Acordo firmado entre União e estados sobre compensação das perdas do ICMS
Leonardo Augusto Bellorio Battilana, Ana Beatriz Robalinho
Está na pauta do plenário virtual do STF (Supremo Tribunal Federal) até a próxima sexta-feira (2/6) a análise do acordo firmado entre os estados e a União sobre a compensação das perdas com a arrecadação do ICMS, após as mudanças promovidas pelas Leis Complementares nº 192 e 194 de 2022, editadas para impor limites nas cobranças de ICMS sobre serviços essenciais e, em especial, reduzir a tributação sobre combustíveis e energia elétrica. Após meses de negociações, o acordo havia sido apresentado ao Supremo para homologação no final de março.
A homologação será analisada no âmbito da ADPF nº 984 e da ADI nº 7191, ambas da relatoria do ministro Gilmar Mendes. Essas ações diretas, que focavam no debate do ICMS sobre combustíveis, devem ser encerradas com a conciliação entre os entes federados.
A discussão sobre a arrecadação do ICMS, no entanto, está longe de ser encerrada no STF. Uma terceira ação direta, a ADI 7195, segue em curso no Tribunal, debatendo o ICMS sobre energia elétrica.
No que refere ao setor elétrico, foram duas as alterações promovidas pela LC nº 194/2002 com o objetivo de tornar o nosso sistema tributário menos regressivo: 1) o reconhecimento da essencialidade da energia elétrica e a vedação à fixação de alíquotas em patamar superior ao das operações em geral [1]; e 2) a não incidência do ICMS sobre os serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica.
No âmbito da ADI 7195, foi concedida medida liminar para suspender os efeitos do artigo 3º, X, da Lei Complementar nº 87/96, com redação dada pela Lei Complementar nº 194/2022, que excluía da incidência do ICMS “serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica”; com a suspensão, o imposto volta a incidir nessas hipóteses.
E é justamente nesse debate sobre a redução do ICMS no setor elétrico que o acordo firmado entre a União e os estados parece capaz de interferir diretamente numa decisão futura do Supremo na ADI 7195.
Uma das principais controvérsias a serem resolvidas por meio de acordo entre os entes federados era definir o valor a ser compensado, que corresponderia às perdas vertidas pelos estados. O outro ponto fundamental do acordo era definir o destino das Ações Cíveis Originárias propostas pelos estados em face da União, várias das quais com liminar deferida, que pugnavam pela aplicação imediata da compensação prevista na LC nº 194.
Ocorre que a minuta de acordo apresentada pelos entes federados ao STF não oferece uma solução definitiva a nenhuma dessas questões. Na verdade, o acordo condiciona as soluções adotadas ao julgamento de mérito da ADI 7195. Isso porque reconhece que, a depender do que for decidido pelo STF, as perdas arrecadatórias dos estados podem aumentar.
Assim, embora a definição do valor a ser compensado devesse encerrar os litígios entre União e estados e extinguir as ACOs, o acordo prevê duas cláusulas resolutivas da quitação entre os entes. Uma dessas cláusulas antecipa que, caso o Supremo reconheça a constitucionalidade da exclusão da incidência do ICMS sobre serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais do setor elétrico, o acordo em essência se resolverá, permitindo aos estados voltarem a litigar no âmbito das respectivas ACOs e rediscutir o valor a ser compensado pela União [2].
Em última instância, portanto, o STF foi colocado em uma delicada sinuca política: se prestigiar a intenção do legislador complementar, sustentando a constitucionalidade da diminuição da incidência tributária sobre o setor elétrico, terá virtualmente desperdiçado meses de negociações entre os entes federados, e será forçado a mediar novas disputas de cada estado com a União, no âmbito das Ações Cíveis Originárias.
Representantes do setor tem se empenhado em debater de forma técnica as pautas envolvidas no julgamento da ADI 7.195. Por um lado, buscam demonstrar que a energia elétrica produzida no Brasil é uma das mais caras do mundo e a pesada tributação que recai sobre ela é uma das grandes responsáveis por esse fato.
O estudo realizado a partir dos dados fornecidos pela Abrace (Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres) apontou que 53,5% do custo total da energia é pago pelos consumidores para a prestação dos serviços de geração, transmissão e distribuição da energia. O remanescente de 46,5% é composto por taxas, furtos, tributos e ineficiências.
E tal tributação afeta diretamente o desenvolvimento econômico; as consequências não estão vinculadas apenas com as contas de energia, mas com o respectivo aumento de custos na indústria e no comércio, afetando o preço final de produtos e serviços, também utilizados pelos consumidores, o que intensifica a regressividade de nosso sistema tributário.
Em outro estudo produzido pela Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Economia demonstrou, nesse sentido, que há uma relação direta entre redução tributária, diminuição do PIB, geração de empregos e aumento de salários [3].
Esse ponto, aliás, foi fundamental nos debates legislativos que levaram à aprovação da redução da carga tributária sobre a energia elétrica efetivada pela LC nº 194. Por ocasião de sua edição, o Ministério de Minas e Energia (MME) divulgou (em 12/7/2022) um impacto potencial com a redução dos tributos nas faturas da energia elétrica. De acordo com o Ministério a medida poderia reduzir 19% do preço da energia elétrica nas faturas de energia elétrica [4].
