O governo errou no Carf. O princípio é in dubio pro contribuinte
Fernando Facury Scaff
Por meio da Medida Provisória 1.160, foi alterada a regra das decisões do Carf quando ocorrer empate no julgamento, tendo sido revogado o artigo 19-E da Lei 10.522/02. Desde 2020, o empate no julgamento era decidido a favor do contribuinte; antes disso vigorava a regra de que o empate era decidido a favor do Fisco. Penso que o governo errou e explico os motivos.
O primeiro deles é que se trata de matéria que não possui urgência, embora seja relevante, o que torna inconstitucional o uso do veículo normativo “medida provisória”, pois infringe os requisitos do artigo 62, CF, que prevê seu uso apenas quando estiverem presentes os dois critérios, de relevância e também o de urgência. Hamilton Dias de Souza produziu excelente texto nesse sentido.
O segundo é que os aspectos fáticos alegados estão incorretos, pois menos de 2% dos casos foram decididos em favor dos contribuintes desde 2020, fruto do empate, segundo dados divulgados pela Aconcarf, embora os valores em debate tenham percentual distinto. E não contrariaram decisões sólidas do Judiciário, conforme alegado.
O terceiro motivo, e que me parece mais importante, é fruto da lógica sistêmica do processo administrativo fiscal, sobre o qual escrevi em 2013 nesta ConJur, incluindo aspectos de sua origem mitológica. O ponto central está na estruturação do processo administrativo fiscal, que é, em sua essência, acusatório. Como regra, o processo analisado pelo Carf decorre de uma espécie de acusação de que o contribuinte errou, e isso é refletido em um auto de infração ou em uma glosa no processo de compensação de créditos — ou seja, o contribuinte já recebe de antemão uma notificação fiscal acusando-o de ter se apropriado indevidamente de recursos públicos (tributos), que deveriam ter sido pagos, com acréscimo de juros e multas. Tudo que implica no processo administrativo-tributário decorre dessa gênese acusatória, voltada primordialmente para a constrição do patrimônio dos contribuintes, mas que pode ser redirecionada para a constrição de sua liberdade, quando desborda para aspectos criminais, fruto de problemas tributários.
Compreendido esse pressuposto, qual o princípio aplicável, desde a mitológica Minerva? In dubio pro reo! Ou seja, quando alguém é acusado de cometer uma infração, havendo empate no julgamento, pressupõe-se a existência de dúvida no colegiado, e, daí, aplica-se o princípio do in dubio pro acusado, que, em casos criminais, é identificado como o réu, e no processo administrativo tributário, como contribuinte Na doutrina norte-americana usa-se a expressão beyond any reasonable doubt, que significa que só pode haver condenação além de qualquer dúvida razoável. Ora, se o voto do colegiado não foi suficiente para aceitar a acusação, pois houve empate, existe dúvida razoável de que aquela conduta tenha sido irregular, consequentemente o acusado é absolvido.
O que se aplica, e está errado, é a crença de que o processo administrativo tributário é um processo vinculado ao Direito Privado. Não. É um processo acusatório, típico de Direito Penal, embora a constrição seja patrimonial. Inicia-se por uma acusação (auto de infração ou medidas assemelhadas).
Logo, o empate favorece o contribuinte, independente da regra normativa, pois se trata de um princípio de Direito. Como se sabe, as regras devem se subordinar aos princípios. Dessa forma, independente de regra, seja a da MP 1.160 ou a da Lei 10.522/02, o princípio vinculado ao processo acusatório é superior, e, havendo empate, o contribuinte deve ser desonerado — in dubio pro contribuinte.
Ocorre que o problema está posto — desnecessariamente, mas está posto.
Qual pode ser então a solução de compromisso, entendida como a solução possível dentro do quadro jurídico-político que se apresenta?
O Congresso Nacional deve alterar a MP 1.160 e afastar a incidência das multas aplicadas em caso de empate. O contribuinte perde, mas não é sobreonerado com as pesadas multas aplicadas a quem infringiu as regras tributárias. Aplica-se o in dubio pro contribuinte previsto pelo princípio acusatório, mas de forma mitigada, pois o principal e os juros são aplicados e devem ser pagos, mas as multas são afastadas. Claro que essa desoneração só pode ocorrer se o contribuinte renunciar ao direito de contestar o julgamento do Carf no Judiciário. Registra-se que foi aberto na Câmara dos Deputados um processo de consulta pública acerca da MP 1.160, que pode ser acessado por todos os interessados.
Nem mesmo essa alteração fará com que não haja aumento de litigiosidade, nas pequenas e circunscritas hipóteses em que será aplicada, mas seguramente será um pouco de água fria na fervura que tendia a se extinguir e foi tolamente ressuscitada.
PS: Existem outras batatadas na MP 1.160/23, em especial a questão da ampliação da alçada recursal, o que foi muito bem abordado no texto de Hugo de Brito Machado Segundo, publicado nesta ConJur, e que devem ser alteradas pelo Congresso Nacional
Fernando Facury Scaff
professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff Advogados.