurança jurídica, o artigo 150 também nos traz uma regra de isonomia, materializando o princípio da igualdade e os valores de justiça e solidariedade.

Vê-se, portanto, que os princípios do Direito Tributário, sob a Constituição em sua redação atual, são mais implícitos do que explícitos. Não há um dispositivo estabelecendo que o princípio da segurança jurídica orienta a tributação. A existência deste princípio é inferida de uma série de dispositivos constitucionais que protegem o contribuinte contra a exigência fiscal criada sem o crivo de seus representantes, ou de forma inesperada ou, ainda, que alcance fatos consumados no passado, por exemplo.

Da mesma forma, não há previsão textual, na Constituição, de uma série de outros princípios que informam o Direito Tributário, como os princípios da transparência, da proteção da confiança, da cooperação, da responsabilidade, da tolerância, da praticabilidade, do custo benefício para as taxas, do poluidor pagador, etc.

Nesse contexto, uma primeira questão que surge, ao considerarmos o § 3º proposto para o artigo 145, é a seguinte: faz sentido incluirmos um catálogo limitado de princípios na Constituição Federal, ou seria melhor seguir com a nossa tradição de extrair do texto constitucional os princípios que são mais aderentes aos seus valores e previsões?

Um ponto negativo de termos um catálogo de princípios, como este previsto no § 3º, é a pretensão de exaustividade. Em outras palavras, a ideia de que os princípios tributários seriam só esses expressamente previstos na Constituição.

Essa preocupação seria atendida com uma alteração simples na redação do § 3º, que poderia ser inspirada pelo texto do § 2º do artigo 5º da Constituição, conforme abaixo:

“Art. 145. […]
§ 3º Sem prejuízo de outros decorrentes do regime e dos princípios adotados por esta Constituição, o Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da simplicidade, da transparência, da justiça tributária e do equilíbrio e da defesa do meio ambiente. (NR)”

Com uma alteração como essas, estaria assegurado o caráter meramente exemplificativo do § 3º do artigo 145, preservando-se o reconhecimento constante de princípios decorrentes do texto constitucional, mesmo daqueles que atualmente sequer conhecemos – basta pensarmos que transparência, praticabilidade e proteção de expectativas legítimas se consolidaram no debate constitucional tributário brasileiro já no século 21.

Uma questão é deixar claro que esses não são os únicos princípios do Sistema Tributário Nacional — a própria PEC 45 nos brinda com outro, o princípio da neutralidade, no inciso VIII do artigo 156-A. Outra, é examinarmos se os princípios que estão ali mencionados efetivamente são os vetores do Sistema, a ponto de merecerem esse destaque.

O primeiro princípio tratado no § 3º em questão é o da simplicidade. Como temos afirmado, a primeira alteração que proporíamos seria a sua modificação para praticabilidade. Este termo tem raiz no Direito Tributário Brasileiro, desde as obras seminais das professoras Misabel Derzi[4] e Regina Helena Costa.[5] O princípio da praticabilidade estabelece que se materialize um estado de coisas em que a legislação tributária e os deveres fiscais sejam adimplidos e fiscalizados da maneira mais simples possível, tanto para o contribuinte quanto para a administração pública. Cremos que, nesse contexto, praticabilidade e simplicidade sejam sinônimos, preferindo-se, então, o termo com tradição em nosso debate tributário.

O princípio da transparência é um dos grandes pilares dos Direitos Financeiro e Tributário contemporâneos. Sua inclusão no texto constitucional não alterará em nada seu status de princípio da atividade financeira do Estado. Ele estabelece um horizonte em que o contribuinte atuará de forma aberta e transparente perante o Estado, da mesma maneira que este será aberto e transparente em relação às suas funções, não só de administração e fiscalização dos tributos, como também de destinação dos recursos arrecadados. Se é para termos um catálogo de princípios, a transparência certamente deveria ser incluída nele.

Justiça tributária é outro princípio — ou valor — constitucional que já orienta o Sistema Tributário Nacional. Assim como a transparência, são muitas e distintas as suas consequências. Pode-se estabelecer, de forma simplificada, que a justiça tributária demanda que a carga financeira da arrecadação tributária seja distribuída de forma justa entre os cidadãos, que aqueles que manifestem capacidade econômica efetivamente recolham os tributos devidos, e que ninguém seja demandado a pagar tributos fora das situações previstas na Constituição e nas leis infraconstitucionais. De toda forma, faz sentido a menção à justiça tributária.

A referência a um princípio do equilíbrio é estranha e pode gerar, segundo vemos, mais dúvidas do que certezas.