Por outro lado, destacam que as alterações trazidas pela LC nº 194 caminharam no sentido do aprimoramento do regime jurídico do ICMS e a necessidade de uniformização da sua aplicação pelos Entes Federados. O objetivo foi o de efetivamente concretizar o princípio da seletividade do ICMS em função da essencialidade dos bens e serviços, provendo a definição da essencialidade da energia elétrica, dos combustíveis, das comunicações e do transporte coletivo, de modo a afastar a aplicação de alíquotas sobre as respectivas operações em patamares superiores aos das operações em geral.
Na parte que toca à não incidência do ICMS sobre os serviços de transmissão e distribuição e encargos setoriais vinculados às operações com energia elétrica, a Lei positivou a conclusão que há muito já se chegou na doutrina mais especializada e que também é replicada em diversos precedentes do STJ (Superior Tribunal de Justiça). O relatório aprovado pelas comissões que analisaram o PL já reconhecia que “a cobrança da Tust e da Tusd…não guardam relação jurídica com a circulação da mercadoria (energia) em si”; E, ainda, que “os valores relativos aos descontos e subsídios suportados pelos consumidores…não estão relacionados a operação do fornecimento de energia elétrica” [5].
Não obstante a solidez dos debates legislativos que levaram à aprovação da LC nº 194, o fato é que a maioria dos Estados não internalizou os dispositivos da lei complementar federal, especialmente quanto à previsão da não incidência do ICMS sobre as tarifas dos serviços de transmissão e distribuição [6]. E com a recente suspensão do inciso X do artigo 3º da LC nº 87, alguns dos que já haviam se adaptado à mudança voltaram a cobrar o ICMS [7].
A eventual homologação do acordo firmado com a União deixará os estados ainda mais próximos de atingir o objetivo de reverter a alteração promovida pela LC nº 194 e aumentar definitivamente a carga tributária sobre a energia elétrica, incrementando de forma regressiva a tributação sobre o consumo de um serviço essencial. Se isso acontecer, anos de debates legislativos e evolução jurisprudencial — pois o tema aguarda pronunciamento definitivo do STJ [8] — terão sido desperdiçados.
Não se questiona a importância das receitas advindas da arrecadação do ICMS para os estados e o direito de reivindicarem a sua recomposição. Por outro lado, não se pode conceber que, à pretexto de manter o funcionamento de atividades essenciais, os Estados onerem excessivamente bens e serviços tidos como essenciais, como é o caso da energia elétrica.
A segurança arrecadatória dos estados não pode se sobrepor ao necessário respeito à capacidade contributiva e a igualdade, que são atendidas pela via da desoneração bens e serviços essenciais e ajudam a reduzir a regressividade do sistema tributário, tornando-o mais justo.
Cabe ao Supremo resistir à pressão política e reconhecer que, no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade, um debate legislativo sólido e pautado em entendimento técnico torna robusta a presunção de constitucionalidade da norma. Uma decisão política legítima foi tomada pelo legislativo com a aprovação da LC nº 194. Somente uma incompatibilidade direta com a constituição permitiria ao judiciário revertê-la; o mesmo não pode ser dito de um acordo político firmado entre os poderes executivos federal e estadual.
[1] A despeito de o artigo 155, §2º, inciso III, da Constituição Federal, ter adotado a técnica da seletividade em função da essencialidade para fixação das alíquotas de ICMS, o Distrito Federal e outros 23 Estados mantinham as alíquotas de ICMS sobre as operações com energia elétrica em patamar igual ou superior à 25%, enquanto a alíquota-base do ICMS incidente nas operações em geral é de 17% ou 18%, a depender do Estado.
[2] Petição nº 31573/2023 e Petição nº 31574/2023, protocoladas, respectivamente, nos autos da ADPF 984/DF e da ADI 7191/DF no dia 31 de março de 2023. Leia a íntegra do acordo.
[3] Ministério da Economia. Nota informativa. Consolidação fiscal com redução da carga tributária e mudanças econômicas pela oferta. 29 jun. de 2022. Acesso em 14/04/2023. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/conjuntura-economica/estudos-economicos/2022/ni-consolidacao-fiscal-com-reducao-da-carga-tributaria-e-mudancas-economicas-pela-oferta.pdf
[4] https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/mme-publica-o-impacto-potencial-da-reducao-dos-tributos-nas-faturas-dos-consumidores-de-energia-eletrica. Acesso em 14/04/2023.
[5] Parecer proferido em plenário Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática Comissão de Minas e Energia Comissão de Finanças e Tributação Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Projeto de lei complementar nº 211, DE 2021 (Apensados: PLP 18/2022, PLP 72/2022 e PLP 73/2022).
[6] https://economia.uol.com.br/colunas/mariana-londres/2022/10/12/conta-de-luz-poderia-estar-8-mais-barata-sem-impostos-sobre-a-transmissao.htm
Estados analisam como reincluir TUSD/TUST na base do ICMS
[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-barbara-mengardo/fux-reinclui-tusd-tust-na-base-do-icms-e-agora-15022023
[8] Serão julgados pela Primeira Seção, como repetitivos, três recursos sobre o tema: o REsp 1.692.023, o REsp 1.699.851 e o EREsp 1.163.020.
Leonardo Augusto Bellorio Battilana, Ana Beatriz Robalinho
Leonardo Augusto Bellorio Battilana é sócio do Veirano Advogados, membro da Comissão Direito Tributário da OAB/SP e coordenador do Comitê de Tributação do Setor de Energia e pós-graduado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP).
Ana Beatriz Robalinho é consultora do Veirano Advogados, doutoranda (J.S.D.) e mestre (LL.M.) em Direito pela Yale Law School, mestre em Direito Público pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).