Com efeito, temos em Direito Financeiro um princípio, nada pacífico, do equilíbrio orçamentário. Nada obstante, não parece que o § 3º esteja fazendo referência a este princípio. Afinal, não só o artigo 145 da Constituição não lida com Direito Financeiro, como a falta do “orçamentário” deixa a referência a equilíbrio sem sentido.

Portanto, se a ideia era prever explicitamente na Constituição o princípio do equilíbrio orçamentário, cremos ser essencial que se faça referência à sua nomenclatura completa. Por outro lado, se esta era a finalidade, seria mais indicada a sua exclusão, seja porque a noção de equilíbrio orçamentário é amplamente controversa na doutrina atualmente, seja porque o artigo 145 não seria o local ideal para sua inserção.

Não se pode desconsiderar a possibilidade de o tal princípio do equilíbrio ser ainda outra coisa, sem conexão com o equilíbrio orçamentário. Tratando-se de palavra vazia, seria mais uma razão para não incluirmos na Constituição termo sem qualquer referência no Direito Tributário brasileiro.

Por fim, fala-se no princípio da defesa do meio ambiente. Talvez mais do que um princípio, o ideal fosse a inclusão de um dispositivo na Constituição reconhecendo que são legítimas as diferenciações tributárias que tenham por objetivo a proteção do meio ambiente. Uma espécie de legitimação explícita da extrafiscalidade como instrumento de proteção do meio ambiente.

Nesse particular, poder-se-ia ir além, para prever, também de forma explícita, a possibilidade da utilização extrafiscal dos tributos como mecanismo para a superação de desigualdades de gênero e raça.

Seguindo essa linha de ideias, seria possível pensar em um § 4º para o artigo 145, que estabeleceria o seguinte:

“Art. 145. […]
§ 4º Salvo quando expressamente vedado por esta Constituição, são legítimas as diferenciações tributárias, mediante a concessão de benefícios e de incentivos, ou pela previsão de incidências mais elevadas, que tenham por objetivo a proteção do meio ambiente ou a superação de desigualdades de gênero e raça.”

Com isso, poderíamos excluir do § 3º a menção ao suposto “princípio da proteção do meio ambiente”, que não parece ser um princípio específico do Sistema Tributário Nacional.

Além desses comentários sobre os princípios que foram previstos no § 3º, temos que lidar também com as ausências.

De fato, se é para termos um catálogo de princípios na Constituição Federal, entendemos que os princípios da segurança jurídica, da igualdade e da capacidade contribuitiva não podem faltar.

Como vimos anteriormente, não há, no capítulo do Sistema Tributário Nacional, uma referência ao princípio da segurança jurídica. Ele é inferido de diversas regras ali contidas. Agora, se vamos ter uma lista de princípios, a segurança jurídica não poderia estar ausente.

A igualdade e a capacidade contributiva até estão, de alguma forma, previstas na Constituição. Porém, a igualdade está prevista mais como regra do que como princípio no inciso II do artigo 150, e a capacidade contributiva decorre do texto confuso do § 1º do artigo 145, que gera grandes controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais. Logo, parece-nos adequada sua previsão expressa no novo § 3º do artigo 145.

Tendo em conta esses comentários, o artigo 145 passaria a incluir os §§ 3º e 4º, conforme sugeridos abaixo:

“Art. 145. […]
§ 3º Sem prejuízo de outros decorrentes do regime e dos princípios adotados por esta Constituição, o Sistema Tributário Nacional deve observar os princípios da segurança jurídica, da igualdade, da capacidade contributiva, da justiça tributária, da praticabilidade e da transparência.
§ 4º Salvo quando expressamente vedado por esta Constituição, são legítimas as diferenciações tributárias, mediante a concessão de benefícios e de incentivos ou a previsão de incidências mais elevadas, que tenham por objetivo a proteção do meio ambiente ou a superação de desigualdades de gênero e raça.”

Ficam aqui algumas sugestões para a melhoria do texto da PEC 45 que tramita no Senado. Nas colunas seguintes voltaremos a tratar de questões específicas relacionadas à reforma tributária.

[1] GRECO, Marco Aurélio. Crise do Formalismo no Direito Tributário Brasileiro. In: RODRIGUEZ, José Rodrigo et. al. (Orgs.). Nas Fronteiras do Formalismo. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 230.

[2] Ver: GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. 4 ed. São Paulo: Quartier Latin, 2019. p. 69-75.

[3] Ver: ROCHA, Sergio André. Fundamentos do Direito Tributário Brasileiro. 2 ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022.

[4] DERZI, Misabel Abreu Machado. Direito Tributário, Direito Penal e Tipo. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2021. p. 147-151.

[5] COSTA, Regina Helena. Praticabilidade e Justiça Tributária. São Paulo: Malheiros, 2007.

Sergio André Rocha

Professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), livre-docente em Direito Tributário pela USP (Universidade de São Paulo), diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.

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